Dt 26,4-10; Sl 91; Rm 10,8-13; Lc 4,1-13
1. Só secundariamente a Quaresma «prepara» para a Ressurreição do Senhor. Na verdade, todos os «Tempos» e todos os Domingos do Ano Litúrgico, portanto, também a Quaresma e os seus Domingos, estão depois da Ressurreição e por causa da Ressurreição. E é só sob a intensa luz do Senhor Ressuscitado com o Espírito Santo (Batismo consumado: Lucas 12,49?50) que a Igreja, e cada um de nós, pode celebrar autenticamente a sua fé, proceder à correta «leitura» das Escrituras e encetar a «caminhada» quaresmal. Neste sentido, todos os batizados são chamados a refazer com Cristo batizado o seu programa batismal, cujo conteúdo e itinerário conhecemos: desde o Batismo no Jordão, passando pela Transfiguração no Tabor, até à Cruz eà Glória da Ressurreição (Batismo consumado!), escutando e anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho do Reino e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as «obras» do Reino (Atos dos Apóstolos 10,37-43: texto emblemático). Por sua vez, os catecúmenos, acompanhados sempre pela Assembleia dos batizados, «preparam?se» intensamente para a Noite Pascal Batismal, início e meta da vida cristã. Assim, a Igreja Santa, toda Batizada e Crismada, sabe bem que é dali, daquela Cruz Santa e Gloriosa, e da enxurrada de Vida Nova, Ressuscitada, e da dádiva do Espírito que dela jorra, que nos é oferecida a «consumação» (teleíôsis) (cf. João 19,28-30), o cumprimento, a chegada à perfeição da nossa vida, deste segmento de tempo que, por graça, nos é dado viver.
2. Cumprido o ritual da «Apresentação de Jesus ao Senhor, seu Deus», no Templo de Jerusalém, 40 dias após o seu nascimento, tudo conforme a Lei de Moisés e de Deus (Lucas 2,22-39a), Jesus é levado para a Galileia, para a sua cidade de Nazaré (Lucas 2,39b). De lá regressa a Jerusalém, juntamente com José e Maria, quando tinha completado 12 anos, para a festa de peregrinação da Páscoa (Lucas 2,41-50). Depois de algumas peripécias e importantes sinais, regressa de novo a Nazaré (Lucas 2,51). Salta entretanto para a cena João Batista, que vai para o deserto, do outro lado do Jordão, e aí prega a Boa Nova e batiza as multidões, alguns publicanos e os soldados, e anuncia a vinda iminente do Messias (Lucas 3,1-18). Foi entretanto preso por Herodes Antipas, filho de Herodes o Grande, que, no dizer de Flávio Josefo, o meteu na fortaleza de Maqueronte (Lucas 3,19-20). Diz-se logo de seguida (Lucas 3,21-22) que Jesus também foi batizado, assumindo o batismo de Jesus algumas particularidades: 1) não foi batizado por João Batista, que já tinha sido preso; 2) logo após o batismo, Jesus encontrava-se em oração, como aliás sucede muitas vezes neste Evangelho (cf. 5,6; 6,12; 9,18.28-29; 11,1; 22,41.44.45; 23,34.46); 3) o céu abre-se, pondo em comunicação o mundo divino e o humano; 4) o Espírito Santo desceu sobre ele; 5) do céu veio uma voz: «Tu és o Filho meu, o Amado, em ti me comprazo». Em Lucas (3,22), como em Marcos (1,11), a voz do céu faz-se ouvir em 2.ª pessoa: «Tu és (sù eî) o Filho meu, o Amado, em ti me comprazo». Importa, pois, salientar desde já esta vinculação do Pai e do Filho, bem como a sua proximidade e intimidade (só entre os dois; não se trata de uma declaração pública). Do Pai, que fala diretamente para o seu Filho a quem declara o seu amor e comprazimento. Do Filho, que não age por conta própria, mas faz a vontade do Pai. Em Mateus 3,17, de forma diferente, a voz do céu faz-se ouvir em 3.ª pessoa, constituindo, aí sim, uma declaração pública (Deus dá a conhecer o seu Filho): «Este é (houtós estin) o Filho meu, o Amado, em quem me comprazo». É importante apercebermo-nos então de que, em Mateus, este dizer do Pai se dirige a nós, revelação ou proclamação a nós feita, pois a voz do Céu faz-se ouvir em 3.ª pessoa: «Este é o Filho meu, o Amado, em quem me comprazo», ao contrário do que sucede em Marcos e Lucas, em que temos um Tu-a-Tu, e não uma declaração ou instrução para nós.
3. Os últimos versículos de Lucas 3,23-38 narram a genealogia de Jesus, confirmando a voz celeste (Lucas 3,22) acerca da filiação divina de Jesus. Não é intenção da genealogia a exatidão histórica, mas mostrar a pertença de Jesus ao povo eleito. Todavia, a genealogia apresentada por Lucas mostra-se totalmente original. De facto, todas as genealogias (também a de Mateus 1,1-17) apresentam forma descendente, segundo o esquema X gerou Y. Lucas, ao contrário (e é o único em toda a Bíblia), segue um esquema ascendente, tipo Y filho de X. Por que é que Lucas procede assim? Porque lhe interessa mais o estatuto do filho que o do pai, acentuando assim a dupla origem, humana e divina, de Jesus. Neste seu procedimento, Lucas enumera 77 gerações, e, outra vez ao contrário de Mateus, não nomeia nenhuma mulher. Vai diretamente a Adão, «o pai do mundo» (Sabedoria 10,1), e depois, de forma surpreendente, a Deus. Com esta estratégia, Lucas consegue inserir a origem de Jesus dentro da criação. Deus é o criador de Adão e de cada ser humano (Atos dos Apóstolos 17,29). Então, Jesus é «verdadeiro homem», está dentro da humanidade. Neste domínio, em que a relação entre Deus e Adão é claramente evocada, compreende-se também a particular relação da filiação divina de Jesus, de que já falaram Gabriel (cf. Lucas 1,35) e a voz vinda do céu (cf. Lucas 3,22).
4. Batizado com o Espírito Santo que desce sobre Ele, restabelecida a comunhão e comunicação entre o céu e a terra, o divino e o humano, e recebendo diretamente do Pai os títulos de «o Filho meu», «o Amado», «o meu Enlevo» (Lucas 3,21-22), e vendo clarificada a sua inserção na teia humana do povo eleito e a sua filiação divina (Lucas 3,23-38), aí está Jesus, cheio de Espírito Santo, afastando-se do Jordão e sendo conduzido pelo Espírito no deserto, onde é posto à prova (peirazómenos) pelo diabo durante 40 dias (Lucas 4,1-2), e aí estamos nós a entrar no Evangelho deste Domingo I da Quaresma (Lucas 4,1-13), conhecido por «tentações de Jesus», mas é melhor traduzir por «provas» (peirasmoí). Note-se, porém, já à entrada deste episódio das «tentações» ou «provas» a que é sujeito Jesus, que toda a «tentação» ou «prova» vai incidir sobre dois fios entrelaçados que vêm de trás: «Tu és o Filho meu» (Lucas 3,22), da cena do batismo, e o acento posto sobre o filho, que percorre toda a genealogia (Lucas 3,23-38). Se Jesus é conduzido pelo Espírito, então é sinal que a prova é querida e apoiada por Deus. Enfrentar e ultrapassar uma grande prova antes de se entrar na vida pública é um tema recorrente na literatura antiga, também bíblica: veja-se a clamorosa vitória de Saul sobre os amonitas (1 Samuel 11,1-11), antes de ser proclamado rei em Guilgal (1 Samuel 11,15). A prova tem lugar no deserto, onde Israel, à saída do Egito, tinha sido também posto à prova. Jesus como Israel: confiar em Deus, que é o único que pode sustentar no deserto, dando pão, carne e água (cf. Êxodo 15-17), ou voltar atrás para as «panelas de carne» (cf. Êxodo 16,3) e as «cebolas do Egito» (cf. Números 11,5). 40 dias: na Bíblia, este segmento de tempo traduz um período decisivo vivido com Deus: o dilúvio (cf. Génesis 7,12); Moisés no monte Sinai (cf. Êxodo 24,18; 34,28); Elias no deserto (1 Reis 19,8). O diabo: trata-se do adversário por excelência, o Satan de Job 1,6-8.12; 2,1-7, o acusador, o caluniador, o máximo divisor ou separador comum, que tenta separar os homens uns dos outros e de Deus, como tenta separar Jesus do Pai.
5. A tentativa de separar Jesus do Pai começa com o diabo a dizer para Jesus: «Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se transforme em pão» (Lucas 4,3). Com esta formulação, o diabo não pretende levantar qualquer dúvida acerca da identidade de Jesus. O que o diabo pretende fazer é levar Jesus a interpretar a sua condição filial como um poder autónomo, separando-se do Pai. Jesus não entra neste jogo respondendo ao diabo com palavras suas, mas destrói logo à raiz a proposta do diabo, citando e apoiando-se em uma palavra de Deus: «Nem só de pão vive o homem…» (Deuteronómio 8,3). Na verdade, todas as respostas de Jesus serão sempre com palavras do Deuteronómio. Ou seja: Jesus não responde ao diabo com palavras suas, rejeitando assim a autonomia proposta pelo diabo, mas responde com a vontade de Deus expressa na Escritura Santa. É na sua condição de batizado, isto é, de Filho de Deus, que ele é tentado ou posto à prova pelo diabo, que pretende desvincular Jesus de Deus. Toda a tentação, a de Jesus como a nossa, começa sempre da mesma maneira: «se és Filho de Deus…», e incide sempre sobre a nossa condição de batizados. Atente-se em como se repete nos mesmos termos sob a Cruz (Lucas 23,35-39). Portanto, sempre. Do Batismo até à Morte, a tentação ou a prova visa afastar e separar Jesus de Deus, como visa igualmente afastar-nos a nós de Deus, e pôr-nos ao serviço do «deus deste mundo» (2 Coríntios 4,4; cf. João 12,31).
6. Portanto, a primeira tentativa do diabo de desvincular Jesus de Deus é levar Jesus, no deserto, a fabricar o próprio pão, a que podemos chamar por isso, com verdade, o pão que o diabo amassou, em vez de receber o pão da Palavra dado por Deus (Deuteronómio 8,3) aos seus amigos até durante o sono (Salmo 127,2) (Lucas 4,3-4). Em segundo lugar, vem a oferta de todos os reinos deste mundo e da sua glória em troca do afastamento de Deus (Lucas 4,5-7). E a resposta decidida de Jesus, remetendo outra vez para a Escritura Santa e para Deus: «Está escrito: “Adorarás ao Senhor, teu Deus, e só a Ele prestarás culto”» (Lucas 4,8; cf. Deuteronómio 6,13). Em terceiro lugar, a tentação do sucesso religioso fácil em Jerusalém, acompanhada do sonho de escapar da morte, que o diabo apoia na citação do Salmo 91,11-12, é taxativamente recusada por Jesus, com a citação: «Está escrito: não porás à prova o Senhor teu Deus» (Lucas 4,9-13; cf. Deuteronómio 6,16). Para quem tem diante dos olhos o texto de Mateus 4,1-11, aperceber-se-á de imediato da troca de lugar da segunda e da terceira tentação ou prova. Fácil de compreender: em Lucas, Jerusalém é o centro do mundo, é lá que Jesus aparece logo aos 40 dias (Lucas 2,22), aos 12 anos (Lucas 2,41), é para lá que Jesus caminha na secção central deste Evangelho (Lucas 9,51-19,28), é lá que se sucedem os últimos episódios da sua vida, é lá que os discípulos são mandados esperar (Lucas 24,49-53), em vez de se dirigirem para a Galileia. Convém, portanto, que a terceira tentação decorra em Jerusalém. De resto, neste Evangelho, para realçar Jerusalém, quase todos os outros lugares são nivelados pelo dizer comum: «estando Ele em uma cidade…» (Lucas 5,12), «num certo lugar…» (Lucas 11,1; 17,12).
7. Extraordinária a lição do Livro do Deuteronómio 26,4-10: aqui estou, meu Deus, orientando a minha vida toda para Ti, oferecendo-Te os primeiros frutos desta Terra boa e bela que nos destes, depois de nos teres chamado do meio da confusão e dado a liberdade! Eu canto para Ti, meu Deus, pois é a Ti que devo a minha liberdade e a bondade e beleza da minha vida! Este belo texto é uma miniatura, um colar (harizah) de pérolas do Teu amor por nós, que devemos levar sempre connosco, como se fosse uma fotografia Tua! O chamamento dos pais, a libertação do Egito, a dádiva da Terra Prometida.
8. E a lição da Carta aos Romanos 10,8-13: na minha vida toda, no meu coração e na minha boca, no coração a fé, na boca o testemunho, escorre o sabor da Tua Palavra, doce como o puro mel dos favos!
9. O Salmo 91 é um poderoso grito de confiança em Deus, que vela por nós em todos os momentos da nossa vida, sobretudo nos mais difíceis. A piedade popular tem este Salmo em muito apreço. Basta ver, no Doutor Jivago, de Boris Pasternak, o soldado encontrado morto numa batalha, que levava ao pescoço, cozidos num velho pedaço de pano, alguns versículos deste Salmo. Os vv. 11-12: «Ele mandou aos seus anjos que te guardem em todos os teus caminhos;/ eles sustentar-te-ão em suas mãos para que os teus pés não tropecem em alguma pedra», são citados pelo diabo no Evangelho de hoje (Lucas 4,10-11), com colorido mágico. O Salmo e Jesus propõem, claro, uma atitude de confiança, não mágica, mas verdadeira, em Deus. E nós cantamo-los hoje, com o coração dorido, por todos os nossos irmãos caídos sob as bombas na Ucrânia e por esse mundo fora.
António Couto
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