Domingo XXXI do Tempo Comum: «Não fazer da Religião um Show»

Ml 1,14b-2,2b.8-10; Sl 131; 1 Ts 2,7b-9.13; Mt 23,1-12

1. O Capítulo 23 do Evangelho de Mateus abre o Discurso final ou Escatológico deste Evangelho, como se pode ver em Mateus 23-25, ainda que uma parte do Capítulo 23 seja de teor narrativo, e não discursivo. Este Discurso é sensivelmente igual em tamanho ao primeiro Discurso ou Sermão da Montanha (Mateus 5-7), e fecha com o mesmo refrão que encerra os cinco Discursos deste Evangelho: «E aconteceu, quando Jesus terminou estas palavras…» (7,28; 11,1; 13,53; 19,1; 26,1). Comparando o primeiro com o último, o primeiro abre com bênçãos (makárioi), que caem sobre os pobres, os pacíficos, os pequeninos (5,3-12), e o último abre com maldições (ouaí), que caem sobre os escribas e fariseus hipócritas (23,13-36). Os primeiros identificam-se com Jesus (25,40.45), e são os seus preferidos; os outros são os que fazem da religião um show em nome de Deus, mas sem Deus, marcado por meros eventos ou realizações humanas, buscando aplausos fáceis, e evitando comprometer-se com os desafios do quotidiano. Este último Discurso de Jesus no Evangelho de Mateus acompanhar-nos-á até ao final do Ano Litúrgico: neste Domingo XXXI lemos Mateus 23,1-12; nos três últimos Domingos do Ano Litúrgico, leremos todo o Capítulo 25, assim distribuído: no Domingo XXXII, Mateus 25,1-13; no Domingo XXXIII, Mateus 25,14-30; no Domingo XXXIV, Mateus 25,31-46.

2. Neste Domingo XXXI do Tempo Comum, continuamos a ouvir Jesus a ensinar no Templo, no átrio dos Gentios, seguindo o Evangelho de Mateus 23,1-12. O Capítulo 23 do Evangelho de Mateus apresenta-se assim arrumado: 1) 23,1-12, em que Jesus dirige o seu ensinamento às multidões e aos seus discípulos (Mateus 23,1), primeiro, a todos (Mateus 23,2-7), depois, particularmente aos seus discípulos (Mateus 23,8-12), pondo diante de uns e de outros a figura oca dos escribas e fariseus, o show off da sua religiosidade, a sua busca de notoriedade e de aplauso, apresentando-os como uma espécie de caricatura do seu verdadeiro discípulo, que deve ser humilde, serviçal, filho de Deus e irmão numa família de irmãos; 2) 23,13-36, em que Jesus se dirige diretamente aos escribas e fariseus com sete «ais», sendo o «ai» (ouaí) uma fórmula de desgraça com que os profetas anunciam a ruína que está já aí à porta; 3) 23,37-39, em que Jesus se lamenta sobre Jerusalém, com aquele célebre «Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes eu quis reunir os teus filhos como a galinha reúne os pintainhos…, mas agora a vossa casa ficará deserta», que constitui uma espécie de ponte para o Capítulo 24, em que logo no versículo primeiro, de modo significativo, Jesus sai do Templo, indicando dessa forma o abandono de Deus.

3. Até aqui o Discurso de Jesus processou-se no átrio do Templo. A sua audiência eram as multidões e os seus discípulos, a quem Jesus falava dos escribas e fariseus, resumindo o comportamento destes com aquele claríssimo: «Eles dizem, e não fazem» (23,3). Quando se dirigir diretamente a eles, em 23,13-36, Jesus fulminá-los-á com aqueles sete «Ai de vós» (Ouaì dè hymîn) (23,13.15.16.23.25.27.29), num discurso que aparece igualmente e sintomaticamente atravessado pela «hipocrisia», que se ouve por oito vezes: 23,13.14.15.23.25.27.28.29, sete vezes «hipócritas» (hypokritaí), uma vez «hipocrisia» (hypókisis) em 23,28. A hipocrisia é a contrafação do Evangelho e a gangrena da espiritualidade. Do átrio do Templo, Jesus sai pela última vez, em 24,1, deixando literalmente a «casa deserta»! Jesus usa aqui uma expressão fortíssima: «será deixada para vós a vossa casa deserta» (aphíetai hymîn ho oíkos hymôn érêmos) (23,38). Note-se o contraponto com «a minha casa» (ho oikós mou) (21,13) e com «a casa do meu Pai» (oîkos toû patrós mou) (João 2,16). Casa vazia, casa sem Deus, casa sem Jesus, apenas pedras, as vossas pedras! Está aqui configurado um ponto de não retorno!

4. No Evangelho de Mateus, o mundo dos escribas e dos fariseus é sempre pintado com cores demasiado escuras e sombrias. Este procedimento agressivo resultará provavelmente dos acontecimentos dos anos 70 d.C., com a destruição pelos Romanos (Vespasiano e Tito) do Templo, da cidade de Jerusalém e da nação judaica. Mas este clima hostil contra os fariseus deve-se sobretudo ao facto de a partir da destruição de 70 terem ficado no solo da Palestina, além dos romanos, apenas os fariseus e os cristãos, uns e outros, pacifistas. Os cristãos por natureza. Os fariseus por fazerem da piedade a única arma para apressar a vinda do Messias. Os saduceus eram políticos sagazes, e os zelotes e os essénios eram extremistas armados que montavam emboscadas contra os Romanos. Por isso, perante a destruição operada pelos Romanos na chamada guerra judaica (66-70), estes grupos extremistas ou fugiram ou foram mortos. Ficaram em solo palestinense apenas os fariseus e os cristãos, que não criavam problemas aos ocupantes Romanos. Neste contexto, era óbvio que os fariseus queriam afirmar, face aos cristãos, a sua identidade farisaica, do mesmo modo que os cristãos queriam afirmar, face aos fariseus, a sua identidade cristã. Não admira, portanto, que cristãos e fariseus usem uns para com os outros um tratamento agressivo. O único bom escriba que o Evangelho de Mateus conhece é aquele que se tornou discípulo: «Todo o escriba que se tornou discípulo do Reino dos Céus é semelhante ao proprietário que do seu tesouro tira coisas novas e coisas velhas» (13,52).

5. É agora mais fácil de entender que também Jesus apareça a denunciar a hipocrisia e o fermento dos fariseus, as suas correrias em busca de sucesso e enganosas honrarias. E Jesus aproveita o cenário para prevenir os seus discípulos de todos os tempos, de hoje também, que não devem preocupar-se com estatutos e importância nem correr atrás de honras, ambição e carreirismo, da notoriedade tornada visível nas filactérias (tephillîm), termo só aqui usado no NT, que eram pequenas caixas de couro que continham textos-chave da Escritura (Deuteronómio 6,8 e 11,18), e que os homens atavam à fronte e ao braço esquerdo, para ficar mais perto do coração, ou as franjas de cor azul ou violeta (tsîtsît), que pendiam das vestes (Números 15,38-39), mais tarde do tallît (manto que os judeus piedosos vestem para a oração). Convenhamos em que é bem-intencionada a prescrição, mas acaba por resultar em pura ostentação e show religioso! Ao colocar as filactérias todas as manhãs, para a oração, o judeu piedoso, a partir dos treze anos, recitava a seguinte bênção: «Bendito sejas Tu, Senhor Deus, Rei do Universo, que nos santificaste com os teus mandamentos e nos ordenaste trazer as filactérias». O texto de hoje alude ao costume de os judeus intolerantes usarem as filactérias durante todo o dia, exibindo-as no estudo da Tôrah, e alargando-as para as tornar mais visíveis (23,5). Os primeiros lugares nas sinagogas, banquetes e lugares públicos eram avidamente buscados (23,6), pois conferiam mais valias e visibilidade a quem os ocupava. As saudações desempenhavam e desempenham ainda hoje um importante papel no Médio Oriente. Era e é uma das primeiras coisas que se ensina às crianças judias. A cada classe social corresponde a sua saudação própria. Um rabino, por exemplo, era saudado desta maneira: «Paz para ti, meu professor e meu mestre!».

6. A partir de 23,8, muda o tom dos dizeres de Jesus, e ecoa neles um mundo novo em contraponto com o tom do discurso até então proferido. Jesus fala agora diretamente para os seus discípulos e para quem o quiser ouvir: «Mas vós não vos façais chamar por Rabbî, literalmente «meu maior», pois um só é o vosso Mestre (didáskalos), e vós sois todos irmãos» (23,8). A ninguém chameis «Pai», a ninguém chameis «Guia» (kathêgêtês), que é aquele que indica o caminho, pois «um só», «um só», «um só» (três vezes surge esta expressão no texto de hoje) é o vosso Mestre, o vosso Pai, o vosso Guia. Em consonância, no Evangelho de Mateus, o título de «Mestre» nunca é dado a Jesus pelos seus discípulos, mas apenas pelos de fora; e o título de Rabbî só se ouve nos lábios de Judas, depois da sua apostasia (26,25 e 49). Por sua vez, o termo «Guia» só aparece aqui em todo o Novo Testamento, e é desconhecido no texto grego dos LXX.

7. Salta à vista que devemos proceder sempre com simplicidade e verdade, sem protagonismos, ostentação ou ambição, sem hipocrisias, e que, por detrás de nós, de tudo o que fazemos ou dizemos, deve ver-se sempre o Senhor Jesus, de quem devemos ser pura transparência. Se assim fosse, e assim deve ser, como seria belo e bem diferente este nosso mundo! Mas também: se assim não for, devemos tomar consciência de que andamos perdidos!

8. Sempre em linha com o Evangelho e com a realidade, o profeta Malaquias não verbera os escribas e os fariseus, mas adverte os sacerdotes que, em vez de no seu dia-a-dia darem glória a Deus, dele se desviaram e enganaram o povo, verão a bênção transformar-se em maldição. E deixa para todos uma pergunta direta e sem disfarce: «Não temos todos um único Pai? Por que agimos então com maldade uns para com os outros?» (2,10). Pergunta certeira, que nos obriga a depor as armas da violência e da mentira e nos obriga a investir mais, muito mais, na luta (agôn) do amor (agápês).

9. Enfim, aí está hoje S. Paulo (1 Tessalonicenses 2,7-13) a recordar diante de nós, para que nunca mais esqueçamos e a implementemos, a sua metodologia de anunciador do Evangelho. Fala de Deus com particular afeto e proximidade, sobrepondo as metáforas da criança e da mãe, da dependência e pequenez e da dedicação condescendente (1 Tessalonicenses 2,7). Apóstolos como crianças (népios), sem preconceitos ou prestígio a defender, que tudo recebem com simplicidade e alegria, e apóstolos como mães cheias de ternura, que se dão completamente aos seus filhos. Népios significa, à letra, «criança de peito», e, em sentido translato, «imaturo», «inocente», «dependente» que, de per si, não tem nenhum valor. E trophós não significa exatamente «mãe», mas «ama-de-leite». Mas como é dito logo a seguir que acalenta os próprios filhos, então é uma «ama» que é mãe, uma mãe que amamenta, que se dá totalmente aos seus filhos. Evangelho total: o dom da salvação (euaggélion) e o dom da própria vida (psychê) (1 Tessalonicenses 2,8). Não se pode dar o Evangelho sem dar a vida. O dom da vida não significa, neste contexto, disposição para o martírio estrito, mas partilhar (metadoûnai) diariamente aquilo que constitui a vida: o tempo, as energias, a saúde. O tempo significa amor. Àqueles ou àquilo a que concedo tempo, concedo amor. É, portanto, fácil sabermos quem amamos ou o que amamos. Foi assim, de forma intensa, afetuosa, maternal, personificada, um-a-um, a tempo inteiro e de corpo inteiro, que Paulo transmitiu o Evangelho aos Tessalonicenses e em toda a parte.

10. O Salmo 131, em que o orante se diz assim: «Estou tranquilo e sereno/, como criança desmamada (gamûl),/ no colo da sua mãe;/ como criança desmamada,/ está em mim a minha alma», serve de fundamento maravilhoso a um dos mais belos fios de ouro da espiritualidade cristã, habitualmente denominado por «infância espiritual», o «pequeno caminho», «o permanecer pequeno», «o estar nos braços de Jesus», que Santa Teresinha do Menino Jesus exalta na sua «História de uma alma». Não se trata de uma quietude irracional e cega, semelhante à do recém-nascido, depois de ter mamado no seio da sua mãe. O texto fala de uma criança desmamada (gamûl). E é sabido que, no Oriente, o desmame oficial acontecia tarde, pelos três anos, e dava origem a uma grande festa familiar (cf. Génesis 21,8; 1 Samuel 1,22-24). Também o famoso Padre Jesuíta francês, Léonce de Grandmaison (1868-1927), se segurava neste fio de ouro, e rezava assim: «Santa Maria, Mãe de Deus, conserva em mim um coração de criança, puro e transparente, como uma nascente».

11. Que anda por aqui um mundo novo, lá isso anda. Que entre ele em nós, e que entremos nós nele também.

António Couto



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