Exaltação da Santa Cruz: «Para que o nosso coração não seja um ninho de víboras»

1. A Igreja celebra no dia 14 de setembro a Festa da Exaltação da Santa Cruz. É sabido que a Igreja Mãe de Jerusalém rapidamente fez do Santo Sepulcro o seu primeiro e mais venerado lugar de culto. Na sua luta implacável contra o culto cristão, o Imperador Adriano (117-138), sobretudo nos últimos anos do seu reinado, transformou Jerusalém, em termos de edifícios e de moral, numa cidade de estilo romano, a Aelia Capitolina. Para tanto, soterrou o Santo Sepulcro e paganizou-o, estabelecendo ali cultos pagãos com a clara intenção de dissuadir os cristãos de continuar a frequentar esses lugares pelo temor da communicatio in sacris. Assim, no lugar do Santo Sepulcro, pôs a estátua de Júpiter, e, no Calvário, pôs uma estátua de Vénus em mármore. O mesmo fez, de resto, em todos os lugares santos da Palestina. O projeto de Adriano não atingiu os seus fins, pois os judeo-cristãos continuaram a frequentar aqueles lugares, confundindo-se com os pagãos, que ali faziam ritos semelhantes, ainda que antitéticos. Neste sentido, conclui S. Jerónimo, que o imperador não conseguiu, como pretendia, apagar nas almas dos cristãos a fé na Ressurreição e na Cruz de Cristo. Não é de admirar, portanto, que, quando em 13 de Setembro de 326, por indicação de um habitante de Jerusalém, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, descobriu a Cruz do Senhor, tenham sido logo demolidas as construções pagãs. Foi assim que vieram à luz outra vez os primitivos e venerados lugares cristãos, que foram então englobados num magnífico edifício Constantiniano, consagrado no dia 13 de Setembro do ano 335, e que era formado pela basílica da Anástasis, que guardava no centro o Santo Sepulcro, o Triplo Pórtico, que abrigava o rochedo do Gólgota e o Martyrium, que guardava o lugar da crucifixão e morte do Senhor. No dia imediatamente a seguir à dedicação da Basílica, 14 de Setembro desse ano 335, teve lugar e origem a adoração da Cruz de Cristo, hoje, Festa da Exaltação da Santa Cruz. A peregrina Egéria, da Galiza, que em finais do século IV, visitou demoradamente os Lugares Santos, diz-nos que a Santa Cruz era então exposta à adoração dos fiéis duas vezes no ano: em 14 de Setembro e em Sexta-Feira Santa. Egéria descreve assim a adoração de Sexta-Feira Santa: «desde as 08h00 da manhã até ao meio-dia», «todos passavam, um por um: inclinam-se, tocam a Cruz com a fronte, e depois com os olhos a Cruz e a inscrição, a seguir beijam a Cruz e saem, sem que ninguém toque com a mão na Cruz» (Itinerarium, 36,5; 37,3).

2. E as coisas assim continuaram até ao ano 614, quando o rei persa Cosroé II conquistou Jerusalém e levou consigo a Santa Cruz. Neste dia, rezam as diferentes crónicas que documentam o sucedido no dia 20 de maio de 614, que «a Jerusalém do Alto chorava sobre a Jerusalém de baixo», tal era o grau de destruição, fúria, ódio, violência, sangue. Mas, em 630, a Santa Cruz regressa a Jerusalém por obra do imperador bizantino Eráclio que, em 628, tinha derrotado o louco Cosroé II.

3. São estes dois episódios históricos, dos séculos IV e VII, que fornecem o chão histórico para a Festa da Exaltação da Santa Cruz, que hoje celebramos. Anotamos, porém, que, mesmo sem estes episódios, e antes deles, a Cruz do único Senhor da nossa vida, Jesus Cristo, foi, segundo o Evangelho, exaltada para sempre diante dos nossos olhos.

4. É, nesse sentido luminoso, que temos hoje a graça de ouvir o Evangelho de João 3,13-17, que expõe a toda a luz o «Filho do Homem, que deve (deîser levantado (hypsôthênai: aor. inf. passivo de hypsóô), para que todo o que acredita nele tenha a vida eterna» (João 3,14b). Vê-se perfeitamente que Jesus está a expor diante dos olhos de Nicodemos e dos nossos, a Cruz Santa e Gloriosa em que Ele próprio, o Senhor da Vida, será crucificado, que o mesmo é dizer, na linguagem Joanina, exaltado e glorificado. Note-se a presença da mão de Deus, quer na necessidade teológica, expressa naquele deî, que reclama o plano divino, quer na forma passiva utilizada na acção deste levantamento. Também é importante a comparação explícita que o próprio Jesus faz do seu levantamento com a acção de Moisés: «Assim como Moisés levantou (hýpsôsen: aor. de hypsóô) a cobra no deserto» (João 3,14a). E não podemos também perder de vista que, com este dizer, Jesus se assume como o verda­deiro Servo de YHWH, que «será exaltado» (hypsóô) por Deus (Isaías 52,13), e se apresenta a si mesmo como transparência de Deus: «Quando tiverdes levantado (hypsóô) o Filho do Homem, então sabereis que “Eu Sou” (egô eimi), e que por mim mesmo nada faço, mas como me ensinou o Pai estas coisas falo (laléô)» (João 8,28). Paulo também dirá, na Carta aos Filipenses, acerca deste Jesus, que Deus o «sobreexaltou» (hyperhypsóô) (Filipenses 2,9).

5. Notemos, antes de mais, que o levantamento de Jesus, na Cruz, é em ordem a dar a vida eterna a todos os que crêem (João 3,15-16). É por isso que Jesus diz: «Quando eu for levantado (hypsóô) da terra, atrairei todos a mim» (João 12,32). E ainda: «Hão?de olhar para aquele que trespassaram» (João 19,37). Na verdade, para ter a Vida verdadeira, é necessario ver [= acre­ditar] o Filho (João 3,36; 6,40), Luz da Luz, que brilha sobre a Cruz, novo e último candelabro do amor de Deus (Actos 2,36). Ver o Filho é obra do Espírito Santo em nós (1 Coríntios 12,3). Para O ver é necessário ter nascido da água e do Espírito (João 3,5), isto é, do alto e de outra maneira (ánôthen) (João 3,3).

6. Ver o Filho do Homem levantado na Cruz é ver passar dois filmes: 1) o da nossa violência e malvadez, postas a descoberto naquele rosto desfigurado, naqueles chagas abertas, naquele sangue a escorrer ou já coalhado: está ali, bem diante de nós, a imagem do pecado que está escondido em nós; 2) passa ali também o filme do imenso amor de Deus, que não faz frente à minha violência, mas a abraça. Sendo Deus amor, então a única maneira que Ele tem de curar o meu pecado, não é decretar, lá do alto e de dentro das paredes douradas da sua eternidade, uma qualquer amnistia. A única maneira que Deus tem de me curar é descer ao meu mundo, viver no meu mundo, caminhar comigo, sujeitar-se às minhas maldades e tropelias, sofrê-las e absorvê-las. É só assim, desarmado e só amando, que pode dissolver e absolver o pecado que há em mim. «Deus amou tanto o mundo» (João 3,16). A cura não é mágica. Levantada e exibida bem diante dos nossos olhos, naquele rosto desfigurado e naquele sangue a escorrer, a imagem da violência, mentira, ódios, dentro de nós escondida, mas agora declarada, conhecemos agora a doença de que padecemos. Podemos, portanto, começar a tratar-nos. E o remédio também está ali exposto bem diante dos nossos olhos: é aquele amor e perdão subversivos!

7. Era então necessário que Jesus sofresse na Cruz, daquela maneira, por nós? Sim, porque, para nos salvar, Deus não podia senão amar-nos. E, para nos amar, tinha sempre de vir viver connosco, no meio de nós, e sujeitar-se naturalmente às maldades e violências daqueles que Ele amava. Se nós fôssemos todos bons, seguramente que Jesus não teria sofrido e morrido naquela Cruz. Porquê? Porque não era necessário? Simplesmente, porque, sendo nós todos bons, quem de nós ia fazer uma coisa daquelas?!

8. Atenção, portanto: a Cruz não é o nosso pecado. É a imagem do nosso pecado! O pecado, que está em nós, produziu aquela imagem. Sim, está ali a imagem da nossa violência e estupidez. Vendo a imagem, podemos ver o pecado, o mal que há em nós, habitualmente escondido e dissimulado. A Cruz também não é o amor de Deus. É a imagem do Amor de Deus!

9. Se olharmos agora para o texto do Livro dos Números 21,4-9, tudo fica claro. O pecado camuflava-se nos interstícios do coração do povo de Israel no deserto. O resultado era a murmuração contra Deus e contra Moisés, o não reconhecimento da acção libertadora de Deus no Êxodo e o desprezo do alimento dado por Deus, causa de fastio, e não de maravilha (Números 21,5). Como corrigir, com boa pedagogia, esta situação? Aí estão as cobras (nehashîm) venenosas, que mordem e matam (Números 21,6). A cobra é, por excelência, imagem do pecado. Esconde-se e dissimula-se como o pecado. E o veneno que transporta, igualmente dissimulado, conduz à morte, como o pecado. A cobra, como o pecado, anda dentro de nós, dissimulada nas pregas do nosso coração. É sintomático que o Livro do Génesis 3,14 refira que a cobra se alimenta de pó (?aphar). De pó (?aphar) foi modelado o homem (Génesis 2,7). Salta então à vista que a cobra se alimenta de nós. É um parasita perigoso. Como o pecado.

10. Moisés expõe num poste uma cobra de bronze. Quem olhar para ela, fica curado (Números 21,8-9). Não se trata de magia, mas, outra vez, do realismo bíblico. Note-se também, antes de mais, que não era uma cobra que Moisés fixava no poste, mas a imagem de uma cobra. Olhar bem para a imagem da cobra leva-nos a descobrir a cobra verdadeira que anda dentro de nós, o veneno que transportamos, que nos mata e mata os nossos irmãos. Feito o diagnóstico, reconhecido o mal de que padecemos, podemos então iniciar o processo da cura. É neste ponto preciso que a boa pedagogia de Jesus em João 3,14 nos leva a ver bem o Filho do Homem levantado como Moisés levantou a cobra no deserto.

11. O chamado «hino cristológico», que encontramos na Carta aos Filipenses 2,6-11, volta a pôr diante de nós o Filho de Deus, humilhado e exaltado, Jesus, que recebeu, na sua Humanidade, o Nome divino (ver também Hebreus 1,1-4), Nome incomparável (Filipenses 2,9). Por isso, agora, todos os seres criados adoram o Nome-Jesus (Filipenses 2,10), e «toda a língua», isto é, todo o ser humano racional, professa: «Senhor é Jesus Cristo!». Notar a ordem dos três termos, errada nas versões modernas: Senhor, isto é, Deus eterno, é o Homem-Jesus Cristo. O acento cai, pois, sobre Senhor. O fim em vista: a Glória do Pai com o Espírito (Filipenses 2,11). É quanto Deus operou na Cruz e semeou no nosso coração.

12. O Salmo 78 ensina-nos que a Bíblia é a longa história de uma salvação sempre oferecida, acolhida e, por vezes, rejeitada. Lembra-nos que que as maravilhas de Deus não são para guardar no cofre da família, mas para passar, de mão em mão, de coração a coração, de pais para filhos, de geração a geração. A catequese é o anúncio de um acontecimento em carne viva que nos deve comprometer, e não de uma série de frias ou requentadas teses teológicas.

 

Irei também, Senhor,

Em procissão de amor,

Beijar a tua Cruz.

 

E quando eu olhar para ti,

Para o teu rosto ferido e desfigurado,

Para as tuas muitas chagas a sangrar,

Dá-me a graça de aí ver bem o meu pecado.

 

E quando Tu, Senhor, olhares para mim,

Com esse meigo olhar de serena compaixão,

Dá-me a graça de aí ver o teu perdão nunca poupado,

E de sair com o coração transfigurado.

 

António Couto



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