Gn 9,8-15; Sl 25; 1 Pe 3,18-22; Mc 1,12-15
1. Só secundariamente a Quaresma «prepara» para a Ressurreição do Senhor. Na verdade, todos os «Tempos» e todos os Domingos do Ano Litúrgico – portanto, também a Quaresma e os seus Domingos – estão depois da Ressurreição e por causa da Ressurreição. E é só sob a intensa luz do Senhor Ressuscitado com o Espírito Santo (Batismo consumado: Lucas 12,49?50) que a Igreja – e cada um de nós – pode celebrar autenticamente a sua fé, proceder à correta «leitura» das Escrituras e encetar a «caminhada» quaresmal. Neste sentido, todos os batizados são chamados a refazer com Cristo batizado o seu programa batismal, cujo conteúdo e itinerário conhecemos: desde o Batismo no Jordão, passando pela Transfiguração / Confirmação no Tabor, até à Cruz e à Glória da Ressurreição (Batismo consumado!), escutando e anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho do Reino e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as «obras» do Reino, seguindo e imitando Jesus, de acordo com o programa dele traçado em Atos 10,38: «Jesus de Nazaré, ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder (dýnamis), passou fazendo o bem e curando todos os oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele». Por sua vez, os catecúmenos, acompanhados sempre pela Assembleia dos batizados, «preparam?se» intensamente para a Noite Pascal Batismal, início e meta da vida cristã.
2. O Evangelho deste Domingo I da Quaresma (Marcos 1,12-15) oferece-nos a figura de Jesus, acabado de apresentar pelo Pai como «o Filho meu, o amado, em quem está o meu comprazimento» (Marcos 1,11), como sintetizador perfeito da vida do povo de Israel e da nossa. Eis, portanto, Jesus impelido pelo Espírito no deserto, durante quarenta dias tentado por satanás, em harmonia com os animais selvagens, servido pelos anjos (Marcos 1,12-13). Excelente analepse em que o narrador faz Jesus descer ao chão de Israel, para assumir as suas debilidades, elevando a dura realidade do pecado do povo de Israel no deserto, e também do nosso pecado, a um registo de salvação. O deserto foi lugar de tentação e de queda para o povo de Israel durante quarenta anos, o tempo de uma geração, uma vida inteira, o tempo todo. Mas o deserto era também o lugar da graça, pois era Deus que no deserto conduzia o seu povo, como se recita no velho «credo» de Israel (Deuteronómio 26,5-10). Esquecendo a graça de Deus que nos conduz, facilmente nos atolamos na areia do deserto, e não se passa a prova. Eis, então, que Jesus desce a esse chão arenoso, ao nosso chão, experimenta a nossa condição. Atravessa e supera a prova, impelido pelo Espírito da graça. Novo aceno. O homem, eu e tu, nós, recebemos de Deus o mandato do domínio manso da terra e dos animais (Génesis 1,26 e 28). Sem sucesso. Mas também aqui, neste chão da criação, Jesus desce ao nosso nível, e salva o nosso fracasso, soberanamente convivendo com os animais selvagens. Mensagem de Paz e Harmonia. O texto de Marcos não perde tempo a descrever o conteúdo das tentações, nem a ação dos atores, como vemos em Mateus (4,1-11) e Lucas (4,1-13). Marcos apenas faz descer o Filho de Deus ao nosso chão arenoso e escorregadio, mostrando bem a sua comunhão connosco e o seu domínio manso, novo e seguro. Do mesmo modo que, pouco depois, estando nós atarefados e aflitos em pleno mar encapelado, filmará Jesus a dormir serenamente na nossa barca, à popa (lugar de comando), com a cabeça suavemente deitada numa almofada (Marcos 4,35-41).
3. Note-se também que o «deserto» bíblico, mencionado no texto, não se ajusta ao que dizem os dicionários ou enciclopédias. Até contradiz esses dizeres. Na verdade, não é um lugar geográfico, mas teológico, pois é apresentado com muita água (João 3,23), cumprindo Isaías 35,6-7, 41,18 e 43,19-20, com árvores (canas) (Mateus 11,7; Lucas 7,24) e relva verde (Marcos 6,39), cumprindo Isaías 35,1 e 7 e 41,19. É um lugar provisório e preliminar, preambular, longe do que é nosso, onde se está «a céu aberto» com Deus, onde troará a voz do seu mensageiro (Isaías 40,3), de João Batista (Mateus 3,1-3), do próprio Messias segundo uma tradição judaica recolhida em Mateus 24,26. O deserto é o lugar onde se pode começar a ver a «obra» nova de Deus (Isaías 43,19). Mas é um lugar provisório, onde estamos de passagem, e não definitivo, para se habitar lá (à maneira dos Essénios). Sendo um lugar provisório e de passagem, aponta para o definitivo, que é a Terra Prometida, onde Deus fará habitar e descansar o seu povo fiel. Este deserto é uma metáfora da nossa vida, onde sabemos que estamos de passagem. O deserto é todo igual: não tem pontos de referência nem marcos de sinalização. Quer isto dizer que só podemos prosseguir rumo à Terra Prometida e à Vida verdadeira, se tivermos um bom guia. Aí está o deserto como lugar onde temos de saber escutar a «Voz do fino silêncio» de Deus e ler e seguir atentamente o mapa da sua Palavra. Agora temos a companhia do Filho, que veio em nosso auxílio.
4. Mas, atenção. Depois do pequeno, mas consolador filme a que acabámos de assistir, em que vimos Jesus a descer ao nosso chão, assumindo e salvando os nossos fracassos («só é salvo o que é assumido», velho axioma dos Padres), preparemo-nos para ouvir pela primeira vez a sua voz. Sendo os seus primeiros dizeres, são, naturalmente, prolépticos e programáticos para o inteiro Evangelho de Marcos.
5. Mas antes de ouvirmos, pela primeira vez, a voz de Jesus, anotemos desde já dois notáveis dizeres do narrador, que atravessam em filigrana o inteiro Evangelho de Marcos, unindo os caminhos e os destinos de João Batista, de Jesus e dos seus discípulos, portanto, também os nossos. O primeiro, é este: «Depois de João ter sido entregue (paradothênai: inf. aor. pass. de paradídômi)» (Marcos 1,14). Trata-se de uma prolepse, que serve para ver já o que irá suceder a Jesus, acerca de quem o verbo será usado 13 vezes (Marcos 3,19; 9,31; 10,33; 14,10.11.18.21.41.42.44; 15,1.10.15), e aos seus discípulos (Marcos 13,9.11.12). O segundo, é o uso do verbo anunciar (kêrýssô) para traduzir o afazer primeiro de Jesus (Marcos 1,14). E, mais uma vez, este verbo é um fio condutor que une Jesus (Marcos 1,14.38.39), João Batista (Marcos 1,4.7), os Doze (Marcos 3,14; 6,12), algumas pessoas curadas por Jesus (Marcos 1,45; 5,20; 7,36) e a Igreja de Jesus (Marcos 13,10; 14,9). Fica, portanto, claro que, antes de pregar, ensinar e curar, Jesus, os seus discípulos, a sua Igreja, são constituídos mensageiros, isto é, são pessoas enviadas e estreitamente vinculadas a quem as envia, em nome de quem irão anunciar em voz alta e clara a mensagem de que são incumbidos. A clara vinculação a quem os envia, e nos envia, é mesmo mais importante do que a mensagem a transmitir. E é dito o conteúdo da mensagem: «O Evangelho de Deus» (Marcos 1,14). Sem equívocos então: a primeira coisa que fica expressa com esta linguagem é que Jesus, o seu precursor (João Batista) e seguidores (discípulos), se apresentam completamente vinculados a Deus e ao seu Evangelho [= «Notícia Feliz»], vivem de Deus e da Sua Notícia Boa e Feliz, não agem por conta própria, não são emissores da sua própria sabedoria ou opinião.
6. E aí está então o primeiro dizer de Jesus, articulado em duas declarações inseparáveis: «Foi cumprido (peplêrotai: perf. pass. de plêróô) o tempo (ho kairós),/ e fez-se próximo (êggiken: perf. de eggízô) o Reino de Deus (he basileía toû theoû)» (Marcos 1,15). O acento cai sobre os dois perfeitos que abrem enfaticamente as declarações de Jesus, e revelam que o Evangelho é em primeiro lugar o anúncio da iniciativa divina, de Deus em ação, que abre ao homem novas e belas perspetivas. O perfeito passivo (peplêrotai), que qualifica o kairós, indica bem que Jesus não se refere a qualquer segmento de tempo cronológico, mas àquele específico do cumprimento (ao tempo cheio de graça), posto expressamente sob a intervenção definitiva de Deus. Só Deus pode agir sobre o tempo cronológico, tornando-o kairós, tempo grávido de graça, de alegria e de esperança, entenda-se, da Palavra amante de Deus que, entrando em nós, reclama a nossa resposta amante que transforma a nossa vida. Uma vez mais, o anúncio precede a ordem: Jesus não começa com normas e exigências, mas assinala quanto Deus já fez e está a fazer, por sua gratuita iniciativa, em nosso favor. Só depois, e como normal consequência, surgem na boca de Jesus dois imperativos: «Convertei-vos» (matanoeîte) e acreditai (pisteúete) no Evangelho» (Marcos 1,15), que traduzem o que compete aos homens fazer. Jesus não é um moralista, mas um Evangelizador.
7. Após o drama do dilúvio (Génesis 9,8-15), Deus fala a Noé e aos seus filhos (Génesis 9,8), portanto, a toda a humanidade, anunciando que vai estabelecer a sua aliança de PAZ, não apenas com Noé e os seus filhos, mas também com todo o universo criado (Génesis 9,9-11), inclusive com os animais selvagens (Génesis 9,10), grandiosa abertura para o Evangelho de hoje, mas também com as aves e os animais domésticos. Sinal desta nova era de paz: Deus depõe o seu «arco-de-guerra» (arco-íris) nas nuvens (Génesis 9,12-17). O Desígnio de Deus anunciado será inexoravelmente cumprido. A paz para todos e para sempre, inaugurada em Cristo e sempre presente no seu programa filial batismal, tem de estar igualmente presente no programa filial batismal de cada batizado. O texto do Génesis que hoje cai nos nossos ouvidos contém por duas vezes a locução: «E Deus disse!». Conta-se que um discípulo de um rabino hassídico, sempre que ouvia o seu mestre ler na Bíblia «E Deus disse», ficava de tal modo entusiasmado, que saía da escola e dançava a gritar: «E Deus disse! E Deus disse!». Aí está um bom motivo para estarmos mais atentos à Bíblia, mas também a tantos homens e mulheres em cuja boca se vai ouvindo: «E Deus disse!». Mas compreendamos ainda que, na Bíblia, este «E Deus disse!» não é apenas coisa de Deus e dos homens. Também dos anjos, das aves, dos animais domésticos e selvagens, todos parceiros de Deus na sua aliança, como hoje ouvimos, mas também das plantas e das árvores (Deuteronómio 20,19), dos passarinhos nos seus ninhos (Deuteronómio 22,6-7), do cabrito no leite da sua mãe (Êxodo 23,10), e até da carismática burra de Balaão (Números 22,25.28).
8. «Na fé todos estes morreram, sem terem obtido a realização da promessa. Mas viram-na e acenaram-lhe de longe» (Hebreus 11,13). Belíssimo cenário de esperança! Todo o Antigo Testamento acena para Cristo, sua esperança, sua vida espiritual (zoê, e não bíos) (1 Pedro 3,18) e salvação (1 Pedro 3,20). E como Deus não desilude, Cristo acena agora a todo o Antigo Testamento, levando a salvação de Deus a todos os homens e a todos os lugares, iluminando também a até então impenetrável região da morte (1 Pedro 3,18-20). Verdadeiramente acreditar em Cristo é sermos seus contemporâneos e seus irmãos, «filhos no Filho», obra do Espírito em nós, que faz de nós filhos, e não netos, contemporâneos e irmãos do Ressuscitado, e não meros sucessores e continuadores da sua obra. Todos: os de ontem, os de hoje e os de amanhã, para que «sem nós» não se chegue à perfeição (Hebreus 11,40). Pedro dá testemunho desta força do Evangelho e da Ressurreição de Cristo que nos constitui em «nova criação» pelo Batismo (1 Pedro 3,21-22).
9. Os acordes do Salmo 25, que hoje cantamos, trazem à tona os rumos e os caminhos de Deus, que são sempre bondade, verdade, ternura e misericórdia – caminhos intransitivos, entenda-se –, que se vão insinuando mansamente dentro de nós, mais ou menos como deixou escrito, no seu Diário, com data de 23 de janeiro de 1948, o grande escritor francês George Bernanos: «Que doçura pensar que, embora ofendendo-o, não deixamos de desejar, desde o mais profundo santuário da alma, aquilo que Ele deseja».
António Couto
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