Domingo III da Quaresma: «O novo Santuário que é Jesus»

Ex 20,1-17; Sl 19; 1 Cor 1,22-25; Jo 2,13-25

1. No programa de «preparação» para a Noite Pascal Batis­mal, início e meta da vida cristã, o Domingo III da Quaresma está marcado pelos primeiros «escrutínios» para os catecúme­nos: primeira «chamada» para a liberdade.

2. O texto do Evangelho deste Domingo III da Quaresma constitui uma importante passagem no tecido do IV Evangelho (João 2,13-25). Jesus apresenta-se como tempo novo e Templo novo, novo espaço relacional, caminho novo aberto para o PAI, nova paginação e compreensão das Escrituras. Tratando-se de um texto refinado, e para facilitar a compreensão das suas dinâmicas e conteúdos, optámos por transcrever o texto, ao mesmo tempo que mostramos o seu movimento interno e a sua estrutura quiástica: da Páscoa dos judeus (A) à Páscoa de Jesus (A’), do Templo antigo (B) ao Santuário novo (B’), tendo no meio o caminho da memória que começam a fazer os discípulos de Jesus (C), como podemos constatar no texto a seguir transcrito:

«E estava próxima a Páscoa dos judeus, e JESUS subiu a Jerusalém. (A)

E ENCONTROU no TEMPLO (hierón) os vendedores de bois e ovelhas e pombas, e os cambistas sentados. E, tendo feito um chicote de cordas, expulsou todos do TEMPLO (hierón), as ovelhas e os bois, bem como os cambistas, espalhou as moedas, derrubou as mesas, e disse aos que vendiam as pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da CASA DO MEU PAI (oíkos toû patrós mou) CASA de COMÉRCIO (oíkos emporíou)”. (B)

Recordaram-se os discípulos d’ELE que está escrito: “O zelo da tua CASA (toû oíkou sou) me devorará”. (C)

Responderam então os judeus e disseram-LHE: “Que sinal nos mostras de que podes fazer estas coisas?” Respondeu JESUS e disse-lhes: “Destruí este SANTUÁRIO (naós), e em três dias o levantarei (egeírô)”. Disseram então os judeus: “Em quarenta e seis anos foi edificado este SANTUÁRIO (naós), e tu em três dias o levantarás (egeírô)?” (B’)

Isto, porém, dizia do SANTUÁRIO do seu corpo (toû naoû toû sômatos autoû). Quando, pois, foi ressuscitado dos mortos (êgérthê), recordaram-se os discípulos d’ELE que tinha dito isto, e acreditaram na Escritura e na palavra que JESUS tinha dito». (A’)

3. O episódio aparece situado e datado. O lugar é Jerusalém e o seu Templo. O tempo é a Festa da Páscoa. Ora, uma Festa é, na tradição bíblica, um ENCONTRO marcado (mô‘ed), plural mô‘adîm, de ya‘ad [= marcar um encontro]. Um ENCONTRO marcado com Deus e com os outros. Sendo um ENCONTRO marcado com Deus e com os outros, então é sempre um espaço de alegria, de filialidade e de fraternidade. E se a Festa é de Peregrinação, como é a Festa da PÁSCOA, aqui referida [as outras duas são as SEMANAS ou PENTECOSTES e as TENDAS], então a alegria, a filialidade e a fraternidade são ainda mais intensas, dado que Festa de Peregrinação se diz, na língua hebraica, hag, plural hagîm. E o nome hag remete para o verbo hag [= dançar], e deriva de hûg, que significa “círculo”, e, portanto, família, lareira, encontro, alegria, música, roda, dança, vida. A característica fundamental destas Festas de Peregrinação é a alegria. Recomenda o Livro do Deuteronómio: «Por ocasião da tua Festa de Peregrinação (hag), alegrar-te-ás tu, o teu filho, a tua filha, o teu escravo, a tua escrava, o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva que vivem nas tuas cidades» (Deuteronómio 16,14).

4. ENCONTRO, filialidade, fraternidade: marcas acentuadas por JESUS que, em vez de Templo de pedra (hierón), diz CASA (oíkos) – com particular afeto, CASA DO MEU PAI –, sendo a CASA paterna o lugar do ENCONTRO e da intimidade, e não das coisas, da superficialidade, da banalidade, do consumismo, do mercado. Nos paralelos de Mateus, Marcos e Lucas, citando Isaías 56,7, JESUS fala do Templo usando a expressão forte «A MINHA CASA» (ho oîkós mou) (Mateus 21,13; Marcos 11,17; Lucas 19,46).

5. É neste sentido que o Livro dos Atos dos Apóstolos nos mostra a comunidade-mãe de Jerusalém a frequentar assiduamente o Templo, salientando, no entanto, que a sua maneira de prestar culto a Deus acontecia nas CASAS. Do Templo para as CASAS (Atos 2,46). Não se trata de uma simples mudança de lugar, mas de uma diferente conceção do espaço: não se trata de um espaço local, mas relacional. O novo espaço cultual é a comunidade que vive filial e fraternalmente, verdadeira transparência de Jesus. A extensão deste espaço chama-se comunhão.

6. Sintomático é que, postos estes pressupostos, o texto refira, não que JESUS ENCONTROU filhos e irmãos, mas que ENCONTROU vendedores, banqueiros e comerciantes, contra a profecia de Zacarias 14,21, que refere que «Não haverá mais vendedor na CASA de YHWH dos exércitos naquele dia». «A CASA DO MEU PAI», «A MINHA CASA», por um lado, e o MERCADO, por outro lado, são lugares incompatíveis. São maneiras diferentes de conceber e ocupar o espaço.

7. No texto que estamos cuidadosamente a ler, o Templo é dito com três vocábulos diferentes – hierónoíkos e naós – com significações diferentes: edifício de pedra, casa familiar, santuário (ou lugar da presença de Deus).

8. Quando, num dos típicos “mal-entendidos” do IV Evangelho, JESUS diz: «Destruí este SANTUÁRIO (naós), e em três dias o levantarei (egeírô)» (João 2,19), os judeus não conseguem distinguir entre o naós pessoal que JESUS levantará em três dias e o hierón feito de pedra que demorou 46 anos a construir (João 2,20). Em claro contraponto, o narrador explica bem, num genitivo epexegético, que JESUS «dizia isto do SANTUÁRIO do seu corpo» (toû naoû toû sômatos autoû) (João 2,21), isto é, do SANTUÁRIO que é o seu corpo. Com esta explicação do narrador, fica claro que é JESUS o «lugar» da adoração de Deus, a verdadeira «Casa de Deus» (cf. João 1,51), o SANTUÁRIO de Deus.

9. A anotação do narrador, em João 2,22, faz-nos ver ainda que foi também assim que entenderam os discípulos a partir da Ressurreição de Jesus. Lição para os leitores: num tempo em que já não há Templo em Jerusalém, os leitores crentes do IV Evangelho experimentam a PRESENÇA de JESUS Ressuscitado como o seu verdadeiro «Templo». E assim nós também.

10. O Livro do Êxodo (20,1-17) serve-nos hoje a Palavra de Deus que alimenta a vida nova dos seus filhos. O texto abre assim: «E falou Deus todas estas palavras dizen­do» (Êxodo 20,1). Estas palavras constituem o Decálogo, um con­junto de mandamentos que cobrem todo o âmbito da ação moral. É de privilegiar o nome “mandamento”, em detrimento do mais vulgar “lei”. É fácil perceber a razão: o mandamento supõe um rosto, neste caso o rosto de Deus, um Deus com rosto, que me chama e ama e ordena e suplica, e me institui; de modo diferente, a lei supõe um legislador sem rosto, que nada tem a ver com o Deus do Livro do Êxodo e da Escritura Santa. Saí­das diretamente da boca de Deus, estas palavras constituem o alimento de que deve nutrir?se o Povo santo de Deus do Antigo Testamento (Deuteronómio 8,3), mas também o Povo santo dos batizados (Mateus 4,4) que, à luz da Ressurreição, faz anamnese da vida his­tórica de Jesus e acredita na Palavra da Escritura [= Antigo Testamento] e do Evangelho. Palavra que há que guardar sábia e amorosa­mente, pois ela é a nossa vida (Deuteronómio 32,47).

11. E São Paulo continua esta lição sobre a nova Sabedoria (1 Coríntios 1,22-25). Enquanto os judeus pedem sinais (João 2,18;1 Coríntios 1,22) e os gregos procuram a sabedoria des­te mundo (1 Coríntios 1,22), os batizados, crismados, chamados, escolhidos, continuam de olhos postos no único sinal da Cruz Gloriosa, sem dúvida a mais bela página que Deus escreveu na história dos homens, embora a letra seja ainda ilegível para muita gente!

12. O Salmo 19 é uma estupenda «música teológica», como dizia Hermann Gunkel. Na verdade, Deus ilumina e aquece o universo com o fulgor do sol, e ilumina e acalenta o homem com o fulgor da sua Palavra contida nos seus mandamentos dados e recebidos.

António Couto



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