Domingo XXIII do Tempo Comum: «Tratar os outros excessivamente bem»

Ez 33,7-9; Sl 95; Rm 13,8-10; Mt 18,15-20

1. Em março de 1947, o beduíno Muhammed ed-Dib, da tribo dos pastores beduínos Ta?amireh, descobriu nas onze grutas situadas junto do Mar Morto os célebres manuscritos da comunidade essénia de Qumran, que ali tinha vivido entre os séculos II a.C. e I d.C. A partir do seu conteúdo, um desses manuscritos acabou por receber o título de Regra da Comunidade ou Manual de Disciplina. Tratava-se de uma espécie de «regra monástica», e destinava-se a orientar a vida interna daquela comunidade, contendo também uma série de sanções com que eram penalizados os membros transgressores.

2. Um dos Capítulos desta Regra é dedicado à correção fraterna, e diz assim: «Corrijam-se mutuamente com verdade, humildade e bondade. Ninguém fale ao seu irmão com ira, resmungando e com maldade, mas advirta-o no mesmo dia em que comete a falta, para não carregar ele mesmo com a culpa. Ninguém advirta o seu próximo diante de todos, se primeiro não o fez perante algumas testemunhas» (V,24-26; VI,1).

3. Convenhamos que se trata de medidas de grande elevação, dignas de serem ainda hoje tidas em consideração. Esta viagem a Khirbet Qumran e à Regra de vida da comunidade judaica que aí viveu, vem a propósito do Evangelho deste Domingo XXIII do Tempo Comum, em que nos é dada a graça de escutar um bocadinho do chamado Discurso Eclesial de Mateus, que ocupa todo o seu Capítulo 18. Hoje ouviremos apenas Mateus 18,15-20. No próximo Domingo, ouviremos a parte que resta desse Capítulo, exatamente Mateus 18,21-35.

4. Tendo em conta o teor da Regra da Comunidade de Qumran e o teor do Discurso Eclesial de Mateus (Mateus 18), tem sido este Discurso muitas vezes visto como A Regra da Comunidade Cristã. No bocadinho que hoje nos cabe escutar, aí está, à semelhança de Qumran, a prática da correção fraterna ou promoção fraterna – tenha-se presente a linguagem utilizada: «o teu irmão» (ho adelphós sou) (v. 15[2x]) –, a levar por diante de forma discreta e progressiva e sempre com o perdão no coração e no horizonte, tendo sempre em vista a dignidade da pessoa. Primeiro, tu a tu, a quatro olhos, dois corações, um irmão que procura trazer de volta outro irmão. Tudo muito semelhante à história acabada de contar por Jesus acerca da ovelha perdida e encontrada, e trazida pelo pastor para o seio do rebanho (Mateus 18,12-13). A ideia de fundo que subjaz a esta ida discreta e fraterna de um irmão ao encontro do seu irmão não tem como objetivo ostracizá-lo, condená-lo ou excomungá-lo, mas ganhá-lo, isto é, trazê-lo de volta ao rebanho ou à comunidade que pratica o perdão e o amor. Caso esta primeira tentativa não dê o resultado esperado, se o teu irmão não te escutar (mê akoúsê) (v. 16a), sobe-se a fasquia com o recurso a mais dois ou três irmãos, também ditos testemunhas (v. 16b). Não se trata, porém, de qualquer semelhança com um tribunal e da citação de testemunhas para depor sobre o assunto em questão. Não está em causa sequer a seleção de testemunhas idóneas, isto é, com mais autoridade ou melhor informação. Trata-se sempre apenas de irmãos ou irmãs, que podem ajudar a estabelecer (stathêsetai) a paz e a ultrapassar a desavença havida, seja ela qual for. Se se der o caso de o irmão desavindo «não querer ouvir» (parakoúsê) (v. 17a), o que aumenta a gravidade da situação – uma coisa é «não ouvir», outra coisa, e mais grave, é «não querer ouvir» –, então o caso, até aqui tratado com toda a discrição, passa para o âmbito da «assembleia» (ekklêsía), sempre multiplicando os olhos e os corações, usando sempre a máxima discrição e a boa intenção, embora o assunto seja agora do domínio público. Entenda-se: multiplicando sempre a atenção e o amor. Note-se que a pessoa a «corrigir» ou «promover» não é um fulano qualquer digno de censura, mas é «o teu irmão», como já vimos (v. 15). Refere o texto que, se também «não quiser ouvir» (parakoúsê) a assembleia, considere-se então como pagão ou publicano (v. 17b).

5. Subjaz ao itinerário proposto, que tem de ser sempre o amor fraterno a mover esta importante prática eclesial (trata-se, como acabámos de ver, de «o teu irmão»), e não aquele subtil sentimento que tantas vezes se apodera de nós, levando-nos a pensar que somos melhores ou superiores ao nosso irmão que erra, e que temos autoridade para o advertir. Contra este pretensiosismo, lá está a clave de abertura deste Discurso Eclesial, com os discípulos de Jesus – connosco, portanto – a entreterem-se com a questão inútil de quem é o maior (v. 1), e com a paradigmática resposta de Jesus, chamando uma criança e dando-lhe o lugar do meio (v. 2). E não esqueçamos também que só podemos abeirar-nos de alguém para o advertir, tendo nós o nosso olhar límpido e puro. É fulgurante, a este propósito, a advertência de Jesus num outro importante Discurso no Evangelho de Mateus, o Discurso ou Sermão da Montanha: «Como podes dizer ao teu irmão: deixa-me tirar o argueiro do teu olho, se no teu há uma trave? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e depois verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão» (Mateus 7,4-5). Como é importante que este dizer de Jesus esteja sempre a retinir no nosso coração! E não esqueçamos também que a criança «no meio deles» (v. 2) é igual a Jesus «no meio deles» (v. 20). A criança «no meio deles» (en mésô autôn) reclama todas as atenções, e não todas as admoestações. Tal como Jesus «no meio deles». No meio de nós. No meio da assembleia.

6. Talvez fiquemos satisfeitos e tranquilos, e até, se calhar, cheios de razão e de razões, com a declaração final deste itinerário de correção ou de promoção: «Seja para ti como um pagão ou um publicano!» (v. 17). Mas é, talvez, exatamente aqui que se esconde a carga mais explosiva do Evangelho e se abre o seu horizonte mais amplo! Ou não é verdade que o próprio Jesus se tornou companheiro de viagem e de mesa de publicanos e de pecadores, Ele que veio curar, não os que têm saúde, mas os doentes? (Mateus 9,12; cf. Lucas 5,31-32).

7. Avancemos então uma última e imensa consideração. Não é o texto deste Domingo um exclusivo do Evangelho de Mateus? E não era Mateus um publicano? E não se abeirou dele, um dia, Jesus, quando Mateus, o publicano, estava sentado no seu telónio, um pouco a norte de Cafarnaum, junto da estrada internacional que ligava a Mesopotâmia ao Egito, na divisória das tetrarquias de Herodes Antipas e de Filipe, cobrando impostos e ouvindo insultos dos seus concidadãos? Os insultos não demoveram Mateus do seu ofício. Mas Jesus aproximou-se, cravou nos dois olhos tristes e cansados de Mateus os seus dois olhos repletos de amor, e disse-lhe: «Segue-me!» (Mateus 9,9). Mateus levantou-se e seguiu Jesus, e refere a continuação do texto que foi fazer uma grande festa para celebrar esta página nova e bela que Jesus tinha acabado de escrever na sua vida triste e cansada. Sim, este episódio é exclusivo de Mateus, porque traduz a coisa mais bela e irresistível que aconteceu na sua vida: aquele olhar bom e belo de Jesus, aquele olhar criador de Jesus, que fez Mateus levantar-se do lodaçal e perceber o poder da lógica do amor e do perdão. E de saber bem que é Jesus que está no meio da nossa vida!

8. Portanto, aquele «seja para ti como um pagão ou um publicano!» (v. 17b) não significa que se pode pôr um ponto final no trabalho do perdão e do amor que são devidos a um irmão, e ficar com a consciência tranquila. Este «seja para ti como um pagão ou um publicano» é virar a página da análise fria e da metodologia cultural, social, eclesial e profissional em curso, e começar tudo de novo, absolutamente de novo, usando agora a metodologia absolutamente nova e inédita de Jesus e do Evangelho. A não ser assim, também já podemos antecipar que o nosso ponto final posto ao trabalho do perdão esbarraria logo a seguir com a lógica do «setenta vezes sete» de Jesus para Pedro (Mateus 18,21-22) e do Senhor da história seguinte, que é Deus, e que, de uma assentada, perdoa a um pobre servo a módica quantia de mais coisa menos coisa como o equivalente a 174 toneladas de ouro! (Mateus 18,23-27), e que vamos ter a graça e a coragem de ouvir no próximo Domingo. Note-se também que os três episódios são exclusivos de Mateus, e veja-se o quão importante é termos feito um dia a experiência do perdão! Decisivo na pessoa de Mateus, e em todo o seu Evangelho, é ter sido perdoado e chamado por Jesus!

9. Em plena e boa sintonia, a profecia de Ezequiel 33,7-9 também hoje escutada lembra-nos a nossa condição de sentinelas atentas e ativas, sensíveis, sempre sintonizadas em Hi-Fi, velando para que não se desperdice a força performativa da Palavra de Deus. Leia-se, em contraponto, a advertência fortíssima de Isaías: «Todas as sentinelas são cegas: não entendem; todas como cães mudos: incapazes de ladrar; sonham, ficam deitadas, gostam de dormir» (Isaías 56,10).

10. E sempre na mesma boa sintonia, desafia-nos S. Paulo (Romanos 13,8-10) a termos sempre boa consciência para sabermos que temos uns para com os outros uma bela dívida a pagar todos os dias: o amor mútuo. Trata-se de uma dívida de que não podemos fugir, pois não nos é permitido declarar insolvência!

11. Sim, não nos é permitido declarar insolvência ou adormecer ou entorpecer, de modo a ficarmos inativos, infecundos, insensíveis, tipo «tanto faz!». O Salmo 95, que hoje cantamos, e que é, para os judeus fiéis, a oração de ingresso ou de entrada no sábado (reza-se sexta-feira ao pôr-do-sol em família), e para nós, cristãos, é o Salmo invitatório recitado todas as manhãs, é o mais quotidiano dos Salmos. E deve ser um permanente despertador para não nos deixarmos andar ao sabor de qualquer música, mas apenas e sempre ao sabor da música de Deus. Sim, não é tempo de nos instalarmos aqui, em qualquer «aqui». É necessário levar a todos os lugares e a todas as pessoas este vendaval manso de graça e de bondade e de fé, que um dia Jesus ensinou e todos os dias mostrou aos seus discípulos.

 

António Couto



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