Js 24,1-2.15-17.18; Sl 34; Ef 5,21-32; Jo 6,60-69
1. Neste Domingo XXI do Tempo Comum, escutaremos a sexta e última Parte do Capítulo VI do Quarto Evangelho, que contempla os últimos versículos (João 6,60-69), e estende a discussão antes havida da multidão (João 6,25-40) e dos judeus (João 6,41-58) com Jesus, também aos discípulos em geral, que entram agora em cena em João 6,60 para, pouco depois, saírem de cena, para fora da ação de Jesus, em João 6,66, sendo então a vez de «os Doze» e de Pedro entrarem também em cena (João 6,67-69).
2. Veja-se a gradação: multidão, judeus, «muitos dos seus discípulos», «os Doze» e Pedro. Curiosamente, os «muitos dos seus discípulos», numa espécie de imbricação, retomam a atitude dos judeus, que os precederam em cena: murmuram (goggýzô) como eles contra o escândalo da incarnação e das origens divinas de Jesus (João 6,61): como é que se pode conciliar o dizer de Jesus «Eu desci do céu» com a realidade de todos conhecida de que Jesus era o filho de José, sendo de todos conhecidos o seu pai e a sua mãe? (João 6,41-42). Além disso, também os discípulos de Jesus classificam como duro (sklêrós), incompreensível, intragável, exigente (João 6,60) o discurso de Jesus sobre a sua carne-vida dada em alimento para a vida verdadeira. É de realçar que o termo «carne» (sárx) regista treze ocorrências no Evangelho de João, com duas valências diferentes: quando se refere à «carne» de Jesus, e quando se refere à humana natureza. Tornar-se «carne» do Filho é vital para o mundo (cf. João 1,14; 6,51.52.53.54.55.56.63); por seu lado, a «carne» humana mostra-se limitada, pertence à esfera terrena, e não serve para dar a vida eterna, mas tão-somente para perpetuar a descendência terrena (cf. João 1,13; 3,6; 6,63; 8,15; 17,2). Terá de ser o Filho do Homem, quando subir ao lugar onde estava antes, a dar o Espírito vivificante (João 6,62-63; cf. 7,39; 17,2). No seu modo de ser terreno, Jesus não pode dar a vida eterna, porque a «carne» em si mesma não serve para nada (João 62-63). Jesus explica bem que da «carne» enquanto tal nada há a esperar, porque a «carne», isto é, o ser humano enquanto tal é perecível e caminha para a morte. Da «carne» humana, perecível, não se pode esperar a vida imperecível, que vem para nós apenas do Espírito que vem de Deus (cf. João 3,6) através da «carne» glorificada de Jesus (cf. João 7,39; Atos 2,32-33).
3. Além de «murmurar» como os judeus de Cafarnaum e do deserto (João 6,41-43.61; cf. Êxodo 15,24; 16,2.7-8; 17,3; Números 14,2.27.29.36), muitos dos discípulos não seguem o exemplo do servo-discípulo do Senhor, que «não volta para trás» (cf. Isaías 50,5), e abandonam Jesus e «voltam para trás» (apêlthon eis tà ôpísô) (João 6,66), configurando-se como não-discípulos, e copiando a atitude do povo do Êxodo que, no deserto, também pretende voltar para trás, para o Egito, para as panelas de carne e para as cebolas (Êxodo 14,12; 16,3; 17,3; Números 14,3-4). Ora, o discípulo verdadeiro é aquele que vai atrás de Jesus, seguindo-o, e não o que volta para trás, abandonando-o.
4. De notar ainda que, no caso de «muitos dos seus discípulos» (João 6,60), e de forma diferente da multidão e dos judeus, é Jesus que faz a pergunta e dá a resposta. Os discípulos apenas murmuram (João 6,61), não ouvem, não querem ouvir, não respondem e vão-se embora. No caso dos Doze, é Jesus que faz a pergunta, e é Pedro que, em nome dos Doze e em contraponto com todos os grupos anteriores, não se limita apenas a responder, mas profere uma verdadeira confissão de fé (João 6,68-69).
5. O percurso feito através da paisagem literária, temática e teológica de João 6, revelou-se intenso e exigente. Ouvimos Jesus revelar: «Eu sou o pão da vida» (João 6,35.48) e «Eu sou o pão vivo descido do céu» (João 6,41.51), e retirar daí um rol de consequências em termos da sua carne e do seu sangue dados para a vida do mundo. Jesus compreende então que os judeus e os seus discípulos murmuravam por causa disso (João 6,61), e o narrador foi-nos informando que muitos deles se afastaram de Jesus (João 6,66). É então a hora decisiva de Jesus perguntar aos Doze, que são aqui mencionados pela primeira vez, e voltarão a sê-lo apenas mais uma vez, depois da Ressurreição, em João 20,24: «Vós também quereis ir embora?» (João 6,67), ao que Simão Pedro responderá exemplarmente: «Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna, e nós acreditamos e sabemos que Tu és o Santo de Deus» (João 6,68-69). Pedro compreendeu que o dom decisivo de Jesus é a vida eterna, e define Jesus na sua relação única com o Pai. Na verdade, «Santo» é o que pertence a Deus. Portanto, se Jesus é o Santo de Deus, com artigo definido, então pertence completamente a Deus e está unido a Ele de modo total e único, encontrando-se no mesmo plano da santidade de Deus (cf. João 17,11; 1 João 2,20; Apocalipse 3,7). O modo dessa união vai sendo esclarecido ao longo do inteiro Evangelho: Jesus é o Filho de Deus. Na sua confissão de fé, Pedro salienta o elemento decisivo e fundamental: a relação de Jesus com Deus, a pertença total e única de Jesus a Deus. E é por isso que Jesus tem palavras de vida eterna, e é também por isso que é insensato afastar-se d’Ele. Pedro compreendeu e leu bem os sinais: o dom maior de Jesus é a vida eterna.
6. O leitor que seguiu atentamente tudo desde o princípio, desde a primeira pergunta pedagógica de Jesus: «Onde compraremos pão para que eles comam?», e que assistiu ao falhanço das respostas dos discípulos, e que terá, porventura, verificado a sua própria incapacidade para responder, e que prestou depois toda a atenção ao desempenho de Jesus, e que viu entretanto a deserção de judeus e discípulos dececionados, terá com certeza compreendido a última resposta de Simão Pedro: «Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna» como a verdadeira resposta à primeira pergunta pedagógica de Jesus. Com a resposta de Pedro, fica estabelecida a conjunção entre palavra e alimento.
7. Vendo bem, neste Capítulo VI do Evangelho de João, que hoje atinge o seu ápice, as diversas reações aos acontecimentos de Jesus, a que a exegese chama «crise galilaica», antecipam e leem já as crises sucessivas que vão aparecer na «fase judaica» de Jesus, e depois, também na Igreja. Trata-se sempre da grande decisão de fé pró ou contra a humildade da Incarnação, da Cruz e da Eucaristia. A Palavra de Jesus que se ouve aqui, e continua a ouvir-se ainda hoje, será sempre como um bisturi que divide, julga e purifica. Não deve, portanto, o leitor fugir desta intervenção cirúrgica divina. Deve, antes, expor-se a ela.
8. A mesma grande decisão ou incisão está patente no grande texto de Josué 24,1-18. Josué profere diante de todo o povo reunido um dos mais belos e completos «módulos narrativos» de toda a Escritura, mostrando ao povo que foi Deus que conduziu a inteira história de Israel, com amor poderoso, desde o outro lado do Rio Eufrates, chamando e conduzindo os passos de Abraão, libertando depois o povo da opressão do Egito, guiando-o pelo deserto, libertando-o dos inimigos poderosos que o ameaçavam por todos os lados, e fazendo-o entrar na Terra de Canaã (Josué 24,2-14). Depois desta recitação maravilhosa, que tem sempre Deus por sujeito, que inicia a sua ação de eleição com os patriarcas, ao contrário dos «módulos narrativos» deuteronomistas que começam habitualmente com a libertação do Egito (cf. Deuteronómio 4,37-38; 26,5-10), Josué abre o tempo das decisões, em que «servir» é a palavra-chave, que se ouve por 14 vezes. Servir ou não servir, eis a questão posta por Josué ao povo: «Se não vos agrada servir o Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir» (Josué 24,15a). Josué avança a sua escolha e decisão: «Eu e a minha família serviremos o Senhor!» (Josué 24,15b). Então, o povo repassa outra vez na memória do coração todos os benefícios que lhe fez o Senhor, desde a libertação do Egito, aos sinais e prodígios realizados em seu favor, à proteção assegurada pelo Senhor ao longo do caminho percorrido e perante os adversários (Josué 24,16-18a), para afirmar logo convictamente: «Nós também serviremos o Senhor» (Josué 24,18b).
9. E, na Carta aos Efésios 5,21-32, o «serviço» chama-se amor. O texto hoje lido constitui um extrato de um dos «Códigos familiares», que se encontram nas chamadas Cartas editadas de S. Paulo. Estas Cartas que remontam a Paulo, mas que são editadas depois da sua morte, já não traduzem o esforço evangelizador patente nas Cartas autênticas, mas procuram levar o Evangelho a situações concretas da vida, como sejam a família e o trabalho. O texto de hoje realça sobretudo a relação marido-esposa, que deve retratar a relação sublime e salutar Cristo-Igreja. Mas, se a leitura continuasse, também veríamos o Evangelho a renovar as relações pais-filhos e patrões-empregados.
10. Voltamos, pelo terceiro Domingo consecutivo, à música do Salmo 34, e a entoar uma vez mais o refrão: «Saboreai e vede que Bom é o Senhor» (v. 9). Desta vez para nos apercebermos melhor que Deus atende sempre com solicitude os gritos de socorro do justo perseguido (vv. 16.18), ao mesmo tempo que apaga da terra a memória dos malfeitores (vv. 17.22). Esta certeza é muitas vezes a única e a última defesa do justo que sofre às mãos dos ímpios. Os Salmos de imprecação, ou as suas partes mais violentas, foram abolidos da oração oficial, como se não fossem, na verdade, Palavra inspirada. Pecado nosso, que assim mostramos não compreender o realismo e a eficácia da oração bíblica, e dificultamos aos aflitos e aos afligidos o poder extravasar diante de Deus as suas amarguras, e deixamos os violentos a maquinar tranquilamente as suas crueldades, como se Deus não visse nem ouvisse nem lhes pedisse contas.
António Couto
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