Gn 1,1-2,2 [Sl 104]; Gn 22,1-18 [Sl 16]; Ex 14,15-15,1 [Ex 15];
Is 54,5-14 [Sl 30]; Is 55,1-11 [Is 12]; Br 3,9-15.32-4,4 [Sl 19];
Ez 36,16-17.18-28 [Sl 42]; Rm 6,3-11 [Sl 118]; Lc 24,1-12
1. «Este é o Dia que o Senhor fez!» (Salmo 118,25). Aleluia! Este é o Dia que o Senhor nos fez! Aleluia! Este é o Dia em que o Senhor nos fez! Aleluia! «Por isso, estamos exultantes de alegria» (Salmo 126,3). Aleluia!
2. Este é o Dia em que desfiamos com amor o rosário das tuas maravilhas, tantas elas são, percorrendo a avenida das tuas Escrituras desde a Criação até à Páscoa, desde a Páscoa até à Criação. Tanto faz. Porque neste Dia novo o tempo não nos mede e nos afasta e nos cataloga em séculos e milénios, mas põe-nos todos a conviver lado a lado. É assim que lemos e compreendemos que no teu «Filho amado», Jesus Cristo, «Imagem» tua e «primogénito de toda a criatura», «tudo foi criado» (Colossenses 1,16), «e sem Ele nada foi feito» (João 1,3). Lemos e compreendemos que o «teu Filho, Jesus Cristo, não foi Sim e não, mas unicamente Sim» (2 Coríntios 1,19). Passeámos assim no jardim da tua Criação boa e bela, visitámos as suas 452 palavras (Génesis 1,1-2,4a), e nelas não encontrámos um único «não», um único alçapão. Se o teu Filho amado, Jesus Cristo, Imagem tua e primogénito de toda a criatura, foi sempre Sim e nunca não, e se foi n’Ele que foram criadas todas as coisas, então a Criação inteira tem também de ser Sim, Sim, Sim, e nunca não.
3. Que belo mundo novo, Senhor, quiseste depositar nas nossas mãos! Que grande Sim nos confiaste, Senhor, antes de nós merecermos de Ti qualquer confiança! Visitámos depois o Egipto opressor, e de lá, Tu nos libertaste, Senhor, fazendo-nos atravessar a pé enxuto o mar Vermelho, como se fosse uma «planície verdejante» (Sabedoria 19,7). Vestíamos roupas brancas, trazíamos o coração em festa, e nos lábios um cântico novo, como sucede também ainda hoje, Senhor, neste Dia admirável da tua Ressurreição, em que cantamos outra vez com inefável alegria: «Minha força e meu canto é o Senhor! A Ele devo a minha liberdade!» (Êxodo 15,2).
4. Com Isaías e Ezequiel, recordámos depois as paisagens tristes e sombrias do nosso exílio, mas também da tua admirável protecção sempre presente. Diz uma velha história rabínica que, um dia, «os jovens perguntaram ao velho rabino quando começou o exílio de Israel. Ao que o arguto rabino terá respondido que o exílio de Israel começou no dia em que Israel deixou de sofrer pelo facto de estar no exílio». Compreenda-se, portanto, que o exílio verdadeiro não consiste simplesmente em estar longe de casa ou da pátria, mas sobretudo em tornar-se indiferente e insensível, sem causas, sem sonhos e sem esperas, gastando o nosso dinheiro com aquilo que não alimenta, e esquecendo o teu insistente convite: «Vinde e comprai sem dinheiro vinho e leite […]. Ouvi-me, ouvi-me, e comei o que é bom» (Isaías 55,1-3). Era assim que andávamos, Senhor, perdidos longe de ti e longe de nós. Mas também lá, à perdição em que andávamos, chegou a tua mão criadora, redentora, libertadora e carinhosa, e reconstruíste a nossa vida sobre a alegria, embelezaste o nosso rosto com óleo perfumado, e vestiste-nos com a veste branca dos teus filhos. E como se isto não enchesse a medida do teu amor sempre sem medida, ainda fizeste connosco uma Aliança nova, e deste-nos um coração novo e um espírito novo.
5. Coração novo, música nova, ensinada pelos Anjos nos campos de Belém: Gloria in excelsis Deo! Outra vez lado-a-lado, oh milagre da Escritura Santa, dois acontecimentos no tempo separados: o nascimento de Jesus e a sua morte e Ressurreição: lá estão os mesmos Anjos; as mesmas faixas a envolver o Menino e o Crucificado; o Menino deposto na manjedoura, o Crucificado deposto no sepulcro. Extraordinária acostagem do Menino e do Crucificado. E São Paulo a descodificar o nosso Batismo, pelo qual somos sepultados com Cristo, para com Ele ressurgirmos para uma vida nova (Romanos 6,3-5).
6. E assim chegamos sempre ao Ressuscitado, hoje visto através do relato de Lucas 24,1-12. Àquele Jesus Cristo, Crucificado, Morto e Sepultado, segundo as Escrituras, que se levanta do chão raso e da folha plana de papiro ou de papel, elevando a humana vida e a inteira Escritura à sua Plenitude. «Dia Um» da semana» (Lucas 12,1), cardinal e não ordinal, recupera o «Dia Um» da criação (Génesis 1,5). Nova Criação, portanto. Era, na verdade, muito grande aquela pedra que barrava a entrada e a saída do sepulcro (Marcos 16,3-4). Quem a pode retirar? A pedra da morte é sempre intransponível para as nossas forças. Tem, por isso, de ser trabalho de Deus. É assim que as mulheres que vão de madrugada ao sepulcro (mnêma ou mnêmeîon) (Lucas 24,1.2), que elas bem conheciam (Lucas 23,55), levam os aromas e perfumes que tinham cuidadosa e carinhosamente preparado (Lucas 24,1; 23,56), e encontraram a pedra do sepulcro retirada (apokekylisménon: part. perf. pass. de apokylíô) (Lucas 24,2), e, entrando, não encontraram o corpo do Senhor Jesus (Lucas 24,3). Estes dois acontecimentos deixaram as mulheres sem saber o que fazer, literalmente, «sem caminho» (aporéô) (Lucas 24,4). Póros significa caminho; áporos, com o prefixo privativo á, significa «sem caminho». Estando assim as mulheres completamente à deriva, desorientadas, eis logo junto delas dois homens com vestes relampejantes (astráptô) (Lucas 24,4b) como os anjos.
7. A pedra muito grande retirada, no tempo perfeito, representa a porta da habitação da morte para sempre aberta. O modo passivo (passivo divino ou teológico) do verbo revela que um tal afazer é coisa só de Deus. O facto de os homens, ou os anjos, serem dois caracteriza-os como testemunhas (cf. Deuteronómio 19,15) e acentua a autoridade do que disserem. As vestes relampejantes revelam a sua proveniência celeste (cf. Mateus 28,3). Este novo acontecimento da aparição junto delas dos dois homens com vestes relampejantes provoca nelas dois tipos de reação: uma reação interior – «ficaram cheias de medo» (émphobos genómenos) –, e uma reação exterior: «inclinaram o rosto para a terra» (Lucas 24,5), expressão só aqui usada em todo o NT e nos LXX. Os dois homens de proveniência celeste, duas testemunhas, falam ao mesmo tempo para as mulheres: «Por que procurais (tí zêteîte) entre os mortos «o Vivente» (tòn zônta)?» (Lucas 24,5b). A pergunta põe às claras o absurdo da ação das mulheres: tudo fazem para estar perto de Jesus, mas fazem-no no lugar errado! E acrescentam logo: «Não está aqui, mas foi ressuscitado (egérthê: aor. pass. de egeírô) (Lucas 24,6a). Não podemos deixar de reparar em Lucas 2,49, quando Jesus diz para Maria e José: «Por que me procuráveis (tí ezêteîté me)? Não sabíeis que nas coisas de meu Pai é necessário para mim estar?». Não sabiam Maria e José, como não sabem agora as mulheres. E nós?
8. Não é possível não reparar nos contrapontos: 1) As mulheres procuram o Vivente (ho zôn) no mundo da morte, no túmulo (mnêma ou mnêmeîon)! «O Vivente» (ho zôn) é linguagem paulina. Lucas é o único Evangelista que junta à linguagem da ressurreição a linguagem da vida (cf. Lucas 24,23; Atos 1,3; 3,15; 25,19). 2) As mulheres inclinam o rosto para o chão, e é celeste a proveniência dos dois homens! 3) O título de «Vivente», e não apenas «Ressuscitado» (literalmente «acordado»), mostra ainda com mais força que Jesus não «acordou» simplesmente para a vida de antes, como quando alguém acorda do sono, mas entrou numa nova condição de vida permanente, divina. Ele está vivo e presente. 4) No texto lucano, que estamos a seguir, as mulheres não são incumbidas de nenhuma missão destinada aos discípulos, e também não surge a Galileia como meta. A Galileia surge nos lábios dos dois homens com vestes relampejantes, não para indicar a meta, mas o lugar de origem que guardava as Palavras faladas (laléô), portanto, com carga de revelação, que Jesus lhes tinha dirigido acerca da sua morte e ressurreição (anísthêmi, anásthasis) (Lucas 24,6-7), que exprime já não «acordar», mas «levantar-se». 5) Esse falar novo de Jesus na Galileia, indicado pelos dois homens, é introduzido com uma única ordem: «Recordai» (mnêsthête, imper. aor. de mimnêskomai). E o narrador refere que elas se recordaram das Palavras (tà rhêmata) de Jesus (Lucas 24,8). Notemos a aproximação deste «recordar» (mimnêskomai) com «túmulo» (mnêma e mnêmeîon), que derivam da mesma raiz men-, que indica «menção», «recordação», «túmulo», aparecendo então este «recordar» como termo não de uma viagem física, mas de um processo mental. E acrescenta o narrador que elas, mesmo sem terem recebido nenhuma incumbência, anunciaram (apaggéllô) estas coisas aos Onze e aos outros com eles (Lucas 24,9).
9. Só agora, para realçar que o testemunho não é anónimo e desprovido de valor, o narrador refere os nomes de três mulheres: Maria Madalena, Joana e Maria de Tiago, e outras com elas, e volta a referir que elas diziam repetidamente (élegon) estas coisas aos apóstolos, mas que eles não lhes deram crédito, considerando aquelas palavras como uma léria (lêros) (Lucas 24,10-11), isto é, tratava-se só de palavras, sem nenhum facto que lhes correspondesse. Esta anotação da incredulidade mostra que os apóstolos não eram ingénuos e que a fé na Ressurreição de Jesus não foi inventada. E serve para pôr em destaque Pedro, que se levantou, correu ao sepulcro, inclinou-se, viu só as faixas, e voltou maravilhando-se (thaumázôn) (Lucas 24,12). Note-se que, em mundo judaico antigo, «correr» era um comportamento insólito num adulto, o que, neste caso de Pedro, deixa a descoberto um particular interesse e empenhamento. E aquele regresso «maravilhando-se», implica que também Pedro já entrou na avenida das maravilhas de Deus!
10. O relato evangélico é sóbrio, mas rico e denso. Fiel a esta intensa sobriedade, a arte cristã nunca se atreveu a representar a ressurreição antes dos séculos X-XI. É tal o fulgor da Luz deste mistério, que ficará sempre no domínio do inefável, que simultaneamente ilumina e esconde. É por isso que a Paixão é um relato, mas a Ressurreição, que põe fim ao relato, só nos pode chegar como Notícia, vinda de fora, como a Aurora.
11. É por isso que esta Noite é uma fulguração de Luz e Lume novo. Desde as brasas acesas, ao Círio Pascal aceso, ao nosso coração aceso como o dos discípulos de Emaús. É também por isso que o Batismo começou por ser chamado «Iluminação», sendo a Vigília Pascal também a grande Noite Batismal. E cada baptizado levará para sempre a arder dentro de si este Lume.
12. Ilumina, Senhor, a tua Igreja Santa, e os seus novos filhos que hoje nascem na fonte batismal. Que os nossos passos sejam sempre firmes, e o nosso coração sempre fiel. Vem, Senhor Jesus! Aleluia!
António Couto