Domingo XXIX do Tempo Comum: «Devolvei as coisas de César a César, e as de Deus a Deus»

Is 45,1.4-6; Sl 96; 1 Ts 1,1-5b; Mt 22,15-21

1. Ocupámo-nos nos últimos três Domingos do longo monólogo em estilo parabólico de Jesus, que reunia três parábolas seguidas pronunciadas por Jesus perante as autoridades judaicas religiosas e civis (Mt 21,28-22,14). Deu azo a essas parábolas um diálogo polémico, em tom de disputa, documentado em Mt 21,23-27. Este diálogo polémico é agora retomado em idênticos moldes em Mt 22,15-17, e abre para um novo bloco de três unidades, neste caso três questões dirigidas a Jesus por grupos representativos dos dirigentes religiosos em Jerusalém. Este agrupamento de três questões encontra-se em Mt 22,15-40. Os polémicos interlocutores de Jesus são por ordem: 1) Fariseus e Herodianos (Mt 22,15-22); 2) Saduceus (Mt 22,23-33); 3) um Fariseu (Mt 22,34-40). A estas três questões consecutivas segue-se uma quarta, a mais importante dentro do esquema retórico 3 + 1, posta por Jesus aos Fariseus (Mt 22,41-46).

2. Destes quatro episódios ou questões, apenas dois serão escutados nos próximos dois Domingos. Assim, neste Domingo XXIX do Tempo Comum, escutaremos o episódio de Mt 22,15-22 (cf. paralelos em Mc 12,13-17 e Lc 20,20-26), e, no Domingo XXX, escutaremos a questão posta por um Fariseu acerca do maior mandamento da Lei (Mt 22,34-40). Neste Domingo XXIX, escutaremos o episódio em que Fariseus e Herodianos se juntam para tentar tramar Jesus pela palavra, colocando-lhe por isso e para isso uma pergunta traiçoeira, assim formulada: «É permitido dar (dídômi) o imposto a César, ou não?» (Mt 22,17).

3. Note-se que, tal como as três parábolas anteriores, este episódio decorre no Templo, certamente no Átrio dos Gentios ou Pagãos, uma vasta área de 13,5 hectares, propícia ao encontro de muita gente, judeus e não judeus, onde Jesus se encontra a ensinar desde Mt 21,23 até Mt 24,1, em que é referido que Jesus saiu do Templo.

4. É, portanto, no Átrio dos Gentios ou Pagãos que, de forma estudada e astuciosa, fariseus e herodianos tentam surpreender Jesus com uma pergunta política fechada. Note-se que a pergunta foi preparada e feita para levar Jesus a responder «sim» ou «não». Para o caso, aos maliciosos perguntadores, tanto lhes fazia: para tramar Jesus, tanto lhes servia o «sim» como o «não». Na verdade, se Jesus respondesse «sim», seria visto como colaboracionista com o império romano ocupante e perderia todo o crédito religioso acumulado aos olhos das multidões que o viam como profeta, totalmente do lado de Deus. Cairia assim um dos grandes aliados de Jesus, o povo, que os adversários de Jesus temiam, sendo este medo que até agora os impediu de prender e eliminar Jesus (cf. Mt 21,46). Se respondesse «não», seria denunciado às autoridades romanas como revolucionário, e certamente executado. Com este dilema aparentemente sem saída, os fariseus pensam retribuir a Jesus o embaraço em que os meteu com a pergunta acerca da origem do batismo de João, se era do céu ou se era da terra, de que não souberam sair de forma airosa (cf. Mt 21,23-27).

5. Antes de verificarmos a extraordinária resposta com que Jesus desmonta a armadilha que lhe é posta, é ainda conveniente examinar o grau de adulação e hipocrisia dos perguntadores. De facto, o grupo de fariseus e herodianos aproxima-se de Jesus estendendo-lhe um tapete de louvores, uma espécie de captatio benevolentiae, uma técnica retórica muito em voga no mundo greco-romano em geral, mas também entre os judeus (cf. At 24,2): «Sabemos que és verdadeiro», que «ensinas com verdade o caminho de Deus», e que «não fazes aceção de pessoas» (Mt 22,16). Esta última expressão deriva da locução latina accipere personam [= receber a pessoa], que, por sua vez, traduz à letra o grego lambánein prósôpôn [= receber o rosto], que tem por detrás a expressão hebraica nasa? panîm [= levantar o rosto]. A expressão hebraica faz sentido, e é muito mais clara do que a grega, a latina e a portuguesa. O juiz justo, no ato de administrar a justiça, não levanta o rosto das pessoas, não deve ver quem são as pessoas, isto é, não deve julgar de acordo com o rosto das pessoas ou por interesse, consoante as pessoas sejam ricas ou pobres, simpáticas ou desprezíveis, do nosso grupo de amigos ou não. O grego tenta traduzir a expressão hebraica, mas o latim e o vernáculo «fazer aceção de pessoas» não significa nada.

6. Note-se, porém, que este tapete rolante colocado diante de Jesus por fariseus e herodianos é com a intenção de o fazer mais facilmente escorregar e cair.

7. Mas Jesus, que vê os pensamentos que há nos corações (cf. Mt 9,4; 26,10), descobre logo a malícia deles (Mt 22,18), e diz as coisas a direito, levando a sério o que os seus interlocutores lhe dizem por malícia. Além disso, chama-lhes «hipócritas» (Mt 22,18), uma palavra que se conta 30 vezes em Mateus. Hipócritas, isto é, mentirosos camuflados debaixo de uma capa de verdade. Jesus, portanto, não responde à adulação com adulação, mas denuncia a máscara de mentira que envolve aqueles rostos! Vai mais longe: pede-lhes que lhe mostrem a moeda do imposto per capita (kênsos, transliteração grega do latim census) que, desde o ano 6 d.C., todos os judeus adultos, mulheres e escravos incluídos, tinham de pagar ao império romano. Além de hábeis impostores, os interlocutores de Jesus são igualmente rápidos a tirar a moeda do bolso, um denário, moeda romana correspondente ao salário de um dia de trabalho. Jesus pergunta, de forma contundente, usando o presente histórico do verbo dizer: «Diz-lhes: de quem é esta imagem e a inscrição?» (Mt 22,20). A moeda tinha ao centro a imagem de Tibério coroado de grinaldas, que reinou de 14 a 37 d.C., e à volta a inscrição Ti[berius] Caesar Divi Aug[usti] F[ilius] Augustus, [= Tibério César, filho do Divino Augusto], tendo no reverso Ponti[fex] Maxim[us]. Eles têm, portanto, de responder que uma e outra são de César. Note-se que tudo se passa no recinto sagrado do Templo. E a moeda que estes falsos justos ostentam desrespeita os dois primeiros mandamentos (Ex 20,3 e 4). Na verdade, Ex 20,4 proíbe as imagens (2.º mandamento), e Ex 20,3 proíbe o culto a outros deuses (1.º mandamento): ora, a inscrição descrevia o Imperador Romano com Divi Filius [= filho de um deus].

 

8. Jesus continua a usar o presente histórico do verbo dizer: «Diz-lhesdevolvei (apodídômi) então as coisas de César a César e as coisas de Deus a Deus!» (Mt 22,21). Note-se ainda como Jesus não responde com o verbo «dar» (dídômi) da pergunta (Mt 22,17), mas com «devolver» (apodídômi) o seu a seu dono. E introduz a enfática 2.ª parte «e as coisas de Deus a Deus». Fica então claro que a moeda vem de César e a César deve ser devolvida. Mas Jesus, o Filho verdadeiro de Deus, «imagem do Deus invisível» (Cl 1,15), que até os falsos interlocutores reconhecem que está vinculado a Deus, pois afirmam que ensina o caminho de Deus (Mt 22,16), é para devolver a Deus… Mas já sabemos que estes impostores montaram esta armadilha com o fito de o entregar a César (e é o que vão fazer mais à frente). E também fica claro que o ser humano, homem e mulher, criado à imagem de Deus (Gn 1,26-27), é para devolver a Deus, e não para dar a César.

9. O v. 22, que foi cortado (mal) do texto deste Domingo, desenha a reviravolta dos caçadores caçados na sua própria armadilha. Caçados por excesso, pois refere o texto que ficaram maravilhados (thaumázô), e se foram embora (Mt 22,22). Maravilhados, mas não convertidos! Voltarão cada vez mais envenenados para levar a cabo o projeto iníquo de retirar Jesus de Deus, para o entregar a César. Como se vê, há nesta extraordinária resposta de Jesus muito mais do que a leitura corrente e banal que vê nesta passagem o mero estabelecimento de regras de convivência entre Estado e Igreja…

10. Ao contrário da nossa malícia que vamos extravasando, Deus olha-nos com bondade, e os seus desígnios, mesmo quando escolhe um estrangeiro, são sempre por causa de nós, porque nos ama (Isaías 45,1.4-6).

11. É este também o modo caloroso de agir de Paulo, Silvano e Timóteo, que têm sempre presente, porque a amam, a comunidade de Tessalónica (1 Tessalonicenses 1,1-5). Terá de ser também o nosso modo de agir para com Deus e os nossos irmãos. De modo exemplar: «Damos graças a Deus sempre por todos vós», assim abre o texto mais antigo em absoluto de todo o Novo Testamento, que é esta preciosíssima Carta aos Tessalonicenses.

12. Sim, sem malícia, mas com o coração puro, cantemos as notas sublimes do Salmo 96. A música está escrita diante de nós, no pergaminho da natureza e da história, mas também no rosto belo de cada irmão e da inteira criação. O canto é novo. E já aprendemos com Santo Agostinho que só um homem novo pode cantar um canto novo.

13. Em cada Domingo, celebramos sempre o Senhor Ressuscitado, nosso contemporâneo, que nos guia e acompanha nos caminhos sempre novos da missão. Passa hoje o 97.º Dia Missionário Mundial, a que o Papa Francisco apôs o significativo lema: «Corações ardentes, pés ao caminho!», que é uma tentativa de encher a vida da Igreja com a experiência sempre renovada e cheia de surpresas dos dois discípulos de Emaús, que passam da frustração e da tristeza de pensarem que tinham perdido Jesus para o júbilo do reencontro que os lança numa interminável aventura missionária. É assim que vamos compreendendo cada vez melhor que «Evangelizar é a nossa maneira de ser, a nossa identidade mais profunda» (Paulo VI, Evangelii nuntiandi [1975], n.º 14), o verdadeiro ADN de todo o cristão batizado. Foi o Papa Pio XI que instituiu este Dia Missionário Mundial em 1926. Vamos hoje na 97.ª edição. Importa que não tenha fim o caminho e que o lume não se apague.

 

 

António Couto



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