Domingo XXI do Tempo Comum: «Tu és o Cristo!»

Is 22,19-23; Sl 138; Rm 11,33-36; Mt 16,13-20

1. Cesareia de Filipe, antiga Pânias, atual Banyas (nome árabe), na tetrarquia de Filipe, um dos filhos de Herodes o Grande, é o lugar certo para se pôr a questão da identidade de Jesus, que atravessa o Evangelho (Mateus 16,13-20) deste Domingo XXI do Tempo Comum. Cesareia de Filipe, onde se encontra uma das nascentes do rio Jordão, respirava o paganismo do deus Pã e também o culto do Imperador. Ali construiu Herodes um templo dedicado ao Imperador César Augusto, e o tetrarca Filipe, filho de Herodes, deu à cidade, antes conhecida por Pânias, em honra do deus Pã, o nome de Cesareia, também em honra de César Augusto. Dela resta hoje a gruta do deus Pã, lugar que os peregrinos da Terra Santa costumam visitar.

2. É aí, em Cesareia de Filipe, cidade marcada pelo paganismo e pelo culto do Imperador, que Jesus põe a questão da sua identidade. Soberanamente Jesus pergunta: «Quem dizem as pessoas que é o Filho do Homem?» (Mateus 16,13). Dizem-lhe que o povo pensa que Jesus é um profeta. A resposta não está errada. Jesus é, de facto, um profeta. Mas também não se pode considerar certa. E não se pode considerar certa, porque um profeta é um entre muitos: antes dele apareceram muitos; depois dele, outros poderão aparecer. Mesmo que a resposta fosse que Jesus é, não um profeta, mas «o profeta» (cf. João 6,14), a resposta estaria igualmente errada, uma vez que também não respeitaria a singularidade de Jesus, mas o apresentava em linha com Moisés: seria «o profeta como eu», como Moisés, anunciado por Moisés em Deuteronómio 18,15. Também neste caso, Jesus não seria visto como Incomparável. O que vem ao de cima é que o povo não vê em Jesus uma pessoa singular e única, ligada a Deus de um modo único. Ouvida esta resposta, Jesus avança, logo de seguida, de forma direta e enfática, com uma nova pergunta, direta e muito mais implicativa: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» (Mateus 16,15). A esta pergunta nova e diferente, posta por Jesus aos seus discípulos que de há muito o seguiam, Simão Pedro foi rápido a responder: «Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!» (Mateus 16,16). Jesus declara «Feliz» (makários) Simão, filho de Jonas», não por achar que ele reunia competência humana para expressar aquele dizer, mas por saber que o tinha recebido do Pai: «não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas sim o meu Pai, que está nos céus» (Mateus 16,17). Claro que Pedro tinha sido chamado por Jesus (Mateus 4,18-19). Ficamos agora a saber que também tinha sido predestinado pelo Pai (Romanos 8,29-30). Note-se, porém, que esta ligação do dizer de Pedro ao Pai é feita por Jesus, e parece que Pedro não se terá sequer apercebido disso.

3. De forma diferente do povo, Simão Pedro atinge a singularidade de Jesus. Enquanto «Cristo» ou «Messias», Jesus não é apenas um entre muitos. É único, primeiro e último, definitivo (nunca houve outro, e não haverá outro), enviado por Deus para dar à humanidade a plenitude da vida. E enquanto «Filho do Deus Vivo», Jesus está com o Pai numa relação singular e única de conhecimento, igualdade, vida. Tal como o Pai, que é o Deus Vivo, que tem a Vida em si mesmo, também o Filho é e tem a Vida em si mesmo (João 5,26). Entenda-se bem, no entanto, que Pedro diz o que diz, não devido aos conhecimentos, competência e capacidade adquiridos, mas por graça, por revelação do Pai. É sobre este dizer de Simão Pedro e sobre o Simão Pedro deste dizerdizer, não seu, mas recebido do Pai, que Jesus declara que construirá a sua Igreja (Mateus 16,18). Note-se a assonância «Pedro» – «pedra» (Pétros – pétra). Mas note-se também que quem constrói a Igreja é Jesus, e não Pedro, e a Igreja a construir também é de Jesus, e não de Pedro: «sobre esta pedra (pétra) construirei a minha Igreja», diz Jesus. Igreja ou comunidade messiânica segura. As «portas do Hades» (pýlai hádou), semitismo para dizer «o reino da morte» (e não do Inferno), não prevalecerá contra ela, a Casa da Vida. «Em todo o Novo Testamento, só Jesus e Pedro recebem o apelativo de «pedra». «Rocha», «rochedo», «pedra firme» diz-se, em hebraico, tsûr ou sela‘, terminologia usada no Antigo Testamento por 33 vezes para dizer Deus e a solidez do seu amor fiel. Veja-se, por exemplo, na boca e no coração do Salmista: «O Senhor é a minha Rocha (sela‘) e a minha fortaleza (…), nele me abrigo, meu Rochedo (tsûr), meu escudo e meu baluarte, minha torre forte e meu refúgio» (Salmo 18,3).

4. Mas a forma originária para designar a rocha é keph, aramaico kêpha’, que mostra a rocha, não tanto na sua solidez, mas a rocha escavada, oca, espécie de gruta que serve de lugar de refúgio e acolhimento, onde os pássaros fazem os seus ninhos, os animais guardam as suas crias e os homens se refugiam em caso de guerra: não é sólido, mas dá solidez e proteção a uma vida nova. Este segundo veio de termos, que traduzem a ideia de guardar, proteger, abraçar, envolver, alarga-se num vasto campo onomatopaico: kaph, palma da mão; keph, rochedo esburacado (grutas); kêpha’ (aramaico), rochedo esburacado; kêphãs (grego), rochedo esburacado e acolhedor, nome dado por Jesus a Pedro em João 1,42, única vez nos Evangelhos, mas várias vezes em Paulo (1 Coríntios 1,12; 3,22; 9,5; 15,5; Gálatas 1,18; 2,9.11.14); kipah, folha de palmeira, que serve para proteger do sol, e cobertura que os judeus ortodoxos usam na cabeça para indicar a proteção de Deus; kaphar, cobrir, perdoar; kaporet, cobertura, perdão. Sendo de teor onomatopaico, este som existe na composição de vocábulos em todas as línguas. Esta terminologia abre para um Simão Pedro novo, casa aberta e acolhedora, atento, próximo, cuidadoso e carinhoso, frágil, com a missão pastoral de alimentar e cuidar de todos os filhos de Deus. Mas, entenda-se sempre bem, a casa é Deus, e são de Deus os filhos que nela são gerados, acolhidos e alimentados.

5. Note-se bem a precisão da pergunta de Jesus. De facto, Jesus não pede aos seus discípulos que se pronunciem ou deem a sua opinião acerca do Sermão da Montanha ou sobre outro assunto qualquer, por importante que possa ser ou parecer. A pergunta de Jesus é acerca de Si mesmo, da sua própria identidade, da sua pessoa, e do grau de implicação dos discípulos com Ele. Daí que Jesus pergunte, não sobre o saber, mas sobre o dizer. Pedro diz. Não se trata de pensar ou opinar. Não se trata de saber. O saber não compromete a minha maneira de viver. Trata-se de dizer. Quem diz, compromete-se. Por isso, face ao dizer de Pedro, Jesus declara de seguida: «Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus» (Mateus 16,19). As chaves representam uma autoridade própria. Falamos de chaves de uma casa, de uma cidade, de um tesouro, da leitura de um texto. Quem as possui, possui uma autoridade própria em sede administrativa, jurídica, científica, interpretativa. É assim que o texto de Isaías 22,19-23 fala hoje do «rito das chaves» e da autoridade retirada a Shebna e conferida a Eliaqîm.

6. As chaves do Reino dos Céus são as chaves do amor e do perdão, traves mestras de uma comunidade unida e confiante, com os pés na terra e o olhar fixo em Deus. Diz, na verdade, a Constituição Dogmática Lumen Gentium: «Aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo» (n.º 9).

7. É importante, porque esclarecedora e mobilizadora, esta nota do Concílio Vaticano II. De facto, Pedro é a Pedra e tem as Chaves do Reino dos Céus, e é-lhe ainda dada a autoridade de ligar-desligar, isto é, de perdoar-não perdoar: «Tudo o que ligares (dêsês: conj. aor. de déô) sobre a terra, ficará para sempre ligado (dedeménon: part. perf. pass. de déô) nos Céus, e tudo o que desligares (lýsês: conj. aor. de lýô) sobre a terra, ficará para sempre desligado (lelyménon: part. perf. pass. de lýô) nos Céus» (Mateus 16,19). Todavia, esta autoridade de ligar-desligar, isto é, de perdoar-não perdoar, é também confiada à inteira comunidade, exatamente nos mesmos termos em que é confiada a Pedro: «Em verdade vos digo: tudo o que ligardes (dêsête: conj. aor. de déô) sobre a terra, ficará para sempre ligado (dedeména: part. perf. pass. de déô) no céu, e tudo o que desligardes (lýsête: conj. aor. de lýô) na terra, ficará para sempre desligado (lelyména: part. perf. pass. de lýô) no céu» (Mateus 18,18). É belo ver a inteira comunidade assente na Pedra, que é Pedro, com Pedro, como Pedro, não alijando responsabilidades, mas operante na prática quotidiana do Perdão! A comunidade toda comprometida a desenhar o mapa novo do Perdão, a Praça do Perdão!

8. O texto do Evangelho de hoje termina registando a ordem taxativa de Jesus aos seus discípulos para não dizerem a ninguém que Ele é o Cristo ou o Messias (Mateus 16,20). O texto inteiro deste Evangelho (Mateus 16,13-20) é, então, percorrido por um dizer, e fecha com um não-dizer. Trata-se de um dizer novo, não meramente convencional ou tradicional. Não basta dizer um conjunto de palavras que vêm na torrente da tradição, que se recolhem, e se voltam a dizer. É assim que Pedro respondeu bem [«Tu és o Cristo»], e é louvado por isso. Não obstante, Jesus não quer que os discípulos passem esse dizer a ninguém (Mateus 16,20). Por que será?

9. Para sabermos a razão, temos de esperar pelo próximo Domingo (XXII), pois é aí que escutaremos Mateus 16,21-27, o seguimento imediato do texto deste Domingo XXI (Mateus 16,13-20). Na verdade, o texto integral de Mateus 16,13-27, dividido por estes dois Domingos, forma uma unidade incindível.

10. Entretanto, que o nosso coração esteja cheio do amor primeiro de Deus, e que o louvor que lhe é devido encha os dias da nossa vida. É a bela oração de Paulo na Carta aos Romanos 11,33-36.

11. À bela oração de Paulo junta-se hoje a voz do orante do Salmo 138 com a sua bela Ação de Graças, que é «o canto do chamamento universal», como o define S.to Atanásio (séc. IV). O orante, voltado para o Templo (v. 2), como era usual fazer-se no judaísmo tardio (o islamismo fá-lo-á mais tarde em relação a Meca), sente e sabe que a sua oração não esbarra contra um céu cerrado, surdo e mudo, mas é registada e repercute-se no coração de Deus, que em caso algum abandona a obra das suas mãos (v. 8). Grande Ação de Graças deste orante (v. 1) e dos reis de toda a terra (v. 4). Nossa também.

 

António Couto



Newsletter Educris

Receba as nossas novidades