«Ainda noite e já madrugada», padre António Martins

Aleluia!, porque Cristo venceu a morte e ei-lo Vivente, a abrir-nos as portas da morte.

          Aleluia!, porque a esperança vence o medo e nos coloca corajosos em novos e inesperados caminhos de vida e de futuro.

          Aleluia!, porque no meio do inferno do sofrimento e da morte, do distanciamento social, da solidão, vemos tão eloquentes e comovedores sinais e testemunhos de vida, de compaixão, de entrega generosa.

          O Aleluia que cantamos este ano brota mais intenso e mais autêntico. Ainda que limitados à estreiteza de nossa casas, vivemos e atravessamos uma páscoa no concreto, com o coração nas mãos, de carne viva, em risco. Gritamos Aleluia não rendidos ao pavor do medo e da morte, ainda que tenhamos, com Cristo, atravessados esse inferno.

          Tenho meditado no sentido crente que as atuais circunstâncias nos desafiam. A dimensão visceral, entranhada, concreta da condição cristã torna-se-me mais evidente, numa evidência irrecusável. Vê-se mais claro esta coincidência entre a paixão de Cristo e a paixão da humanidade numa única paixão, numa única páscoa. A fé pascal não é ideologia, nem teoria, é vida em drama, exposta ao risco, mas não rendida à fatalidade. É vida que recomeça, que se sabe, continuamente, regenerada, pelo Espírito que ressuscitou Jesus de entre os mortos e faz novas todas as coisas.

          O despojamento e a pobreza litúrgicas destes dias devolvem, com mais evidência, a beleza escondida da vida quotidiana, a solenidade dos gestos ousados de tantas pessoas de vida entregue, esgotadas «até ao fim», na sua entrega profissional. Nunca a Páscoa nos pareceu tão verdadeira, em sua expressão tão pobre e tão nua. Somos testemunhas dessa coincidência entre o celebramos na liturgia e a vida concreta. Na paixão, morte e ressurreição de Cristo interpreta-se a paixão de toda a humanidade nos dias de hoje, mas também a sua ressurreição, a esperança de um futuro regenerador, o voltar a uma normalidade que já não será a mesma. A ferida do presente será portadora de uma fecundidade no futuro. Atrevemo-nos a esperar uma humanidade nova, renascida do presente inferno.

          Por isso a palavras de uma antiga homilia do século IV são hoje tão atuais; são palavras para nós: «Levanta-te de entre os mortos; Eu sou a vida dos mortos; levanta-te minha imagem e semelhança; levanta-te, saímos daqui; Tu em Mim e Eu em ti; somos um só». Do inferno dos hospitais, dos cemitérios, dos lares de idosos, das famílias em luto, de tantas pessoas em solidão, pinta-se, hoje, pela ação do Espírito que faz novas todas as coisas o ícone da ressurreição: «Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente, estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e dos infernos» (Ap 1,17-18).

É sinal de ressurreição aquela cadeia de hotéis que já antecipou o pagamento do subsídio de Natal, evitando riscos maiores para os seus colaboradores; é sinal de ressurreição as centenas de voluntários que estão no terreno, cuidando, tratando e servindo. Tantos, tantos sinais pascais. Sinal do tempo presente de ressurreição aquele editorial de um jornal laico ao escrever: «Sendo o leitor crente ou não o sendo, esta pode ser uma época de esperança e de superação das dificuldades e provações» (Expresso, 10.04.2020, 34).

O evangelho narra-nos os primeiros raios da madrugada da Páscoa. João coloca em cena uma madrugadora, Maria Madalena, uma daquelas mulheres que esteve junto de Cristo na cruz, inteira. Ela é agora a primeira a rasgar a aurora enquanto era ainda escuro: «No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi de manha?zinha, ainda escuro, ao sepulcro». A narrativa parece contraditória: afinal era de manhãzinha ou ainda escuro? Talvez, numa verdade existencial, as duas dimensões sejam simultâneas.

Maria Madalena guarda a fidelidade de um amor inteiro, é a amada fiel. Em seu coração é já madrugada, porque nunca houve noite. Ela é guiada, como a Amada do Cântico dos Cânticos, pela intensidade do amor que a leva a procurar de noite o amado: «... pela noite, procurei o amado do meu coração» (Ct 31,1). Mas é ainda de noite, pois sente a dor da perda e vai ao sepulcro para fazer luto. Esta simbologia do contraste entre o «já» da madrugada e o «ainda» da noite diz bem a situação em que nos encontramos. No «ainda» do isolamento social precisamos de colocar «já» o desejo e a vontade do reencontro e do recomeço, de nos abraçarmos uns aos outros.

Um pormenor que surpreende no texto: o discípulo jovem, «aquele que Jesus amava», quando chega a sepulcro, não entra logo, espera que Pedro chegue e dá-lhe a honra de entrar primeiro. Que sentido retirar disto? «O discípulo amado» é a figura do discípulo fiel, que está ali até ao fim junto de Jesus na cruz; é a figura a que cada um de nós e chamado. Pedro é o discípulo que traiu e abandonou Jesus. Fugiu da cruz com medo. A coragem e o medo, a fidelidade e a traição, juntas à porta do sepulcro. Já estamos perante um milagre da ressurreição: a reconciliação entre os dois discípulos.

Poderia ter havida, da parte do «discípulo que Jesus amava», uma acusação, um feroz julgamento de Pedro, um repúdio... mas não. Com esse discípulo todos nós aprendemos a conter a tentação da acusação, do julgamento imediato do outro, a não apresentar uma superioridade moral. No atual clima de confinamento, as nossas casas podem ser lugar de explosão de conflitos e de acusações reciprocas. A atitude do discípulo que Jesus amava para com Pedro indica um caminho de ressurreição permanente no quotidiano das nossas relações: o perdão.

Não somos ingénuos nem ligeiros: à fé na ressurreição não se chega facilmente. Todas as evidências imediatas de morte, de medo, de destruição nos falam da finitude das coisas e da vida humana. Para os discípulos acreditar que o Senhor estava vivo, no meio deles, a ressuscitar as suas consciências, as suas relações, a sua interioridade ferida levou tempo, muito tempo. Ainda hoje temos resistência em acreditar na ressurreição Levamos tempo a entender, como os discípulos: «ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos». Com que paciência espera o Senhor a nossa decisão de fé, como esperou pelos discípulos!

O discípulo amado viu os sinais da morte (o sudário enrolado a um canto) e acreditou: «viu e acreditou». Viu para além do visível. Este é o olhar a que a fé no Ressuscitado no desafia. Um olhar portador de esperança e de futuro.

 
Padre António Martins
Capela do Rato
professor na Faculdade de Teologia|Lisboa



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