Fratelli Tutti: As «41 perguntas incómodas» do Papa Francisco

A nova Encíclica do Papa Francisco, a terceira do seu pontificado, faz uma síntese do pensamento do Papa Argentino e coloca o «dedo na ferida» levando os leitores a debruçarem-se sobre questões fundamentas para a fraternidade universal e a amizade social. «Onde está o teu irmão?» É a interrogação que percorre os capítulos divididos em 287 números.

A revista online Vida Nueva condensou as 41perguntas, presentes na Encíclica, em 25 blocos temáticos.

1. Ignorar a história?

No início da sua análise da realidade em Fratelli tutti, Francisco alerta para tentação de cair «duma espécie de «desconstrucionismo», em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero». A partir daí, elabora um conjunto de perguntas já expressas anteriormente aos jovens na exortação 'Christus vivit': «Se uma pessoa vos fizer uma proposta dizendo para ignorardes a história, não aproveitardes da experiência dos mais velhos, desprezardes todo o passado olhando apenas para o futuro que essa pessoa vos oferece, não será uma forma fácil de vos atrair para a sua proposta a fim de fazerdes apenas o que ela diz?»

2. O que significa hoje a democracia?

Nesta mesma linha, o Papa afirma que “uma maneira eficaz de dissolver a consciência histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça e os percursos de integração é esvaziar de sentido ou manipular as «grandes» palavras”. A partir daí, Francisco questiona: “Que significado têm hoje palavras como democracia, liberdade, justiça, unidade? Foram manipuladas e desfiguradas para utilizá-las como instrumento de domínio, como títulos vazios de conteúdo que podem servir para justificar qualquer ação”.

3. É possível reconhecer o vizinho?

Bergoglio está preocupado porque «um mundo unido e mais justo sofre um novo e drástico revés». «Nesta luta de interesses que nos coloca a todos contra todos, onde vencer se torna sinónimo de destruir, como se pode levantar a cabeça para reconhecer o vizinho ou ficar ao lado de quem está caído na estrada?».

4. Igualdade de Direitos?

O Papa questiona se a proclamação dos direitos humanos há 70 anos se traduziu na proteção da dignidade de todos os seres humanos. «Persistem hoje no mundo inúmeras formas de injustiça, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo económico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem. Enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados», argumenta. Neste ponto pergunta o Papa: «Que diz isto a respeito da igualdade de direitos fundada na mesma dignidade humana?»

5. Os media católicos são fraternos?

Ao abordar o papel da mídia no mundo de hoje, Francisco lamenta «os fanatismos, que induzem a destruir os outros, são protagonizados também por pessoas religiosas, sem excluir os cristãos, que podem «fazer parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital». Pergunta em seguida:  Em seguida, pergunta: "Qual contribuição se dá para a fraternidade que o Pai comum nos propõe?

6. Quem é o meu próximo?

Francisco reproduz a parábola do Bom Samaritano, que serve de fio condutor para a encíclica. Deste modo faz suas as perguntas da passagem de Lucas (Lc 10,25-37):

"Quem é o meu próximo?"

"Mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?"

Jesus replicou-lhe: "O que está escrito na Lei? Como a lês tu?"

O juiz, querendo justificar-se, tornou a perguntar-lhe: "Quem é o meu próximo?"

"Qual destas três achas que agiu como próximo do homem que caiu nas mãos dos malfeitores?"

A partir daí, o Papa revisita vários trechos bíblicos para mostrar como «a Bíblia propõe o desafio das relações entre nós. Caim elimina o seu irmão Abel, e ressoa a pergunta de Deus: «Onde está Abel, teu irmão?» A resposta é a mesma que damos nós muitas vezes: «Sou, porventura, guarda do meu irmão?» (Gn 4, 9). Com a sua pergunta, Deus coloca em questão todo o tipo de determinismo ou fatalismo que pretenda justificar como única resposta possível».

Mais adiante confronta o leitor com a questão de Job: «Pois Aquele que me criou no ventre, também o criou a ele; um só nos formou a ambos no seio materno?» (31, 15)

7. Com quem te identificas?

Ao aprofundar as personagens da parábola do Bom Samaritano, o Papa propõe a quem está do outro lado que se coloque na pele de uma delas, especialmente do homem espancado na estrada: «Com quem te identificas? É uma pergunta sem rodeios, direta e determinante: a qual deles te assemelhas? Precisamos de reconhecer a tentação que nos cerca de se desinteressar dos outros, especialmente dos mais frágeis». Neste ponto lança um dardo incontestável: «Digamos que crescemos em muitos aspetos, mas somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas».

8. Inclinar-nos-emos para curar as feridas?

Partindo da parábola, Francisco divide a sociedade em dois tipos de pessoas: «aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao largo». Hora de escolha. «De facto, caem as nossas múltiplas máscaras, os nossos rótulos e os nossos disfarces: é a hora da verdade. Debruçar-nos-emos para tocar e cuidar das feridas dos outros?  Abaixar-nos-emos para levar às costas o outro?» De seguida o Papa convida a posicionar-se: «Este é o desafio atual, de que não devemos ter medo».

9. E se tivesse ganho a vingança?

O Papa vai mais longe na análise do texto evangélico, ao compará-lo com o mundo de hoje «onde as disputas internas e internacionais e o saque de oportunidades deixam tantos marginalizados, atirados para a margem da estrada». «Na sua parábola, Jesus não propõe vias alternativas, como, por exemplo, no caso daquele homem ferido ou de quem o ajudou terem dado espaço nos seus corações ao ódio ou à sede de vingança, que sucederia? Jesus não Se detém nisso. Confia na parte melhor do espírito humano e, com a parábola, anima-o a aderir ao amor, reintegrar o ferido e construir uma sociedade digna de tal nome».

10. Os feridos serão a justificação para as nossas divisões?

O Papa também propõe ao leitor que se coloque no lugar dos ladrões, especialmente na sua fuga após cometer o crime. «Vimos avançar no mundo as sombras densas do abandono, da violência usada para mesquinhos interesses de poder, acúmulo e repartição. A questão poderia ser: deixaremos ali estirado por terra o homem maltratado para correr cada qual a esconder-se da violência ou a perseguir os ladrões? Será o ferido a justificação das nossas divisões irreconciliáveis, das nossas cruéis indiferenças, dos nossos confrontos internos?».

11. Honrar o corpo de Cristo?

Ao abordar o comportamento do sacerdote e do levita que não ajudam os feridos no caminho, o Papa sentenciou que «uma pessoa de fé pode não ser fiel a tudo o que essa mesma fé exige dela e, no entanto, sentir-se perto de Deus e julgar-se com mais dignidade do que os outros». Assim, utiliza São João Crisóstomo para tornar visível «este desafio que se coloca aos cristãos»: «Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm de vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez.»

12. O que posso fazer, hoje?

Prosseguindo com a parábola, Bergoglio denuncia que se «verifica uma triste hipocrisia, quando a impunidade do delito, o uso das instituições para interesses pessoais ou corporativos e outros males que não conseguimos banir, se associam a uma desqualificação permanente de tudo, à constante sementeira de suspeitas que gera desconfiança e perplexidade». E vai mais longe ao afirmar que «ao engano de que ‘tudo está mal’ corresponde o dito ‘ninguém o pode consertar’. Sendo assim, que posso fazer eu?». Diante desta pergunta, o Papa adverte contra a queda no "desencanto e no desespero" diante da necessidade de se preencher com "um espírito de solidariedade e generosidade".

13. Tornamo-nos próximos?

Francisco insiste novamente no ponto 81 sobre a questão-chave que precede a parábola do Bom Samaritano: "Quem é meu próximo?" E fá-lo para esclarecer que Jesus «desafia-nos a deixar de lado toda a diferença e, em presença do sofrimento, fazer-nos vizinhos a quem quer que seja. Assim, já não digo que tenho ‘próximos’ a quem devo ajudar, mas que me sinto chamado a tornar-me eu um próximo dos outros.

14. Pedes-me de beber, a mim?

O Papa mergulha na passagem do encontro de Jesus com a samaritana: "Como é que tu, sendo judeu, me pedes de beber, a mim que sou samaritana?" (Jo 4,9). E faz isso para explicar que «este encontro misericordioso entre um samaritano e um judeu é uma forte provocação, que desmente toda a manipulação ideológica, desafiando-nos a ampliar o nosso círculo, a dar à nossa capacidade de amar uma dimensão universal capaz de ultrapassar todos os preconceitos, todas as barreiras históricas ou culturais, todos os interesses mesquinhos»

15. Como reagir a quem se isola?

Na encíclica, Francisco distingue o termo próximo de sócio, isto é, daqueles que respondem com gratuidade àqueles que buscam benefícios pessoais em qualquer ação, porque só olham para si mesmos e não para os outros. É aí que pergunta: «Que reação poderia provocar hoje essa narração, num mundo onde constantemente aparecem e crescem grupos sociais, que se agarram a uma identidade que os separa dos outros? Como pode aquela impressionar pessoas que tendem a organizar-se de maneira a impedir qualquer presença estranha que possa turbar tal identidade e esta organização autodefensiva e autorreferencial?»

16. O que acontece sem a fraternidade?

Francisco aborda na encíclica os três pilares da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. A partir daí, pergunta: «Que sucede quando não há a fraternidade conscientemente cultivada, quando não há uma vontade política de fraternidade, traduzida numa educação para a fraternidade, o diálogo, a descoberta da reciprocidade e enriquecimento mútuo como valores?»

17. Existe igualdade?

Detendo-se na igualdade, denuncia que «Tampouco se alcança a igualdade definindo, abstratamente, que ‘todos os seres humanos são iguais’, mas resulta do cultivo consciente e pedagógico da fraternidade.» E ressalta que «aqueles que são capazes apenas de ser sócios, criam mundos fechados. Em semelhante esquema, que sentido pode ter a pessoa que não pertence ao círculo dos sócios e chega sonhando com uma vida melhor para si e sua família?».

18. Pode o mundo funcionar sem política?

Em 'Fratelli tutti' Francisco expõe o que poderia ser um manual para o exercício da política a partir do serviço e da caridade. E começa por fazer uma pergunta básica após constatar os «erros, a corrupção e a ineficiência de alguns políticos», bem como as «estratégias que visam enfraquecê-la, substituí-la pela economia ou dominá-la por alguma ideologia. E, contudo, poderá o mundo funcionar sem política? Poderá encontrar um caminho eficaz para a fraternidade universal e a paz social sem uma boa política?», declara.

19. Ternura na política?

O Papa afirma que «na política, há lugar também para amar com ternura». Assim, recupera a sua intervenção nas palestras do TED de 2017: ««Em que consiste a ternura? No amor, que se torna próximo e concreto. É um movimento que brota do coração e chega aos olhos, aos ouvidos e às mãos».

Além disso, Francisco coloca os políticos em frente ao espelho e exorta-os a olhar além da ‘maquilhagem mediática’. Ao pensar no futuro, alguns dias as perguntas devem ser: «Para quê? Para onde estou realmente apontando?» Passados alguns anos, ao refletir sobre o próprio passado, a pergunta não será: «Quantos me aprovaram, quantos votaram em mim, quantos tiveram uma imagem positiva de mim?» As perguntas, talvez dolorosas, serão: «Quanto amor coloquei no meu trabalho? Em que fiz progredir o povo? Que marcas deixei na vida da sociedade? Que laços reais construí? Que forças positivas desencadeei? Quanta paz social semeei? Que produzi no lugar que me foi confiado?»

20. É possível buscar a verdade?

«É possível prestar atenção à verdade, buscar a verdade que corresponde à nossa realidade mais profunda? Que é a lei sem a convicção, alcançada através dum longo caminho de reflexão e sabedoria, de que cada ser humano é sacro e inviolável?» Estas são as perguntas que o Papa faz ao explicar que a sociedade deve assumir «um sentido de respeito pela verdade da dignidade humana».

21. Um consenso manipulado?

Francisco aprofunda, na ‘Fratelli tutti’, acerca da necessidade de alcançar consensos na comunidade internacional que não sejam apenas uma mera encenação. Deste modo questiona: «Não poderia porventura suceder que os direitos humanos fundamentais, hoje considerados invioláveis, acabassem negados pelos poderosos de turno, depois de terem obtido o «consenso» duma população adormecida e amedrontada?»

22. Há preguiça para procurar os valores?

Diante da defesa de um “nós”, da consciência da fraternidade, Francisco adverte: «Não será, este individualismo indiferente e desalmado em que caímos, resultado também da preguiça de buscar os valores mais altos, que estão para além das necessidades momentâneas?».

23. Existe uma verdade permanente?

O Papa opõe-se ao relativismo e defende que só é possível chegar a um diálogo "enriquecido e iluminado por razões", quando se reconhece que existem "valores básicos" que «estes valores basilares estão para além de qualquer consenso. Reconhecemo-los como valores transcendentes aos nossos contextos e nunca negociáveis» Este é o ponto de partida para perguntar: «Se algo permanece sempre conveniente para o bom funcionamento da sociedade, não será porque atrás disso há uma verdade perene que a inteligência pode captar?»

24. Amamos a nossa sociedade?

Francisco recupera um dos seus discursos aquando da sua viagem ao Equador em 2015 para sustentar que a paz social só se constrói com a participação de todos: «Amamos a nossa sociedade, ou continua a ser algo distante, algo anónimo, que não nos corresponde, não nos insere, não nos compromete?».

25. Perdoar em nome de outra pessoa?

Quando se trata de abordar os processos de reconciliação após conflitos e guerras, o Papa lembra «de quem sofreu muito de maneira injusta e cruel, não se deve exigir uma espécie de «perdão social». «Quem se pode arrogar o direito de perdoar em nome dos outros? É comovente ver a capacidade de perdão dalgumas pessoas que souberam ultrapassar o dano sofrido, mas também é humano compreender aqueles que não o podem fazer. Em todo o caso, o que nunca se deve propor é o esquecimento», explicita.

Tradução Educris| Publicado originalmente em Vida Nueva

06.10.2020



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