Festa da Transfiguração do Senhor

Dn 7,9-10.13-14 (2Pe 1,16-19); Sl 97; Mt 17,1-9

1. A Igreja celebra hoje, Domingo, dia 6 de agosto, a Festa da Transfiguração do Senhor. Batizado no Jordão, tentado no deserto como Israel, mas Vitorioso, após o jejum preambular de preparação para o início da sua missão na Galileia, Jesus começou a executar o seu programa filial batismal que tem por meta a Cruz Gloriosa (Batismo consumado!) em que nós somos por Ele batizados com o fogo e com o Espírito Santo (sempre o luminoso texto de Lucas 12,49-50). Entre o Jordão e a Cruz Gloriosa, e imediatamente depois do anúncio da sua Paixão, Morte e Ressurreição, dados não compreendidos e até contestados por Pedro e pelos outros discípulos (Mateus 16), aí está Hoje, nesta Festa do Senhor o episódio da Transfiguração (Mateus 17,1-9) – Luz incriada e inacessível (Mateus 17,2; cf. Salmo 104,2; 1 Timóteo 6,16) que investe a Humanidade de Jesus: experiência momentânea da Ressurreição –, mediante a qual o Pai confirma o Filho na sua missão filial batismal, já iniciada, mas ainda não consumada, e confirma também os discípulos, ainda confusos e perplexos, em ordem à sua missão futura. Que a Transfiguração deve ser vista à luz da Ressurreição, fica bem patente no dizer das Igrejas do Oriente que chamam à Festa da Transfiguração, que se celebra neste dia 6 de agosto, «a Páscoa do verão». Mas está também claro na ordem taxativa dada por Jesus aos seus discípulos ao descer do monte: «A ninguém digais esta visão até que o Filho do Homem seja Ressuscitado dos mortos» (Mateus 17,9).

2. Jesus impõe, portanto, na nossa pauta musical, pausa e bemol. Não podemos dizer a Transfiguração do Senhor antes da Ressurreição do Senhor, ou fora dela. E não podemos, porque não sabemos. E não sabemos, porque é só o Ressuscitado que faz vir o Espírito Santo sobre nós. Veja-se a lição do Livro dos Atos dos Apóstolos, com Pedro a explicar assim o Pentecostes à multidão: «Este Jesus, Deus o Ressuscitou, e disto todos nós somos testemunhas. Exaltado à direita de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou-o, e é o que vedes e ouvis» (2,32-33). E o comentário preciso e precioso do narrador às palavras que Jesus acabava de proferir: «Isto disse do Espírito que haviam de receber os que tinham acreditado n’Ele, pois não havia ainda Espírito [para nós], porque Jesus ainda não tinha sido glorificado» (João 7,39). Pausa e bemol, porque importa que não sejamos nós a falar. Importa que seja o Espírito Santo a falar em nós. Portanto, é urgente esperar! Toda a atenção ainda, neste sentido, para o grande dizer de Jesus: «Quando vos entregarem, não vos preocupeis com/ou como falais (laléô). Ser-vos-á dado naquela hora o que falar (laléô). Na verdade, não sois vós que falais (laléô), mas será o Espírito do vosso PAI que falará (laléô) em vós» (Mateus 10,19-20). Portanto, antes e fora da Ressurreição do Senhor, antes e fora do Espírito Santo sobre nós derramado, nós não podemos nem sabemos dizer sobre Jesus seja o que for que faça algum sentido na ordem do divino. Apenas podemos debitar alguns dados da ordem da história, da geografia, da sociologia…

3. O famoso texto de Mateus 17, que traz Hoje até nós o episódio da Transfiguração de Jesus, começa assim: «Seis dias depois, Jesus toma consigo Pedro e Tiago e João, seu irmão, e leva-os, à parte, a um monte alto» (17,1). O uso aqui do presente histórico dá o tom enfático apropriado para vincular o episódio da Transfiguração (17,1-9) ao Capítulo 16, que o precede imediatamente. A presença do artigo antes do nome de Pedro (tòn Pétron), mas não antes dos nomes de Tiago e João, serve para pôr em destaque o papel de Pedro desde o Capítulo anterior, a que se ajusta também a ligação cronológica «seis dias depois». Pedro reconheceu e confessou Jesus como «o Cristo, o Filho do Deus vivo» (16,16), mas opõe-se energicamente às palavras de Jesus (16,22), quando Ele anuncia que vai ter de sofrer muito e morrer e ressuscitar ao terceiro dia (16,21). Pedro e os discípulos sabem bem o que é o sofrimento e a morte, mas não têm qualquer noção do que possa ser a ressurreição dos mortos. Marcos 9,10 observa que os discípulos «se interrogavam entre si sobre o que fosse ressuscitar dos mortos». Além disso, hão de ter eles pensado, para que nos serve um Messias que sofre e morre? Para isto, os discípulos não têm necessidade dele, pois sabem que hão de sofrer e morrer mesmo sem ele. Do Messias, os discípulos, como os judeus em geral, esperavam que viesse pôr fim ao sofrimento e à morte, e que os viesse libertar, a eles e a todos, dessa triste realidade.

4. É tendo tudo isto em conta, sobretudo o desarranjo e incompreensão de Pedro (16,22) e o desconsolo e tristeza dos discípulos (17,23), que Jesus «toma consigo» um grupo de discípulos, e os (autoús) faz subir consigo, e é transfigurado diante deles (autôn); é a eles (autoîs) que aparecem Moisés e Elias; a nuvem luminosa envolveu-os (autoús), e a voz que sai da nuvem dirige-se a eles diretamente, pois fala de Jesus em 3.ª pessoa, e apela a que o escutem; amedrontados e caídos por terra, é Jesus que os (autôn) toca, e manda levantar, e lhes (autoîs) ordena que nada digam acerca desta visão antes de Ele ressuscitar dos mortos. Pela coleta de dados que acabámos de fazer, é fácil compreender que são os discípulos que estão no centro da cena, e que tudo é feito para eles. Na verdade, dada a sua incompreensão e enérgica reação no Capítulo anterior, torna-se necessário clarificar com eles sobretudo três aspetos: 1) contribuir para que possam vir a ter uma noção mais concreta acerca da ressurreição, vendo Jesus na sua glória celeste falando com personagens celestes; 2) ouvir e aprender do próprio Deus que Jesus é o seu Filho, o Amado; 3) predispor-se a escutar Jesus sem reservas, o que significa, entre outras realidades, escutar as palavras de Jesus acerca do seu sofrimento e morte, e não opor-se a elas.

5. A tradição situa o «monte alto», que abre o episódio da Transfiguração (17,1), no Tabor, um monte de forma arredondada que se ergue nos seus 582 metros no meio da planície galilaica de Jesrael ou de Esdrelon. No sopé do Tabor ainda hoje se encontra a aldeia palestiniana de Daburiyya, cujo eco evoca a personagem bíblica mais importante desta região, a profetisa Débora. As Igrejas do Oriente conhecem este episódio da Transfiguração por «Metamorfose» (metamórphôsis), a partir das palavras do texto: «E transformou-se (metemorphôthê) diante deles [= Pedro, Tiago e João], e resplandeceu o seu rosto como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz» (17,2). O branco é a cor divina e celeste. E a luz é o seu vestido, conforme o dizer solene do Salmo 104,2: «Vestido de Luz como de um manto». E, nesse cone de luz, o Apóstolo exorta-nos: «Caminhai como filhos da luz», e lembra-nos que «o fruto da luz é toda a bondade, justiça e verdade» (Ef 5,8 e 9). No contexto da Transfiguração de Jesus, é importante, a aparição de Moisés e Elias, cuja morte se verificou há muito tempo, não estando por isso acessíveis à visão humana comum. Só podem ser vistos se aparecerem, se se fizerem ver, se se apresentarem aos homens a partir da sua existência em Deus. Os discípulos veem que estas figuras celestes falam com Jesus transfigurado, e podem começar a descobrir a realidade que pode estar por detrás das palavras antes incompreensíveis de Jesus quando Ele anuncia a sua Ressurreição. E mais uma vez Pedro se equivoca ao sugerir tendas terrenas para figuras celestes.

6. Marcos 9,6 e Lucas 9,33 anotam criteriosamente que Pedro, ao fazer semelhante sugestão, «não sabia o que dizia». Não sabia, porque ainda não tinha sido batizado com o Espírito Santo e com o fogo; quando o for, saberá também ele, discípulo fiel, batizado e confirmado, levar por diante a missão filial batismal em que foi investido, e dará testemunho até ao sangue. Antes ainda desse final, Pedro recorda o privilégio de terem sido testemunhas oculares da Glória de Jesus sobre o monte santo, e que ouviram aí a voz vinda do Céu, do Pai, a declarar Jesus «o Filho meu, o Amado meu» (2 Pedro 1,16-18). A Ressurreição é a Transfiguração tornada permanente, eterna. Todos os batizados e confirmados estão destinados à mesma Ressurreição / Transfiguração do Senhor: a Divinização.

7. A lição do Livro de Daniel 7,9-10.13-14 e respetivo contexto imediatamente anterior (7,3-8) e posterior (7,15-27) faz transbordar a indescritível riqueza do nosso Deus, solenemente sentado no seu trono de Luz e de Fogo purificador, que inutiliza o poder das quatro bestas enormes saídas do mar com aspeto terrível, e que têm o aspeto de um leão com asas de águia, de um urso com costelas na boca, de um leopardo alado com quatro cabeças, e de um monstro metálico aterrorizador, com enormes dentes de ferro que tudo tritura e espezinha. Tinha ainda dez chifres na cabeça, mas nasceu-lhe entretanto um outro mais pequeno e insolente, com uma boca que proferia palavras arrogantes. Estas bestas representam quatro impérios: babilónio, medo, persa e grego (de Alexandre Magno e seus sucessores). Os dez chifres são os reis da dinastia Selêucida, e o décimo primeiro é Antíoco IV Epifânio (175-163). O tribunal divino toma assento para julgar o arrogante Antíoco, que é morto e destruído. E vê-se então, em contraponto com as bestas que saem do mar, símbolo da desordem e do mal, o Filho do Homem que vem sobre as nuvens, do mundo celeste, portanto. A ele é entregue o reino eterno, não assente no poder prepotente da brutalidade, mas no poder manso do Amor (Daniel 7,13-14). Fica bem claro que todos os nossos impérios prepotentes e ferozes, por mais fortes que pareçam, caem face à doçura da Palavra e da Atitude mansa do Filho do Homem, que dissolve no Amor, que é o poder manso que lhe é dado para sempre, as nossas raivas e violências, manifestações das bestas bravas que nos habitam. O Filho do Homem vence, portanto, sem combater, este combate. É assim que caem as quatro bestas ferozes que sobem do mar (Daniel 7,3), símbolo da confusão e do mal, e que deixará naturalmente de existir quando forem desenhados os novos mapas de um novo céu e de uma nova terra (Apocalipse 21,1).

8. O domínio novo do Filho do Homem que nos ama (Apocalipse 1,5), o domínio do Amor, é Primeiro e Último (Apocalipse 1,8). Entre o Primeiro e o Último instala-se o penúltimo, que é o domínio velho e podre da violência das bestas ferozes que nos habitam. O Bem é desde sempre e é para sempre. É Primeiro e é Último. O Bem não começou, portanto. O que começou foi o mal que se foi insinuando nas pregas do nosso coração empedernido e enrugado. Mas o que começa, também acaba. Os impérios da nossa violência, malvadez e estupidez caem, imagine-se, vencidos por um Amor que é desde sempre e para sempre, e que vence, sem combater (só pode ser por amor), a nossa tirania e prepotência!

9. Entenda-se bem que tem de ser sem combater. Porque, se combatesse, usaria os nossos métodos violentos, o que só aumentaria a violência. É assim que Jesus, o Filho do Homem, atravessa as páginas dos Evangelhos e da nossa história e da nossa vida, entregando-se por Amor à nossa violência, abraçando-a e, portanto, absorvendo-a, absolvendo-a e dissolvendo-a.

10. Pedro, na sua 2 Carta 1,16-19, coloca-se como Testemunha ocular, quer do poder do amor que Jesus recebeu de Deus Pai, quer da sua manifestação gloriosa no monte santo, que confirma a palavra dos profetas. Pedro exorta-nos a prestar atenção a esta palavra, que é como uma luz que brilha no escuro, até que surja a «Estrela da Manhã», que é Cristo (Apocalipse 22,16).

11. Canta-se Hoje o Salmo 97, que canta o Senhor na ação de reinar, isto é, de salvar, de justificar, de perdoar, de recriar, de trazer a prosperidade e o bem-estar ao seu povo e aos seus fiéis. Deus, como Rei, manifesta-se circundado pelos seus assistentes cósmicos (nuvens, trevas, fogo, relâmpagos) e históricos (justiça, direito, glória) (v. 1-6). Face a tão esplendorosa manifestação, os ídolos e idólatras caem por terra (v. 7-9), e os fiéis exultam de alegria (v. 10-12). Os fiéis e justos são definidos com sete expressões particularmente significativas: 1) aqueles que amam o Senhor; 2) aqueles que odeiam o mal; 3) aqueles que são fiéis (hasîdîm); 4) aqueles que são justos (tsaddîqîm); 5) os retos de coração; 6) homens de alegria; 7) aqueles que celebram o «memorial da sua santidade» (zeqer qodshô). Comenta bem o Livro dos Mistérios, de Qumran, que perante a manifestação e inauguração deste Reino novo de Deus, «a impiedade recuará diante da justiça, como as trevas recuarão diante da luz; a impiedade desaparecerá para sempre, e a justiça, como o sol, apresentar-se-á como princípio de ordem no mundo» (1Q27, I,5-7).

12. A Festa que a Igreja hoje celebra é antiga e fortemente impressiva no Oriente. Celebra-se a Imagem de Cristo Transfigurado, e que nos Transfigura. Daí, a importância da Contemplação. O Ocidente conheceu esta Festa tardiamente e celebrou-a esporadicamente, com oscilações locais e de calendário. A Igreja Universal celebra esta Festa apenas desde 1457.

António Couto



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