Gn 15,5-12.17-18; Sl 27; Fl 3,17-4,1; Lc 9,28-36
1. Batizado no Jordão enquanto estava em oração (nota típica de Lucas), por três vezes posto à prova na sua condição de Filho de Deus, isto é, de batizado, mas saindo Vitorioso das provas, Jesus começou a executar o seu programa filial batismal que tem por meta a Cruz Gloriosa (Batismo consumado!) em que nós somos por Ele batizados com o fogo e com o Espírito Santo (ainda o luminoso texto de Lucas 12,49-50). Entre o Jordão e a Cruz Gloriosa aí está, no Evangelho deste Domingo II da Quaresma (Lucas 9,28-36), a Transfiguração, Luz incriada e inacessível (Lucas 9,29; cf. Salmo 104,2; 1 Timóteo 6,16) que investe a Humanidade de Jesus, experiência momentânea da Ressurreição, mediante a qual o Pai confirma o Filho na sua missão filial batismal, já iniciada, mas ainda não consumada. Também aqui temos a nota típica de Lucas de que Jesus subiu ao monte para orar (Lucas 9,28), acontecendo a Transfiguração do Rosto e das vestes enquanto orava (Lucas 9,29). Jesus que reza é uma constante em Lucas: 3,21; 5,15-16; 6,12-16; 9,18-20; 9,28-29; 10,21; 1,1; 22,31-32; 22,39-46; 23,33-34; 23,44-46; 24,50-51. Quanto ao monte da oração e da Transfiguração, foi a tradição cristã a localizá-lo no Tabor, no meio da planície da Esdrelon ou de Jesrael. Depois de várias hesitações e propostas de diferentes cenários, desde o monte das Oliveiras (relato do peregrino de Bordeaux, em 333), passando pela oscilação entre o Tabor e o Hermon (Eusébio de Cesareia no seu Onomastikon, escrito entre 326-330), foi Cirilo de Jerusalém, no ano 348, a fixar definitivamente estes acontecimentos no Tabor.
2. Batizado para a Cruz Gloriosa, Confirmado para a Cruz Gloriosa. As mesmas palavras do Pai no Batismo e na Transfiguração, mudando embora o modo direto e íntimo, em 2.ª pessoa, em que o Pai se dirige a Jesus: «Tu és o Filho meu» (Lucas 3,22), para o modo de apresentação aos presentes, em 3.ª pessoa, em que o Pai se dirige, não somente a Jesus, mas também aos três discípulos (Pedro, João e Tiago): «Este é o Filho Meu», «o Eleito» (Lucas 9,35), agora seguidas pelo imperativo «Escutai-o!», indicando Jesus como sendo também o «Profeta novo», como Moisés, prometido em Deuteronómio 18,15-18. A ordem habitual dos três discípulos é: Pedro, Tiago e João. Lucas inverte a ordem dos dois últimos nomes para João e Tiago. Ao nomear João antes de Tiago, e juntando João a Pedro, Lucas salienta o papel futuro deste par de discípulos, como se pode ver em Lucas 22,8; Atos 3,1-10; 4,1-22; 8,14-25. Para validar um acontecimento, a Lei antiga requeria duas ou três testemunhas (cf. Deuteronómio 17,6). Por isso, testemunham a cena grandiosa da Transfiguração os três discípulos já aludidos, os quais são igualmente transfigurados, não no Rosto e nas vestes, mas na mente e no coração, habilitados assim para a sua missão futura (após a Ressurreição com a dádiva do Espírito) de dar testemunho d’Ele.
3. Aparecem Moisés e Elias que falam com Jesus Transfigurado (Lucas 9,30). É para Ele que aponta todo o Antigo Testamento! As «Escrituras», Moisés, todos os profetas e os Salmos falam acerca d’Ele! (Lucas 24,27 e 44; João 5,39 e 46; Atos 10,43). É o «segundo as Escrituras» que os discípulos também devem testemunhar. Só em Lucas temos o conteúdo do que falam Moisés e Elias: «falavam do Êxodo d’Ele (éxodos autoû) que se consumaria em Jerusalém!» (9,31). Passagem deste mundo para o Pai, Liberdade definitiva, cumprimento do Êxodo antigo! É este o sentido do Êxodo referido neste lugar, e que faz equilíbrio com o «Ingresso d’Ele» (eísodos autoû), referido em At 13,24, com que se indica o ingresso ou a entrada de Jesus na história humana. Do Pai até ao nosso mundo (eísodos). Do nosso mundo até ao Pai (éxodos). O episódio da Transfiguração de Jesus constitui uma verdadeira encruzilhada em que se cruzam e encontram as estradas da história da salvação, do Antigo e do Novo Testamento: o Sinai e Moisés, Elias e a profecia, o Filho do Homem de Daniel e o Servo de YHWH de Isaías, o batismo de Jesus, a ressurreição, e a sua vinda gloriosa. A voz vinda da nuvem esclarece perante os discípulos a identidade de Jesus: «Este é o Filho meu…», mas esclarece também a identidade dos discípulos cuja atitude fundamental reside na escuta qualificada: «Escutai-O!» (Lucas 9,35).
4. Pedro, sempre ele, em nome dos discípulos de então e de sempre, tenta impedir Jesus de prosseguir a sua missão filial batismal até à Cruz: «Mestre, bom é estarmos aqui e fazermos aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias» (Lucas 9,33). As tendas podem aludir à festa das Tendas, e carrear o significado da proteção de Deus. Na realidade, o uso do advérbio de lugar «aqui» (hôde) parece indicar que Pedro capta apenas parcialmente o significado do acontecimento, querendo dizer que ele pretende congelar o tempo neste momento preciso, em vez de seguir Jesus até à Cruz. Aqui significará então deter-se no penúltimo e provisório e recusar caminhar para o último e definitivo! Lucas 9,33 (e Marcos 9,6) anotam corretamente que «não sabia o que dizia». Não sabia, porque ainda não tinha sido batizado com o Espírito Santo e com o fogo; quando o for, saberá também ele, discípulo fiel, batizado / confirmado, levar por diante a missão filial batismal em que foi investido, e dará testemunho até ao sangue.
5. A Ressurreição é a Transfiguração tornada permanente, eterna. Todos os batizados / confirmados estão destinados à mesma Ressurreição / Transfiguração da Humanidade do Senhor, a divinização por graça.
6. Em consonância com a manifestação de Luz do Evangelho da Transfiguração (Lucas 9,28-36), aí está o Lume Aceso, que é Deus, a passar pelo nosso mundo (Génesis 15,5-12 e 17-18). Abraão representa-nos. Tem dúvidas. Deus dissipa-lhas, comprometendo-se com ele e connosco. O ritual que sela este compromisso é antigo, mas ainda hoje se pratica entre os beduínos. Cortam-se ao meio animais puros, e põe-se uma metade diante da outra. A seguir os contraentes passam entre as carnes divididas dos animais, proferindo uma auto maldição, do género: «Suceda-me o que sucedeu a estes animais, se eu não for fiel à palavra dada!». Note-se que, no texto de hoje, caiu sobre Abraão (e nós com ele) um sono profundo, dom de Deus. Sim, Deus também dá sono e faz sonhar! Há, nas páginas da Escritura Santa, um sono ritual dado por Deus ao homem, um sono que não dormimos porque temos sono, mas um sono milagroso, que só Deus pode e sabe fazer dormir ao homem. A Escritura Santa chama a este sono ritual, na língua hebraica, tardemah. É o sono/sonho de Deus. É o sono que, por amor, Deus deu a Abraão (Génesis 15,12) e a Pedro, João e Tiago (Lucas 9,32), para só citar dois grandes textos Hoje lidos. Deus dá um sono e um sonho. Transfiguração. Transfigura a nossa desfiguração, e, por amor, a si nos configura. Configuração. Toda a figura está aberta à sua realização. Mas a realização não sucede à figura: enche-a! Jesus Cristo não aparece depois do Antigo Testamento: está no meio dele: enche-o! Transfigura-o. Transborda dele!
7. Este sono/sonho ritual a nós dado e dado a Abraão é importante. Enquanto isso, é só Deus que passa, no fogo, por entre as carnes divididas dos animais. Só Ele, portanto, se compromete. Nós, ensonados e ensonhados, somos apenas beneficiários deste compromisso de Deus de levar a nossa história em direção a Cristo, que é a verdadeira descendência de Abraão (Gálatas 3,16), que Abraão vê e saúda de longe (Hebreus 11,13), cheio de alegria (João 8,56). A meta de Abraão torna-se clara e define e alumia a estrada que segue. Por isso, Abraão não se despede do passado, e faz ao futuro um aceno de esperança e de alegria. É tão simples, tão novo e tão decidido este sono/sonho dado a Abraão, a Pedro, João e Tiago! Talvez devamos mesmo seguir o conselho de Isaías, o profeta: «Olhai para Abraão, vosso Pai» (Isaías 51,2). E partir com ele daqui, do penúltimo e provisório, ao encontro de Cristo Transfigurado / Ressuscitado.
8. A Carta de S. Paulo aos Filipenses (3,17-4,1) põe outra vez tudo às claras: ou agarrados aqui ao penúltimo e provisório, ou a caminho do Último, da cidade dada por Deus aos seus filhos e filhas, vida nova e transfigurada e conformada à Humanidade glorificada de Jesus.
9. O Salmo 27 é belo e expressivo. Pode deixar-nos nos braços de Deus, cantando e decantando a luz e a confiança que d’Ele recebemos. Mas também a suavidade, a bondade e a beleza que nos encantam. Corolário normal, ainda que sempre de excecional elevação, para este dia e para esta liturgia, que nos deixa sempre tranquilos a brincar à porta da Casa de Deus!
10. A Quaresma é esta estrada de Luz e de Jesus, que vem de Deus, e para Deus caminha. Não sozinho, mas connosco.
António Couto
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