Domingo IV da Quaresma: «A Luz veio ao Mundo»

2 Cr 36,14-16.19-23; Sl 137; Ef 2,4-10; Jo 3,14-21

1. Com o olhar cada vez mais fixo na Cruz Gloriosa, em que foi entronizada a Luz que dá a Vida verdadeira, bati­zados e catecúmenos continuam a sua «caminhada» quaresmal: memória do batismo [= execução do programa filial batis­mal] para os batizados, preparação para o batismo por parte dos catecúmenos (Sacrosanctum Concilium, n.º 109), que têm neste IV Domingo da Quaresma os seus segundos «escrutínios»: segunda «cha­mada» para a Liberdade.

2. O Evangelho deste Domingo IV da Quaresma (João 3,14-21) expõe a toda a luz o «Filho do Homem, que deve (deîser levantado (hypsôthênai: aor. inf. passivo de hypsóô), para que todo o que acredita nele (ho pisteúôn en autô) tenha a vida eterna (zôê aiônios)» (João 3,15). Vê-se perfeitamente que Jesus está a expor diante dos olhos de Nicodemos e dos nossos, a Cruz Santa e Gloriosa em que Ele próprio, o Senhor da Vida, será crucificado, que o mesmo é dizer, na linguagem Joanina, exaltado e glorificado. Note-se a presença da mão de Deus, quer na necessidade teológica, expressa naquele deî, que reclama o plano divino, quer na forma passiva utilizada na ação deste levantamento. Também é importante a comparação explícita que o próprio Jesus faz do seu levantamento com a ação de Moisés: «Assim como Moisés levantou (hýpsôsen: aor. de hypsóô) a cobra no deserto, assim deve (deîser levantado o Filho do Homem» (João 3,14). E não podemos também perder de vista que, com este dizer, Jesus se assume como o verda­deiro Servo do Senhor, de Isaías, que «será exaltado» (hypsóô) por Deus (Isaías 52,13), e se apresenta a si mesmo como transparência de Deus: «Quando tiverdes levantado (hypsóô) o Filho do Homem, então sabereis que “Eu Sou” (egô eimi: título divino), e que por mim mesmo nada faço, mas como me ensinou o Pai estas coisas falo (laléô)» (João 8,28). Paulo também dirá, na Carta aos Filipenses, acerca deste Jesus, que Deus o «sobre exaltou» (hyperhypsóô) (Filipenses 2,9).

3. Notemos, antes de mais, que o levantamento de Jesus, na Cruz, é em ordem a dar a vida eterna (zôê aiônios) a todos os que creem (João 3,15-16). É por isso que Jesus diz: «Quando eu for levantado (hypsóô) da terra, arrastarei (hélkô) todos a mim» (João 12,32). E ainda: «Hão de olhar para aquele que trespassaram» (João 19,37). Na verdade, para ter a Vida verdadeira, é necessário ver [= acre­ditar] o Filho (João 3,36; 6,40), Luz da Luz, que brilha sobre a Cruz, novo e último candelabro do amor de Deus (Atos 2,36). Ver o Filho é obra do Espírito Santo em nós (1 Coríntios 12,3). Para O ver é necessário ter nascido da água e do Espírito (João 3,5), isto é, do alto e de outra maneira (ánôthen) (João 3,3).

4. Quanto à força daquele arrasto operado por Jesus, continua Jesus a ensinar-nos, em outra lição, que também pode ser levado a cabo pelo Pai: «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (hélkô)» (João 6,44). Vê-se bem, por debaixo do falar de Jesus, o teclado do Antigo Testamento, nomeadamente Jeremias 31,3 [38,3 LXX], que refere textualmente, pondo Deus a falar: «Com um amor eterno Eu te amei; por isso te arrastei (mashak TM; hélkô LXX) com carinho (hesed TM; oiktírêmôn LXX)». É demasiado pobre não reparar nisto. É demasiado belo reparar nisto. Há neste amor de Deus por nós uma paixão declarada, força ou coação que o verbo arrastar traduz bem. Mas a expressão completa é: «arrastar com carinho». Entendamos então que, se Deus nos der a graça e o dom do entendimento – e dá porque partilha connosco a sua omnisciência, criando-nos livres, inteligentes e responsáveis –, entendamos então que Deus luta por nós, arrasta-nos tantas vezes, mas sempre com carinho! Mas que também nós, se fomos criados livres, inteligentes e responsáveis, não podemos simplesmente permanecer de braços caídos… Sinal maior do que todos os sinais: é tal o nosso valor aos olhos de Deus, que Ele entregou o seu Filho por amor de nós! Tomar consciência desta realidade, e vivê-la, constitui um estupendo programa quaresmal!

5. Ver o Filho do Homem levantado na Cruz é ver passar dois filmes: 1) o da nossa violência e malvadez, postas a descoberto naquele rosto desfigurado, naquelas chagas abertas, naquele sangue a escorrer ou já coalhado: está ali, bem diante de nós e às claras, a imagem do pecado que está escondido em nós; 2) passa ali também o filme do imenso amor de Deus, que não faz frente à minha violência, mas a abraça. Sendo Deus amor, então a única maneira que Ele tem de curar o meu pecado, não é decretar, lá do alto e de dentro das paredes douradas da sua eternidade, uma qualquer amnistia. A única maneira que Deus tem de me curar é descer ao meu mundo, viver no meu mundo, caminhar comigo, sujeitar-se às minhas maldades e tropelias, sofrê-las e absorvê-las. É só assim, desarmado e só amando, que Ele pode dissolver e absolver o pecado que há em mim. «Deus amou tanto o mundo» (João 3,16). A cura não é mágica. Levantada e exibida bem diante dos nossos olhos, naquele rosto desfigurado e naquele sangue a escorrer, a imagem da violência, mentira, ódios, dentro de nós escondida, mas agora declarada, conhecemos agora a doença de que padecemos. Podemos, portanto, começar a tratar-nos. E o remédio também está ali exposto bem diante dos nossos olhos: é aquele amor e perdão subversivos!

6. Toda a atenção é necessária: a Cruz não é o nosso pecado. É a imagem do nosso pecado! O pecado, que está em nós, produziu aquela imagem a sangrar. Sim, está ali a imagem da nossa violência e estupidez. Vendo a imagem, podemos ver o pecado, o mal que há em nós, habitualmente escondido e dissimulado. A Cruz também não é o amor de Deus. É a imagem do Amor de Deus! A Cruz revela o mundo e revela Deus!

7. Se olharmos agora para o texto do Livro dos Números 21,4-9, tudo fica claro. O pecado camuflava-se nos interstícios do coração do povo de Israel no deserto. O resultado era a murmuração contra Deus e contra Moisés, o não reconhecimento da ação libertadora de Deus no Êxodo e o desprezo do alimento dado por Deus, o maná, causa de fastio, e não de maravilha (Números 21,5). Como corrigir, com boa pedagogia, esta situação? Aí estão as cobras (nehashîm) venenosas, que mordem e matam (Números 21,6). A cobra é, por excelência, imagem do pecado. Esconde-se e dissimula-se como o pecado. E o veneno que transporta, igualmente dissimulado, conduz à morte, tal como o pecado. A cobra, como o pecado, anda dentro de nós, dissimulada nas pregas do nosso esclerosado coração. É sintomático que o Livro do Génesis 3,14 refira que a cobra se alimenta de pó (?aphar). De pó (?aphar), do «pó da terra» (?aphar mîn-ha ’adamah) foi modelado o homem (Génesis 2,7). Os animais não foram modelados do pó da terra, mas apenas «da terra» (mîn-ha ’adamah) (Génesis 2,19). Salta então à vista que a cobra se alimenta de nós. É um parasita perigoso. Como o pecado.

8. Moisés expõe num poste uma cobra de bronze. Quem olhar para ela, fica curado (Números 21,8-9). Não, não se trata de nenhuma operação de magia, mas, outra vez, do realismo bíblico. Note-se também, antes de mais, que não era uma cobra que Moisés fixava no poste, mas a imagem de uma cobra. Olhar bem para a imagem da cobra leva-nos a descobrir a cobra verdadeira que se dissimula dentro de nós, o veneno que transportamos, que nos mata e mata os nossos irmãos. Feito o diagnóstico, reconhecido o mal de que padecemos, podemos então iniciar o processo da cura. É neste ponto preciso que a boa pedagogia de Jesus em João 3,14 nos leva a ver bem o Filho do Homem levantado como Moisés levantou a cobra no deserto!

9. A grande «teologia da história» expressa no 2 Livro das Crónicas 36,14-23 deixa bem claro que, abandonando a Palavra de Deus, que é a nossa luz (Salmo 119,105) e a nossa vida (Deuteronómio 32,47), caímos inevitavelmente nas trevas e na morte de um «exílio» qualquer. Porém, o caminho é reversível: aproximando?nos de Deus e da sua Palavra, podemos recuperar de novo a luz e a vida. É, na verdade, «a tua Palavra, Senhor, que tudo cura» (Sabedoria 16,12).

10. O extrato da Carta de S. Paulo aos Efésios (2,4-10) acentua hoje o nosso movimento da morte para a vida em Cristo Je­sus: movimento batismal (da morte para a vida) e fórmula batismal («em Cristo Jesus»). Nisto se manifestou «o gran­de amor com que Deus nos amou» (êgápêsen: de novo o inaudi­to aoristo histórico!) (Efésios 2,4). Mas há muito mais «coisas» inauditas de que Paulo tem de se socorrer, inovando até o vocabulário grego (!), num esforço supremo para tentar tra­duzir este indizível «grande amor» de Deus por nós: com Cristo nos con-vivificou (Efésios 2,5), nos con?ressuscitou e nos con­?sentou nos Céus (Efésios 2,6). Tudo aoristos históricos!!! Com­preenda?se, portanto, o incompreensível: tudo isto  nos aconteceu! Somos, de facto, obra de Deus! (Efésios 2,10). Demos Graças a Deus!

11. A grande e sentida súplica que atravessa o Salmo 137 atravessa também as nossas mãos, língua, céu da boca, voz, mente, alegria, lágrimas. Não é possível cantar na Babilónia. Os Cânticos de Sião não são folclore, mas oração a ferver saída das entranhas! Não se dão naquele «lá» (sham) estrangeiro e inóspito da Babilónia. A pátria da música e da alegria é o «lá» (sham) de Jerusalém, cidade-mãe, que faz de Deus-Pai, Casa materna e paterna, onde reina a liberdade e a fraternidade, e não a escravidão e a tirania. No decurso da segunda guerra mundial, o poeta italiano Salvatore Quasimodo (1901-1968) glosou assim este imenso Salmo, e a glosa então feita pode infelizmente ouvir-se também hoje: «E como podíamos nós cantar/ com o pé estrangeiro sobre o coração,/ entre os mortos abandonados nas praças,/ sobre a erva dura do gelo,/ com o lamento de cordeiro das crianças,/ com o urlo negro da mãe/ que ia ao encontro do filho/ crucificado sobre o poste do telégrafo?/ Nos ramos dos salgueiros, por voto,/ também as nossa harpas estavam dependuradas:/ oscilavam leves sob o vento triste».

12. Mas nós, que atravessamos a Quaresma, sabemos bem que todo o gelo glaciar é derretido pelo sopro do amor que até nós vem daquele que está naquela Cruz erguido!

António Couto



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