Domingo III do Advento: «Ele está no meio de nós»

Is 61,1-2a.10-11; Sl Lc 1,46-54; 1 Ts 5,16-24; Jo 1,6-8.19-28

1. O Evangelho deste Domingo III do Advento põe outra vez em cena a figura central de João Batista (João 1,6-8.19-28). Lendo, porém, atentamente o texto do IV Evangelho, compreende-se que não convém a João o título de Batista, como se vê nos Evangelhos Sinóticos, em que aparece designado como «João o Batista» (Iôánnês ho baptistês) (Mateus 3,1; 11,11; 14,8; 17,13) ou «João o que batiza (Iôánnês ho baptízôn) (Marcos 1,4). Na verdade, no IV Evangelho, ainda que se diga que batiza, nunca é dado a João o título de «Batista». Se algum título se ajusta ao João do IV Evangelho é o de «Testemunha», pois é para dar testemunho (martyréô) da Luz que ele se apresenta (João 1,7-8). João aparece como que entalado entre os dois Testamentos, fechando, em modos de resumo, a porta do Antigo, e abrindo, em modos de sumário, a porta do Novo. O seu nome de «João», hebraico Yhôhanan, que significa «YHWH faz graça», a isso se presta admiravelmente, resumindo bem o afazer de Deus em todo o Antigo Testamento, e oferece o sumário de todo o Novo Testamento. «Deus faz graça» é todo o afazer de Deus na Escritura Santa. Além disso, o nome «João» dado a este menino não é um nome nosso, suportado pelos nossos registos anagráficos, como bem constatam os seus familiares reunidos, aos oito dias, para a festa da circuncisão e da dádiva do nome. O habitual era dar ao filho varão primogénito o nome do pai ou de algum familiar próximo, o que não se verifica neste caso. O pai chamava-se Zacarias, e  ninguém, entre os seus parentes, tinha o nome de João (Lucas 1,61), motivo pelo qual todos ficaram admirados (Lucas 1,63).

2. Se o nome dado ao menino sai fora dos moldes habituais, temos então de indagar mais a fundo o porquê deste dado novo. E veremos então que esse nome veio do céu, como refere o Evangelho de Lucas que põe o arcanjo Gabriel a reportar a Zacarias que o menino se chamaria João (Lucas 1,13). E o IV Evangelho di-lo com todas as letras e sem rodeios: «Apareceu um homem enviado por Deus, chamado João» (João 1,6). João surge, portanto, neste imenso texto do IV Evangelho sem qualquer amarra a este mundo: sem pai nem mãe (Zacarias e Isabel nem sequer são mencionados), sem proveniência terrena, sem introdução, sem luz própria. Só Deus o precede, o acompanha e o sustenta.

3. Como pode, pois, responder aos sacerdotes e levitas enviados pelos Judeus, de Jerusalém, que põem a João a questão acerca da sua identidade, assim formulada: «Quem és tu?» (João 1,19). João não faz mais do que desviar de si mesmo todas as atenções. A sua resposta é uma rotunda negação: NÃO sou, NÃO sou, NÃO sou! NÃO sou a Luz, NÃO sou o Messias, NÃO sou Elias, NÃO sou o Profeta! (cf. João 1,20-21). E dirige todas as atenções para a LUZ, de quem dá testemunho, de quem é reflexo. João nunca responde: «EU SOU…». Mesmo quando responde à pergunta: «Para que possamos dar uma resposta àqueles que nos enviaram, que dizes de ti mesmo?» (João 1,22), João não responde, como aparece vulgarmente nas traduções: «Eu sou a voz do que clama no deserto» (João 1,23), mas literalmente: «Eu? A voz (phônê) do que clama no deserto», evitando cuidadosamente a locução «EU SOU», que fica reservada para Jesus! E, ainda assim, tomando sempre as devidas precauções, João diz «voz» (phonê), e não «palavra» (lógos). Porque a Palavra (lógos) é também Jesus.

 

4. Sim, a LUZ, o EU SOU, a PALAVRA é Jesus. Mas Jesus é ainda, no certeiro dizer de João, «QUEM está NO MEIO de vós» (João 1,26). É de Jesus o lugar de honra e a chave da nossa existência. E dizemos sempre várias vezes na liturgia: ELE está no MEIO de nós! Face ao MEIO, no IV Evangelho, João aparece sempre «no outro lado do Jordão» (João 1,28; 3,26; 10,40), fora da Terra Prometida, mas apontando sempre para ela e para ELE. João é a inteira Escritura apontando JESUS em contraluz, em filigrana pura!

5. Voltamos a ouvir neste Domingo metáfora das sandálias do Messias noivo, que já tínhamos encontrado no Domingo passado, e que leva João a confessar a sua incapacidade para lhe desatar as correias (João 1,27). Trata-se de um dizer importante, pois encontramo-lo por cinco vezes no Novo Testamento: Mateus 3,11; Marcos 1,7; Lucas 3,16; João 1,27; Atos 13,25. Dissemos no Domingo passado que não se trata simplesmente de uma confissão de humildade por parte de João face ao Messias-que-Vem. Trata-se, antes, de chamar a atenção para o Messias como noivo de Israel. De acordo com o referido nos Salmos 60,10 e 108,9, «pôr a sandália sobre» significa «tomar posse de»; é, portanto, linguagem jurídica de posse. Passando do simples direito de posse para o direito matrimonial, vemos no Livro do Deuteronómio 25,5-9 que o não-cumprimento da lei do levirato implica que seja retirada a sandália ao cunhado não cumpridor da lei, gesto que garante a sua perda de posse no domínio matrimonial. Passamos então do simples direito de posse para o direito matrimonial. Em Rute 4,7-10, temos um caso jurídico concreto em que o que tem o direito de resgatar o património e de desposar Rute prescinde desse direito. Para o dizer juridicamente, em reunião pública realizada à porta da cidade (Rute 4,1), o homem em causa tira a sandália e entrega-a a Booz, que é o segundo na escala, que fica assim habilitado a resgatar o património e a desposar Rute. A metáfora das sandálias em João 1,27 e nos demais dizeres do Novo Testamento que anotámos significa também que é Jesus o noivo, a quem assiste o direito de desposar Israel, e que a João não assiste esse direito ou competência, mas é desse ato uma importante testemunha.

6. A luminosa página de Isaías 61,1-2.10-11 traça a vocação e a missão do anónimo profeta pós-exílico. Vocação e missão a transbordar de alegria e de beleza, que Jesus faz sua quando, na sinagoga de Nazaré, lhe apõe a sua assinatura com aquele: «Hoje cumpriu-se esta Escritura nos vossos ouvidos» (Lucas 4,21). Trata-se de um verdadeiro tornado que muda a história religiosa dos filhos de Deus, contagiando também a inteira criação.

7. Maria também canta essa alegria no magnificat (Lucas 1,46-54), hoje, Domingo da Alegria, elevado a Salmo Responsorial. E nós com ela, de geração em geração (Lucas 1,48). Isabel foi a primeira a proclamar «Feliz», «Bem-aventurada» (makaría) Maria, porque acreditou no cumprimento (teleíôsis) de tudo o que lhe foi revelado (laléô) da parte do Senhor (Lucas 1,45). Maria «cumprimentada» por Deus, por Isabel, por cada um de nós. Sim, porque Maria é a «causa da nossa alegria», como cantamos na sua litania. E é-o porque foi olhada com um olhar de graça (epiblépô) por Deus (Lucas 1,48), que fez (verbo da criação) para ela grandes coisas (Lucas 1,49), e assim vinha fazendo desde Abraão (Lucas 1,55), e assim continua a fazer ainda hoje e sempre.

8. E São Paulo, na sua Primeira Carta aos Tessalonicenses (5,16-24), também se associa a esta onda de Alegria, com o seu estilo próprio, sobrecarregado de imperativos e de totalidade: «Alegrai-vos sempre! Orai sem cessar! Em tudo dai graças […]. Não apagueis o Espírito. Examinai tudo: guardai o que é bom!» (1 Tessalonicenses 5,18-19).

9. Neste tempo, com tantos cristãos doentes, dormentes, parados, anémicos e anestesiados, e outros apagados ou atolados em tristes banalidades, sobram Hoje incentivos para uma vida nova. No meio do frio próprio do tempo, o Domingo III do Advento atira-nos uma imensa chama de Alegria. Tempo novo. Jesus, a Luz, no Meio. E nós por perto, ao redor dessa fogueira. Haverá, por certo, assim esperamos, mais termostatos, e menos termómetros.

António Couto



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