Pr 9,1-6; Sl 34; Ef 5,15-20; Jo 6,51-58
1. Neste Domingo XX do Tempo Comum, temos a graça de escutar o texto que compõe a quinta secção (João 6,52-59) [ver Domingo XIX] da quinta Parte (João 6,25-59) do Capítulo 6.º do Quarto Evangelho [ver Domingo XVII]. Na verdade, o Evangelho deste Domingo XX começa no v. 51 e termina no v. 58, estendendo-se assim por João 6,51-58. Portanto, o v. 51, que abre o Evangelho deste Domingo XX fecha a quarta secção (João 6,41-51), e já foi lido no passado Domingo XIX. Mas, no v. 51, Jesus não está a responder à «multidão», como nos faz ler a versão oficial do texto que vai ser proclamado, mas aos «judeus», que entram em cena em João 6,41. Curiosamente, a versão do Domingo XIX está correta!
2. Já tivemos oportunidade de referir que cada uma das secções que compõem a quinta Parte deste Capítulo VI do Quarto Evangelho (João 6,25-59) estão ritmadas segundo o modelo «pergunta-resposta», sendo a pergunta sempre formulada pela «multidão», ou pelos «judeus», e a resposta sempre oferecida por Jesus. A pergunta dos judeus: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu?”» (João 6,42), que abria a quarta secção (João 6,41-51), despoletou a resposta de Jesus sobre a sua verdadeira identidade: «Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente» (João 6,51a). Com estas palavras, Jesus retoma e resume o sentido que se deve dar ao sinal da «multiplicação» dos pães (João 6,1-15). Conforme a explicação de Jesus, a que tivemos acesso no Domingo XVIII, aqueles pães por Jesus partidos e repartidos não servem só para encher a barriga. São sinais vindos do céu que devem ser vistos e compreendidos por todos, conforme a advertência de Jesus em João 6,26-27. E Jesus é esse pão vindo do céu, vida celeste e divina, que nunca se esgota e sobra sempre toda (João 6,12-13). Até este ponto (v. 51a), no discurso que faz, Jesus revela a sua identidade: «Eu sou o pão vivo descido do céu» (v. 51a). O v. 51b assinala uma rutura no discurso de Jesus. A partir daqui, Jesus passa o seu discurso para o futuro e revela que o pão que dará é afinal a sua carne. Pela sua importância, deixamos aqui esse pequeno extrato do discurso de Jesus: «O pão que Eu darei é a minha carne para a vida do mundo» (João 6,51b). Ao assumir agora que o pão que dará é a sua própria carne, Jesus está a dizer que se dará Ele próprio na plenitude da sua existência humana.
3. A seguir a esta afirmação crucial (v. 51b), tem lugar imediatamente a pergunta que abre a quinta secção (João 6,52-59) e que sai também da boca dos judeus, e que vem na continuidade da resposta dada por Jesus sobretudo na segunda metade do v. 51, acima transcrita. A pergunta dos judeus soa assim: «Como pode este dar-nos a sua carne (sárx) a comer?» (João 6,52). Quem está a seguir o texto atentamente aperceber-se-á de imediato que a pergunta formulada pelos judeus excede os dizeres de Jesus até agora pronunciados. Na verdade, Jesus nunca falou em «dar a sua carne a comer», mas disse simplesmente: «Quem comer deste pão» (João 6,51a), e «o pão que Eu darei é a minha carne» (João 6,51b). Mas o certo é que Jesus não só não corrigiu a leitura dos judeus, mas até lhe elevou o tom, dizendo solenemente: «Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós» (João 6,53). E dá mais um passo em frente: «Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna» (João 6,54). Juntamente com a carne, daqui para a frente virá sempre indicado o sangue. E ao distinguir carne e sangue, Jesus acena à sua própria morte violenta. Sobre a Cruz, Jesus derramou o seu sangue. No pão, que é a sua carne, e no vinho, que é o seu sangue, Jesus entrega-se a si mesmo com aquele que sobre a Cruz deu a própria vida. E ainda estende diante de nós esta notável fórmula de imanência: «Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele» (João 6,56). E ainda: «Aquele que me come viverá por Mim» (João 6,57).
4. Há muita vida nova a esclarecer. Há que notar em primeiro lugar que o verbo «comer» apareça conjugado com «carne» (sárx) (João 6,52.53.54.56), com «pão» (ártos) (João 6,51.58) e «comigo» (me) [«o que me come» (ho trôgôn me)] (João 6,57). A sequência destes dizeres e o respetivo paralelismo deixam claro que «comer o pão descido do céu» é «comer a carne do Filho do Homem», e que as duas expressões são equivalentes de «comer a pessoa» de Jesus, assinalada pelo pronome pessoal [«me»]. Trata-se, portanto, de comer ou assimilar a identidade de Jesus, o seu modo de viver. Imitação de Jesus. Mas como Jesus diz também que «quem comer a sua carne e beber o seu sangue tem a vida eterna», então não se trata apenas de extrair lições para esta vida humana terrena passageira, mas de saber também que, desde agora e para sempre, terá em si a vida divina, a vida eterna, por graça recebida. Só assim, através desta assimilação ou convivência, a vida verdadeira, a vida eterna, a vida divina, a vida vivente, a vida que não morre, entra em nós e transforma a nossa vida humana, configurando-a com a de Jesus. Vida eterna e comunhão pessoal com Jesus são a mesma coisa. Uma nova possibilidade entra na história humana. Tudo o que fica para trás, resume-se assim: «No deserto, os vossos pais comeram o maná, e morreram» (João 6,49). O maná tinha a ver apenas com a vida terrena, e não tinha nenhuma eficácia para além da morte. Mas a vida eterna, que é Jesus, entra em nós e transforma, transfigura e configura a nossa vida à vida de Jesus, fazendo-nos viver em modo de eternidade. Eis a perspetiva novíssima que se abre no horizonte humano.
5. Também não podemos deixar passar em branco que à pergunta dos judeus «como pode este dar-nos a sua carne a comer?», Jesus não a tenha corrigido, mas reforçado: «se não comerdes a sua carne e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós». Jesus acrescenta ao «comer a sua carne» o «beber o seu sangue», locução que ocorre quatro vezes nos vv. 53-56, e este acrescento leva-nos até à Cruz, até à dádiva da vida de Jesus por amor, e abre diante de nós o desafio belo e imenso de irmos também nós até esse ponto-Cruz de darmos a nossa vida por amor. Só indo até este ponto-Cruz se compreende e se vive em profundidade a fórmula de imanência pronunciada por Jesus: «Permanece em Mim e Eu nele». É a melhor e mais realista tradução da nossa comunhão eucarística (cf. 1 Coríntios 11,24). Com a única diferença vocabular que o texto de João 6, fala de carne (sárx), e o de S. Paulo fala de corpo (sôma). Até o verbo «comer» ganha nesta secção particular sabor e realismo. De facto, para dizer «comer», o grego do Novo Testamento usa habitualmente o verbo esthíô. Todavia, em João 6,54.56.57.58, é usado um verbo «comer» muito mais forte, o verbo trôgô [= trincar, mastigar]. De forma significativa, este verbo só é usado nas passagens atrás assinaladas e em João 13,18, no contexto da ceia da Páscoa.
6. A lição do Livro dos Provérbios, que hoje escutamos (Provérbios 9,1-6), mostra-nos a Sabedoria personificada, que edifica a sua casa, prepara o banquete, escolhe o vinho, põe a mesa, e convida todas as pessoas [= toda a humanidade] para o seu banquete. Para significar que o convite para uma nova maneira de viver é feito a todos, sem exceção, é dito que é feito dos pontos mais altos da cidade (Provérbios 9,3).
7. E a Carta de São Paulo aos Efésios 5,15-20 reclama também de nós uma vida nova, assente num coração inteligente que saiba ler o tempo em que estamos, discernir a vontade de Deus, decantar quotidianamente em música a Palavra de Deus e levantar a Deus permanente ação de graças. A não ser assim, teremos de nos haver com a crítica certeira de Nietzsche, que refere: «Se a Boa Nova da vossa Bíblia estivesse também escrita no vosso rosto, não teríeis necessidade de insistir tanto para que as pessoas acreditem. As vossas obras e ações deviam tornar quase supérflua a Bíblia, porque vós mesmos seríeis Bíblia nova e Boa Nova».
8. A música do Salmo 34, a que já nos referimos no Domingo passado (XIX), continua hoje a acompanhar-nos, realçando-se sobretudo o sabor sapiencial dos conselhos da Sabedoria personificada: «Vinde, meus filhos, escutai-me: ensinar-vos-ei o temor do Senhor» (v. 12); «afasta-te do mal e faz o bem: procura a paz e segue-a sempre» (v. 15). Mas também nos mostra o afazer do homem justo e sábio, que é aquele que «bendiz o Senhor em todo o tempo, com o louvor sempre à flor dos seus lábios» (v. 2). E assim se compreende que nada falta a quem teme o Senhor e vive na sua presença (vv. 10-11). E continuamos hoje a cantar repetidamente o refrão: «Saboreai e vede que Bom é o Senhor» (v. 9), que já entoámos no Domingo passado e continuaremos ainda a entoar no próximo Domingo. Enquanto se mantiver o discurso do Pão da Vida, é bom que se mantenha também o seu sabor. Também é bom que se mantenha o sabor da versão grega dos LXX: «Geúsasthe kaì ídete hóti chrêstós ho Kýrios», ou, na pronúncia viva: «Geúsasthe kaì ídete hóti christós ho Kýrios», o que dá lugar a um jogo de palavras (chrêstós/christós) com resultados à vista na tradição patrística, que lê o texto em clave cristológica e eucarística, cujos primeiros resultados se podem ver já na Primeira Carta de S. Pedro: «Como crianças recém-nascidas, desejai o puro leite espiritual, para crescerdes com ele para a salvação, se é que já saboreastes que bom é o Senhor» (hóti chrêstòs ho kýrios) (1 Pe 2,2-3). Em pronúncia viva: «que Cristo é o Senhor». Sim, vê-se daqui melhor a Bondade e o Amor fiel e comprometido, com Rosto e com Nome, que nos acompanha sempre. Demos graças a Deus.
António Couto
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