Domingo XXIII do Tempo Comum: «Bem todas as coisas fez!»

Is 35,4-7a; Sl 146; Tg 2,1-5; Mc 7,31-37

1. Em termos de caixilho geográfico, a cura de um surdo-mudo narrada no Evangelho deste Domingo XXIII (Marcos 7,31-37) decorre fora das fronteiras de Israel, a oriente do mar da Galileia, na Decápole. Além do episódio de hoje, o Evangelho de Marcos regista apenas mais três episódios fora das fronteiras de Israel: também na Decápole (Gerasa), a cura de um endemoninhado (Marcos 5,1-20) e a segunda «multiplicação» dos pães (Marcos 8,1-9), e a noroeste, na região de Tiro, o episódio da mulher sirofenícia (Marcos 7,24-30), que antecede o episódio de hoje. Estas «saídas» do Evangelho em pessoa, que é Jesus, para terra pagã baralham os nossos esquemas de «antes» e «depois» [primeiro os judeus, depois os gregos], próprios da nossa mentalidade fechada, baralham também os nossos mapas geográficos – a viagem de Tiro para Sídon (mais a Norte), e de lá para a Galileia e a Decápole (a Sul de Sídon e de Tiro) –, mas não baralham os planos de Deus, e enquadram-se perfeitamente nos caixilhos do seu amor. Além disso, podem ser vistos ainda como uma prolepse da futura pregação do Evangelho entre os pagãos.

2. Sendo um entre muitos relatos de cura por parte de Jesus, este episódio da cura de um surdo-mudo apresenta uma fisionomia própria assente em traços singulares. As pessoas trazem o pobre homem, surdo (kôphós), totalmente incapaz de ouvir, e que «fala com dificuldade» (mogilálos). «Falar com dificuldade» é o significado que a etimologia sugere para o termo grego mogilálos, mas o mesmo termo aparece com o significado de «mudo» na única vez que é utilizado pela versão grega dos LXX (Isaías 35,6). Talvez a lição mais óbvia acabe por ser «que falava com dificuldade», uma vez que, quando é curado por Jesus, o narrador dirá que «falava corretamente» (elálei orthôs) (Marcos 7,35). Pelos dois motivos, por não ouvir e por falar com dificuldade ou mesmo não falar, por estes defeitos físicos que o afetavam, este pobre homem estava impedido de entrar na assembleia de Deus (os deficientes físicos e com outras deficiências não tinham acesso ao Templo). Dados os seus defeitos notórios, as pessoas (sujeito indeterminado) aproveitam a presença de Jesus para lhe pedir que imponha as mãos àquele homem deficiente (Marcos 7,32). O texto não o diz, mas quem faz o pedido tem em vista certamente a cura. Em vez de lhe impor as mãos, como lhe foi pedido, Jesus faz uma série de ações mais personalizadas, sinal da sua afeição pelos pobres e excluídos: 1) toma o homem à parte, para longe da multidão (Marcos 7,33a); 2) toca com as suas mãos os ouvidos daquele homem, e com saliva toca-lhe a língua (Marcos 7,33b); 3) ergue os olhos para o céu (Marcos 7,34a); 4) suspira (Marcos 7,34b); 5) diz para o surdo-mudo: «Effatha, abre-te!» (Marcos 7,34c).

3. Jesus atende sempre a nossa súplica. Mas não sempre como nós lhe pedimos. Assim: não impôs as mãos àquele homem, de acordo com o pedido, mas tocou com as suas mãos os seus ouvidos, e com saliva tocou-lhe a língua. Entenda-se já este gesto e mais do que este gesto: é tocando com as suas mãos tudo o que está doente, que Jesus o assume e o cura. É assumindo a nossa carne toda de debilidade, pecado, recusa e violência, que Jesus cura a nossa humanidade ferida e pecadora. Ergue os olhos para o céu: gesto sacerdotal da oração sacerdotal de Jesus (João 17,1). Suspirou: suspirar (stenázô) é rezar com emoção interior e interceder por nós à maneira do Espírito, que Paulo diz que intercede por nós com «suspiros inefáveis, isto é, sem palavras» (stenagmòs alálêtos) (Romanos 8,26). O gesto de erguer os olhos para o céu, gesto de oração, logo traduzido no suspiro mostra que Jesus age em especialíssima relação com o Pai. De resto, no contexto de uma cura, só aqui Jesus ergue os olhos para o céu; do mesmo modo, só Marcos recorda o suspiro de Jesus (7,34; 8,12). Riquíssima simbologia. Também só aqui (Effatha) e em Marcos 5,41 (Thalitha kûm), a ordem de Jesus aparece pronunciada em aramaico, e depois traduzida para grego. Effatha [= etftah, de ptah, «abrir»]. Effatha, «abre-te». Thalitha kûm, «filha, levanta-te».

4. Depois desta sequência de gestos de Jesus, que culmina com aquela ordem (Effatha, abre-te), o sucesso surge imediatamente: o surdo-mudo abre-se, e começa a ouvir e a falar corretamente (Marcos 7,35). E a multidão reage manifestando um estado de maravilha (exeplêssonto: imperf. pass. de ekplêssô) para além de todas as medidas (hyperperismós) (Marcos 7,37a), expressão que não encontramos em mais nenhum lugar do Evangelho. E a palavra que acompanha o espanto: «Bem todas as coisas fez: os surdos faz ouvir e os mudos falar» (Marcos 7,37b). Enorme afirmação. Atravessa a Escritura inteira para se enlaçar com a afirmação de Deus em Génesis 1,31: «Deus viu tudo o que tinha feito, e era tudo demasiado bom!». «O fazer bem» ou «bom» de Jesus revela que está em curso a obra da nova criação, e que Jesus está em plena comunhão com Deus.

5. O modo como é compreendida a obra admirável de Jesus, e o modo como é dita pelas palavras do povo carregadas de espanto e maravilha, é coisa única e inédita no Evangelho e representa um dos cumes na compreensão da obra de Jesus. Sintomaticamente, à notícia da cura milagrosa insistentemente divulgada pelas pessoas (Marcos 7,36) não se segue a notícia habitual que tenham sido pedidas logo outras curas, como sucede habitualmente (cf. Marcos 1,45), mas, em vez disso, é proclamada a importância capital das ações de Jesus (Marcos 7,37). E isto aconteceu numa região habitada por pagãos. Foi aqui que Jesus abriu os ouvidos do surdo e soltou a língua do mudo. Tempos novos cantados por Isaías 35,5-6. Tempo novo de contemplação de quem sabe ver o essencial da missão de Jesus.

6. Sim, esta cura de Jesus tem um carácter único. Fica claro para quem lê o texto que sobre a base dos prodígios realizados por Jesus não se levanta uma avalanche de novos pedidos de novas realizações prodigiosas, como é habitual; em vez disso, vê-se que é compreendido o verdadeiro alcance e sentido da missão da Jesus. Há uma grande afinidade entre o anúncio feito por Jesus: «Fez-se próximo de vós o Reino de Deus» (Marcos 1,15), e a confirmação feita pelo povo: «Bem todas as coisas fez» (Marcos 7,37). A afinidade radica no carácter definitivo e na importância universal do que está a acontecer. Em Jesus, o poder de Deus está definitivamente presente. A nova criação já está a acontecer, e o Bem e a Bondade estão agora à vista de todos, também dos pagãos.

7. Serve de chão ao Evangelho de hoje o texto de Is 35,4-7, que se integra no chamado «Pequeno Apocalipse de Isaías» (Is 34-35). o Capítulo 35 transporta-nos para um mundo de paz e de alegria, pondo em destaque a marcha de todo um povo que se levanta da miséria para a esperança e a liberdade. É neste contexto de felicidade, novo Êxodo e nova Criação, que se leem as expressões: «Então se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos hão de desobstruir-se. Então o coxo saltará como um veado, e a língua do mudo cantará de alegria» (Isaías 35,5-6). O Evangelho de hoje mostra a realização deste sonho. 

8. S. Tiago continua, na incisiva lição de hoje (2,1-5), a reclamar a nossa atenção carinhosa para com os pobres, que são os escolhidos e prediletos de Deus. E adverte-nos de que não podemos encher os olhos com os ricos, e pôr de lado os pobres, pois não pode haver disjunção entre culto e vida, fé e empenho eclesial. Na verdade, a nossa fé em Cristo tem de se traduzir em obras compatíveis. A atenção e o carinho que pusermos no nosso relacionamento com os pobres será sempre o exame e a verificação da nossa fé.

9. É assim que o Salmo 146, que é uma espécie de carrilhão musical, nos convida a cantar os «doze belíssimos nomes» de Deus, decalcando aqui a expressão muçulmana que exalta os «99 belíssimos nomes» de Allah. É claro que os doze nomes que passaremos em revista não celebram tanto a essência divina, mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos. É assim que o Salmo evoca o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador (1), o Deus da verdade (?emet) (2), o Deus que faz justiça aos oprimidos, defensor dos últimos (3), que dá pão aos famintos (4), que liberta os prisioneiros (5), que abre os olhos aos cegos (6), que levanta os abatidos (7), que ama os justos (8), que protege os estrangeiros (9), que sustenta o órfão e a viúva (10), que entrava o caminho dos ímpios (11), o Deus que reina eternamente (12). Este maravilhoso Salmo faz-nos saborear musicalmente toda a liturgia de hoje.

 

António Couto



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