Domingo XXIV do Tempo Comum: «O Perdão e sem medida»

Sir 27,33-28,9; Sl 103; Rm 14,7-8; Mt 18,21-35

1. Neste Domingo XXIV do Tempo Comum, continuamos a braços com o Discurso Eclesial de Jesus, iniciado no passado Domingo com oportunas e incisivas instruções sobre a correção fraterna (Mateus 18,15-20). O resto do Discurso é servido hoje a Pedro e a todos nós (Mateus 18,21-35). Prevenimos o leitor ou o ouvinte que o Discurso é suficientemente demolidor, capaz de, se atentamente o recebermos, provocar em nós o maior terramoto da história, deixando às claras a radical insuficiência da nossa programação para enfrentar tão gigantesca onda de perdão.

2. Estão-nos no sangue as letras da vingança. Aprendemos bastante bem e depressa com Lamec o chamado «Cântico da Espada»: «Caim será vingado sete vezes, mas Lamec setenta vezes sete!» (Génesis 4,24), feitas as contas, 490 vezes, maneira idiomática de expressar uma enormidade. Face a esta barbaridade desmedida, a chamada «Lei de Talião», do latim taliotalis [= tal, igual] ou ius talionis [= lei do corte ou contusão], aparece assim formulada no Livro do Êxodo: «vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, contusão por contusão» (Êxodo 21,24-25). Formulação semelhante desta Lei já se encontra, de resto, nos parágrafos 196 e 197 do famoso código de Hammurabi, que remonta mais ou menos a 1700 anos antes de Cristo. E, ao contrário do que se diz habitualmente, a «Lei de Talião» não representa a barbaridade, mas um enorme progresso civilizacional, pois assenta, não na multiplicação desenfreada da vingança e da violência, mas na sua contenção, pois condena o agressor a receber apenas sanção igual àquela que ele provocou à vítima. Mas Jesus derruba uma e outra mesa, nem a vingança desenfreada nem a pura igualdade de tratamento, para nos brindar com a desmesura do Perdão, sempre gratuito, excessivo, extravagante, e sempre sem motivação.

3. «Senhor, até quantas vezes devo perdoar ao meu irmão? Até sete?», pergunta Pedro a Jesus (Mateus 18,21), com certeza com uma ponta de vaidade, dado que, as convenções da altura propunham três vezes como limite do razoável para o exercício do perdão. «Não te digo até sete, mas até setenta vezes sete!», respondeu Jesus (Mateus 18,22). Nota-se, sem dificuldade, que Jesus retoma, mas reverte, da vingança para o perdão, a estratégia de Lamec (cf. Génesis 4,24), e provoca um desarranjo completo na cabeça de Pedro, e na nossa. O Perdão, segundo Jesus, não se faz a contar pelos dedos, nem sequer pela máquina de calcular. Se alguém se propõe perdoar, e se põe a fazer contas, ainda que “generosamente”, estará certamente a fazer qualquer coisa, mas não está a perdoar! É que, segundo ensina Jesus, o Perdão faz-se sempre e sem condição. A oração do «Pai Nosso», tal como a encontramos formulada no Evangelho de Mateus, compõe-se de uma série de sete pedidos, todos dirigidos a Deus. Este procedimento só por uma vez é interrompido, para se pôr em realce o nosso comportamento: «Como também nós já perdoámos (aphêkamen: aor. de aphíêmi) aos nossos devedores» (Mateus 6,12). Note-se bem que o verbo que designa o perdão por nós efetuado se encontra, não no presente ou no futuro, mas no passado! Reparemos, portanto, que, no pedido feito a Deus em ordem ao perdão das nossas culpas, devemos inserir esta condição: que Deus nos perdoe na medida em que nós já perdoámos aos nossos devedores. O nosso dever de perdoar é aqui tão salientado, que é como se Jesus nos ensinasse a rezar assim: «Não nos perdoes, se nós ainda não fizemos a nossa parte!».

4. No texto que hoje rompe os nossos ouvidos embotados, Jesus, bom pedagogo, desce ao nível de Pedro, e ao nosso. Conta uma história absolutamente inverosímil, para nos prender a atenção e o coração, e suspender a respiração. É mais uma parábola do Reino dos Céus (Mateus 18,23-35). A cena é preenchida por um Rei – vê-se que é Deus – e pelos seus servos, dado que o Rei [Deus] entende chamar a contas os seus servos. Entenda-se aqui que estes servos não são escravos, mas altos oficiais ao serviço do Rei. Estreita-se a cena, e vê-se agora apenas o Rei e um dos seus servos. Este servo tinha uma dívida enorme, para com o seu Rei [Deus], contabilizada na soma astronómica de 10.000 talentos (Mateus 18,24). Entreveja-se também neste extraordinário dizer de Jesus a forma subtil como Ele sabe trazer Deus para uma questão do quotidiano.

5. O montante é colossal. Tão colossal, que é difícil de quantificar com exatidão. Lembro, para começar, que os estudiosos calculam em cerca de 900 talentos o valor dos impostos anuais que entravam nos cofres de Herodes o Grande (37-4 a.C.). E, após a sua morte, quando o reino de Herodes foi dividido em quatro em tetrarquias, os impostos anuais da Galileia e da Pereia contavam-se em 200 talentos, sendo de 600 talentos os impostos pagos pela Judeia, Samaria e Idumeia. Ou seja, a dívida do servo da nossa história é muito superior ao dinheiro que então circulava no país inteiro! Mais coisa menos coisa, diz a Bíblia de Jerusalém de forma equilibrada, os 10.000 talentos equivaleriam a 174 toneladas de ouro! Os estudiosos não estão todos de acordo no que se refere ao montante em causa, mas, em geral, até sobem a fasquia. Por exemplo, Richard France, no seu belo e imenso Comentário ao Evangelho de Mateus, sobe o montante para 300 toneladas! Entrando por outro tipo de contabilidade, lembro agora que um talento equivalia a cerca de 6.000 denários, sendo um denário o correspondente a um salário diário. Avaliados por este critério, os 10.000 talentos equivaleriam a um montante entre 60 e 100 milhões de denários (Vittorio Fusco, Rudolf Schnackenburg, Craig S. Keener, TOB), que o mesmo é dizer entre 60 e 100 milhões de salários diários! Ou ainda o correspondente ao salário de um trabalhador durante um período que oscila entre 200 e 250 mil anos (Craig S. Keener, John Nolland). Esta linguagem hiperbólica serve para nos fazer ver a desmedida importância do Perdão, e a riqueza que desbaratamos, sempre que que deixamos de praticar um simples ato de perdão.

6. Vê-se bem que este servo não pode pagar aquela dívida imensa, a perder de vista. O Rei [Deus] manda que seja vendido ele, a mulher, os filhos e tudo quanto possui, em ordem ao pagamento da dívida. Aqui o servo pediu ao Rei [Deus] que lhe desse um prazo, e que pagaria tudo. Auge da cena. Será que o Rei [Deus] dá o prazo, ou mostrar-se-á impiedoso? Adianto eu: se der o prazo, é demasiado lógico e simétrico, e esta não é a medida do Evangelho, que rebenta sempre os nossos mais pensados calculismos. Se não der o prazo, pior ainda, passa por ser um Deus insensível e impiedoso, que não sabe nem quer compadecer-se. Eis, então, a incrível e desconcertante resposta de Deus: «Vai-te embora; estás perdoado!» (Mateus 18,27).

7. Entenda-se então agora o essencial, que está bem patente diante dos nossos olhos: o nosso bom Deus tem diante de si, à escolha, duas realidades: 10.000 talentos ou um ato de Perdão. São duas realidades, e Deus tem de escolher uma e de renunciar à outra. Até causa calafrios, e constitui para nós uma tremenda provocação que Deus abdique daquela montanha de dinheiro e escolha realizar UM ATO DE PERDÃO! A escolha é, em si, espantosa, mas é preciso dar ainda um passo em frente na ordem da compreensão. A escolha feita significa que, para Deus e para o Evangelho, um simples ato de Perdão vale mais do que 10.000 talentos! Fácil de entender: se Deus considerasse que 10.000 talentos valiam mais do que um simples ato de Perdão, não teria feito aquela troca! E veja-se, no seguimento da história, a rapidez com que perdemos a memória, e como, sem dó nem piedade, condenamos um «um servo como nós» ao pagamento, aqui e agora, já e à força, de uma bagatela de 100 denários (Mateus 18,28)!

8. O Livro de Ben Sira (27,33-28,9) lá está hoje também a gritar-te ao coração: perdão, perdão, perdão! Não te deixes encharcar por ódios, iras e rancores! São vícios que operam divisões no teu coração e destruição nos teus irmãos. Estes vícios destroem e corroem, e levam-te a destruir a vida dos outros e a sentires mesmo prazer nisso. Limpa o matagal e a traça que há em ti. Cultiva o amor e o perdão.

9. E S. Paulo lembra-nos hoje, em duas linhas claras da Carta aos Romanos (14,7-8), que a nossa vida é pura graça; que é, portanto, do Senhor e para o Senhor, como convém a quem pertence ao Senhor. Dá-se muitas vezes o caso que damos por nós a pensar só em nós, debruçados sobre nós (o chamado amor sui), e até utilizando os outros e o mundo, pura res extensa, sem Sentido preliminar e sem Deus, em nosso único proveito, para os fins que temos em vista, pois, assim se pensa, não há nenhum Sentido objetivo e nenhum Senhor no mundo.

10. O Salmo 103 é uma das joias do Antigo Testamento e constitui um grande canto ao amor de Deus, uma espécie de prelúdio ao «Deus é amor» (1 João 4,8). Desenrola-se em dois movimentos. O primeiro (v. 1-9) trata o amor e o perdão de Deus com sucessivos particípios hínicos, que mostram um Deus que perdoa, cura, redime, coroa de amor e misericórdia, sacia de bem, e uma série de nomes (justiça, dá a conhecer, obras, misericordioso, gracioso). O segundo movimento (v. 10-18) põe lado a lado o amor permanente de Deus e a nossa humana fraqueza. A linha vertical (céu-terra) serve para mostrar a imensidão do amor de Deus (v. 11), escrevendo-se na linha horizontal (oriente-ocidente) a grandeza sem medida do seu perdão (v. 12). O belíssimo v. 13 passa a imagem inultrapassável de Deus como um pai com ventre maternal (rehem). A fragilidade humana aparece traduzida nas imagens do pó (v. 14) e da erva (v. 15-16), em contraponto com a estabilidade do amor de Deus (v. 17). Sem este amor, sem esta música, seríamos talvez levados melancolicamente a pensar que é o mesmo o destino das folhas outonais e dos homens! Deixemos ecoar em nós as belas notas deste grande Salmo 103, que alguns autores já chamaram o Te Deum do Antigo Testamento. 

11. Irmão, deixa-te tomar pela música nova e excessiva do Perdão. Que essa, sim, te encharque até aos ossos, até ao coração!

 

António Couto



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