Domingo III do Tempo Comum: «Quando Deus vem, vê, faz e chama»

1 Jn 3,1-5.10; Sl 25; 1 Cor 7,29-31; Mc 1,14-20

1. Neste Domingo III do Tempo Comum é-nos dada a graça de escutar o Evangelho de Marcos 1,14-20. Não é a primeira vez que Jesus surge em cena. Já o tínhamos contemplado a dirigir-se da Galileia para o Rio Jordão, para ser batizado por João Batista (Marcos 1,9). Mas ainda não tínhamos ouvido a sua voz. Ouvimo-la agora pela primeira vez. Serão então dizeres importantes e programáticos, isto é, indicadores da missão que vem desempenhar.

2. Mas antes de ouvirmos, pela primeira vez, a voz de Jesus, anotemos desde já dois notáveis dizeres do narrador, que atravessam em filigrana o inteiro Evangelho de Marcos, unindo os caminhos e os destinos de João Batista, de Jesus e dos seus discípulos. O primeiro é este: «Depois de João ter sido entregue (paradothênai: inf. aor. pass. de paradídômi)» (Marcos 1,14a). Trata-se de uma prolepse, que serve para ver já o que irá suceder também a Jesus, acerca de quem o verbo será usado por 13 vezes neste Evangelho (Marcos 3,19; 9,31; 10,33; 14,10.11.18.21.41.42.44; 15,1.10.15), e aos seus discípulos (Marcos 13,9.11.12). O segundo é o uso do verbo anunciar (kêrýssô) para traduzir o afazer primeiro de Jesus (Marcos 1,14b). E, mais uma vez, este verbo é um fio condutor que une Jesus (Marcos 1,14.38.39), João Batista (Marcos 1,4.7), os Doze (Marcos 3,14; 6,12), algumas pessoas curadas por Jesus (Marcos 1,45; 5,20; 7,36) e a Igreja de Jesus (Marcos 13,10; 14,9). Mas o verbo grego kêrýssô (anunciar), antes de nos fazer dizer ou escutar mensagens, implica a radical fidelidade do anunciador ou mensageiro em relação a quem lhe confia a mensagem e o envia a anunciá-la. Fica, portanto, claro que, antes de pregar, ensinar e curar, Jesus, os seus discípulos, a sua Igreja, têm de ser mensageiros fiéis, sempre vinculados a Deus, e a sua primeira missão é testemunhar esta proximidade e compromisso. Em poucas palavras: o mensageiro tem de ser transparente e deixar ver em contraluz aquele que o envia. E pode perceber-se agora bem o conteúdo da mensagem: «O Evangelho de Deus» (Marcos 1,14b). Sem equívocos então: a primeira coisa que fica expressa com esta linguagem é que Jesus, o seu precursor (João Batista) e os seus seguidores (discípulos), se apresentam completamente vinculados a Deus e ao seu Evangelho [= «Notícia Feliz»], vivem de Deus e da Sua Notícia Boa, não agem por conta própria, não são emissores da sua própria sabedoria ou opinião.

3. E aí está então o primeiro dizer de Jesus, articulado em duas declarações inseparáveis: «Foi cumprido (peplêrotai: perf. pass. de plêróô) o tempo (ho kairós), e fez-se próximo (êggiken: perf. de eggízô) o Reino de Deus (he basileía toû theoû)» (Marcos 1,15). O acento cai sobre os dois perfeitos verbais que abrem enfaticamente as declarações, e revelam que o Evangelho é em primeiro lugar o anúncio da inciativa divina, Deus em ação, que abre ao homem novas e belas perspetivas. O perfeito passivo (peplêrotai), que qualifica o kairós, indica bem que Jesus não se refere a qualquer segmento de tempo cronológico, mas àquele tempo e modo específico da intervenção definitiva de Deus e da adequada resposta humana. Só Deus pode agir sobre o tempo cronológico, tornando-o kairós, isto é, tempo grávido de alegria, de esperança e de salvação. Uma vez mais, o anúncio precede a ordem: Jesus não começa com normas e exigências, mas assinala quanto Deus já fez e está a fazer, por sua gratuita iniciativa, em nosso favor. Só depois, e como normal consequência, surgem na boca de Jesus dois imperativos: «Convertei-vos (matanoeîte) e acreditai (pisteúete) no Evangelho» (Marcos 1,15), que traduzem o que compete aos homens fazer. Jesus não é um moralista, nem sequer um Evangelizador. Ele é o Evangelho e o Evangelizador.

4. Vem logo, para não se afastar da fonte, o tempo de chamar, de romper amarras, de «ir atrás de» de Jesus que passa (Marcos 1,16-20). Mas tudo começa ainda com o ver e o fazer primeiros e criadores de Jesus. Jesus viu (eîden) Simão e André, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores (Marcos 1,16), e disse-lhes: «Vinde atrás de mim, e farei (poiêsô) que vos torneis pescadores de homens» (Marcos 1,17). Verbos-chave: ver e fazer. É o ver e o fazer do Criador, como se lê no cenário da Criação (Génesis 1). Continuando a passar, Jesus viu Tiago e João, que estavam com o seu pai, na barca, a remendar as redes (Marcos 1,19). Logo os chamou, e eles, deixando o pai na barca, foram «atrás dele» (Marcos 1,20). Está em cena um verdadeiro chamamento de Jesus. É dele toda a iniciativa. Não são os discípulos que se apresentam a Jesus, pedindo trabalho. E não é como colaboradores, com remuneração e férias asseguradas, que Jesus os assume. Jesus apenas  e chama. Espanta aquele «imediatamente, deixando as redes, seguiram-no» (Marcos 1,18). Sem reticências nem calculismos. E nem sequer sabem onde os conduzirá o caminho em que agora entram. Confiança total em Jesus.

5. Consideradas as condições de trabalho em que os quatro pescadores estavam envolvidos, e a importância da pesca no mundo pobre da Galileia, a ordem de Jesus parece completamente disruptiva. Mas a resposta dos chamados é excessiva, imediata e radical: «Imediatamente (euthéôs), deixando as redes, seguiram-no!» (Marcos 1,18). Note-se, no entanto, que aquele «Vinde atrás de mim» não tem o tom de um convite; é uma exigência. Não se trata tanto do dizer de um Mestre, mas de um Profeta, ao jeito do chamamento de Elias a Eliseu (cf. 1 Reis 19,19-21). É normal os discípulos seguirem o Mestre, «atrás do Mestre», mas já não é usual ser o Mestre a chamá-los; são os discípulos que devem procurar um Mestre. Por outro lado ainda, a atividade própria do Mestre é ensinar, mas no caso deste chamamento, Jesus parece ter em vista uma estranha atividade de pesca: «farei que vos torneis pescadores de homens». Compreende-se a metáfora da pesca no seguimento da ocupação acabada de descrever daqueles quatro chamados, mas fica em aberto a natureza da nova pesca acenada por Jesus: de quê e para quê pescar pessoas? Jeremias 16,16 põe Deus a falar e a dizer: «Enviarei muitos pescadores para a pesca, e pescá-los-ão». É a mesma metáfora da pesca, mas trata-se aqui de reunir os pecadores para o julgamento. É aqui que encaixa a pesca proposta por Jesus face à Vinda do Reino de Deus. Daí também a exigência da conversão ordenada por Jesus. E a força daquele chamamento feito por Jesus àqueles pescadores. Lendo outra vez as palavras de Jesus, percebemos que não se trata de convidar, mas de exigir, método de Profeta, e não de Mestre. E falar de «pescadores para pescar homens» é também linguagem profética e tem em vista o julgamento de Deus. O chamamento disruptivo de Jesus e a resposta radical destes pescadores compreende-se na urgência criada pela proximidade do Reino de Deus, a que nada se deve antepor. Nada é primeiro em relação ao Reino de Deus: nem sepultar o próprio pai ou despedir-se dos familiares (Lucas 9,59-61). «Quem lança as mãos ao arado e olha para trás não está apto para o Reino de Deus» (Lucas 9,62). E o Reino de Deus não tem fronteiras, nem bandeiras, nem moeda própria. Não está aqui ou ali. Não é deste mundo. O Reino de Deus é o próprio Jesus Cristo com o Espírito Santo. Ele é o Reino em pessoa (hê autobasileía), conforme o belo dizer de Orígenes. É, então, face a Ele que nos devemos converter. É a voz dele que temos de ouvir. É o seu caminho que temos de seguir. O Reino de Deus, Jesus, põe-nos em cheque e em causa. Daí a urgência da conversão, daquele chamamento e daquela resposta urgente.

6. Perante o que nos é dado ver, uma primeira pergunta nos assalta, irrompendo sobre nós como uma onda súbita: Quem pode dar uma ordem assim absoluta? Mas, ainda antes de esboçarmos a resposta, já uma segunda vaga, que tempera a primeira, cai sobre nós: Quem merece uma tal confiança?

7. Temos hoje a graça de ouvir um bocadinho da profecia de Jonas e dos trejeitos que o chamamento de Deus desencadeia na sua vida (3,1-5.10). «Jonas, o hebreu» (Jonas 1,9), bem ouve o chamamento e a ordem de Deus para ir pregar contra Nínive, a cidade inimiga (Jonas 1,1-2). À primeira vista, devia Jonas levar por diante a sua missão com prazer, pois tratava-se de ir dizer à cidade inimiga que Deus tinha decretado o seu fim. Mas Jonas não quer ir, e não é por sentir piedade de Nínive. Bem pelo contrário. Jonas sabe que Deus é um Deus gratificante e misericordioso (hannûn werahûm), que se arrepende do mal (Jonas 4,2). E Jonas sabe também que, indo dizer a Nínive: «Ainda quarenta dias e Nínive será destruída» (Jonas 3,4), os habitantes de Nínive mudarão a sua vida, o que levará Deus a mudar também o seu plano e a não destruir a cidade. É porque sabe tudo isto e quer mesmo que Nínive seja castigada, que Jonas não quer ir lá pregar. Na verdade, apanha, no porto de Jafa, um navio que vai para Társis, para ocidente e não para oriente, para fugir de Deus e da missão que Deus lhe confiou (Jonas 1,3). Mas Deus é mais forte, e Jonas acaba, por vias travessas, por ir parar a Nínive. É a contragosto que prega. E quando verifica que os ninivitas se converteram, o que ele já sabia que iria acontecer, e que Deus também amava Nínive, Jonas foi tomado por grande desgosto (Jonas 4,1), e pede mesmo a Deus que lhe dê a morte (Jonas 4,3), pois a vida assim deixou de ter sentido para ele.

8. Vendo melhor as coisas, «Jonas, o hebreu», está com certeza na viragem do século V para o século IV, época de Esdras, que manda dissolver os matrimónios mistos contraídos pelos exilados durante o Exílio ou após o regresso a Sião (Esdras 10; cf. Deuteronómio 7,3). Com esta medida, que deve ter tido um enorme impacto na consciência judaica, os conservadores como que cancelavam da sua história o catastrófico episódio do Exílio, lançando uma ponte que ligava a nova época judaica diretamente ao antes do Exílio. A personagem Jonas incarna bem este Israel particularista e míope, ao contrário do autor do Livro, que testemunha admiravelmente um universalismo salvífico próximo já do espírito do NT. Jonas representa o judaísmo fechado, que pensa que se salvará, fechando-se sobre si mesmo. Esta tentação também afeta a Igreja, e também a nós, de tempos a tempos. Às vezes só vemos inimigos ao redor, e amuralhamo-nos. Vistas as coisas do lado de um Deus que ama a todos, só nos é permitido abrir todas as portas e a todos escancarar o coração. Um coração inquinado asfixia e morre, e também mata.

9. A lição do Apóstolo é hoje breve e intensa (1 Coríntios 7,29-31). São Paulo começa por dizer, em tradução literal: «O tempo (ho kairós) já está a enrolar as velas (synestalménos: perf. pass. de sy(v)-stéllô)» (1 Coríntios 7,29). Entenda-se: o tempo da oportunidade dada, da enchente da Palavra de Deus por nós já respondida ou ainda não, está a chegar ao fim; já está a enrolar as velas, como fazem os marinheiros quando a embarcação se aproxima da terra. E termina, afirmando: «Passa, na verdade, o esquema (tò schêma) deste mundo» (1 Coríntios 7,31). Bem entendido: «O (filme) que passa na tela é este mundo!». Se assim é, devemos aprender a saber relativizar a maneira como habitualmente nos agarramos às nossas ideias feitas e às coisas deste mundo, desde o casamento, aos bens possuídos, aos negócios, aos currículos, aos primeiros lugares. Grande lição de São Paulo em 1 Coríntios 7,29-31. A nossa vocação traduz-se na adesão ao Último, que reclama o desprendimento do penúltimo e um amor desmedido.

10. O Salmo 25, que hoje fica a ecoar no nosso pobre coração, mostra-nos um fino e delicado jogo de olhares entre o orante fiel e um Deus sensibilíssimo, que olha para nós sempre com ternura paternal, refúgio permanente para os pobres e pecadores. Deixo aqui a ressoar as palavras da grande mística muçulmana do século VIII, Rabi?a, que viveu em Bassorá, no Iraque, e que, para responder à pergunta que lhe foi feita: «Como chegaste a um grau tão elevado na vida espiritual?», respondeu: «Repetindo ininterruptamente: “Meu Deus, refugio-me em ti para me defender de tudo o que me distrai de ti, e de todo o obstáculo que se interpõe entre mim e ti”» (I detti di Rabi?a, IV).

11. Lembramos que a Igreja celebra neste Domingo III do Tempo Comum o Domingo da Palavra de Deus. Com a Carta Apostólica Aperuit Illis [«Abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras» (Lc 24,45)], sob a forma de Motu proprio, datada de 30 de setembro de 2019, memória litúrgica de São Jerónimo e abertura da celebração do 1600.º aniversário da sua morte (30 de setembro do ano 420), o Papa Francisco instituiu esta celebração anual neste Domingo.

12. É uma feliz oportunidade para toda a Igreja se debruçar com veneração sobre a Palavra de Deus, que deve escutar com amor e diligência, e da mesma maneira viver e anunciar, dado que a Palavra de Deus constitui para o cristão alimento indispensável. S. Jerónimo dedicou-lhe toda a sua vida e atenção, e deixou escrita esta maravilha: «Que alimentos ou que doces são mais saborosos do que o conhecimento de Deus, a contemplação do pensamento do Criador, a instrução da Palavra de Deus? Que os outros possuam as suas riquezas! Para nós, seja a nossa delícia a meditação da Palavra de Deus dia e noite».

13. Escreveu ele ainda: «Lemos as Sagradas Escrituras. Eu penso que o Evangelho é o Corpo de Cristo; penso que as Santas Escrituras são o seu ensinamento. E quando Ele fala em “comer a minha carne e beber o meu sangue” (João 6,53), embora estas palavras se possam entender do Mistério [eucarístico], todavia também a palavra da Escritura, o ensinamento de Deus, é verdadeiramente o corpo de Cristo e o seu sangue. Quando vamos receber o Mistério [eucarístico], se cair uma migalha sentimo-nos perdidos. E, quando estamos a escutar a Palavra de Deus e nos é derramada nos ouvidos a Palavra de Deus que é carne de Cristo e seu sangue, se nos distrairmos com outra coisa, não incorremos em grande perigo?».

António Couto



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