Pentecostes: «O Espírito Santo (e)m Nós!»

At 2,1-11; Sl 104; 1 Cor 12,3b-7.12-13; Jo 20,19-23

1. O Evangelho da Solenidade deste Dia Grande de Pentecostes (João 20,19-23) mostra-nos os discípulos de Jesus fechados num certo lugar, tolhidos e sedados pelo medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou impedir, nem as portas fechadas daquele lugar fechado, Vem e fica de pé no MEIO deles, o lugar da Presidência, e por duas vezes os saúda: «A paz convosco!» Claro que não é a paz feita pelas armas, como no mundo romano, nem a paz que é fruto de acordos entre as partes, como no judaísmo palestinense. Esta Paz que Jesus insiste em dar tem um aroma diferente: é dom de Deus! Jesus mostra-lhes então, não o rosto, mas as mãos e o lado, bilhete de identidade de Jesus, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, Vida dada por amor, para sempre e para todos, e vincula os seus discípulos à sua missão de dar a vida por amor: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô: tempo presente)» (João 20,21). O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): a sua missão começou e continua. Não terminou nem termina. Ele continua em missão. A nossa missão está no presente. O presente da nossa missão aparece, portanto, vinculado e agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). É-nos dito ainda que os discípulos ficaram cheios de alegria (o medo que os envolvia foi dissipado) ao verem (idóntes: part. aorde horáô) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo (João 20,8), também eles veem com um olhar histórico e a renovar todos os dias (indicações do tempo aoristo) a identidade do Senhor.

2. «Como o Pai me enviou, também Eu vos mando ir». Este como define o estilo da nossa missão de acordo com o estilo e a missão de Jesus. A missão de Jesus não nasce das suas ideias e jeito pessoal, nem é determinada pela sua própria vontade, mas sim pela vontade do Pai: tem o seu fundamento no Pai. Em tudo o que fez e disse, sempre Jesus manifestou, de forma clara, que era a sua comunhão com o Pai a nascente da sua missão. Portanto, assim como Jesus estava em tudo em comunhão com o Pai, também os discípulos devem estar em tudo em comunhão com Jesus. Decorre daqui que os discípulos enviados em missão não se devem apresentar em nome próprio nem agir segundo o próprio modo de pensar, fiando-se nas suas capacidades. Devem, antes, apresentar-se em nome de Jesus e sempre vinculados à missão que dele receberam. Devem ainda, como Jesus, para que a sua mensagem não soe a falso, identificar-se completamente com a mensagem proclamada O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão, Jubileu Divino do Espírito. Este sopro, este vento, este alento, só aparece neste lugar em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

3. O texto luminoso do Livro dos Atos dos Apóstolos 2,1-11, que enche e dá o tom ao dia de hoje, merece ser estendido diante de nós e por nós bem entendido. Ei-lo: «Ao ser completado o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. E veio de improviso, do céu, um ruído como de uma ventania impetuosa, que encheu toda a CASA onde estavam sentados. Fizeram-se ver a eles línguas como de fogo, que se dividiram, e sentou-se uma sobre cada um deles. E todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, como o Espírito dava a eles de se exprimir. Estavam então em JERUSALÉM judeus residentes, homens piedosos, vindos de todas as nações que há debaixo do céu. Tendo vindo, então, este som, convergiu a multidão e ficou perplexa, porque ouviam, cada um na própria língua, aqueles que falavam. Estavam fora de si e maravilhavam-se, dizendo: “Não são galileus todos estes que estão a falar? E como é, então, que nós ouvimos, cada um na nossa própria língua em que nascemos? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia vizinhas de Cirene, romanos residentes, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, ouvimo-los falar nas nossas línguas as maravilhas de Deus!”».

4. É fácil de ver que o texto se articula em duas vagas sucessivas: a primeira agrupa os v. 1-4, e a segunda os v. 5-11. Um único lugar no tempo, um único dia, o 50.º da Páscoa, marca as duas vagas, mas são dois os lugares no espaço que ocupam: a CASA, a sala alta do Cenáculo (v. 1-4), e a CIDADE aberta ao mundo (v. 5-12), que empresta à cena uma ressonância mundial. As duas vagas estão marcadas, logo a abrir (v. 2 e 6), pelo verbo grego gínomai, que é o verbo típico de um acontecimento que não podemos deduzir nem produzir, mas apenas constatar e descrever. Exatamente o contrário de uma doutrina, que se situa na esfera da demonstração e dedução. Qual é o acontecimento? O vento forte e o fogo que, vindos do céu, caem de improviso sobre todos os que estão sentados na casa, irrompendo depois para as praças e ruas da cidade.

5. Lá estamos nós, como se vê e era hábito, todos reunidos no Cenáculo. Mas somos logo varridos e recriados pelo vento impetuoso e incontrolável do Espírito, que varre as teias de aranha que ainda nos tolhem, e pelo seu fogo que nos purifica. O Espírito senta-se (kathízô) – bela e significativa expressão! – sobre nós, Mestre novo dos tempos novos, que orienta e guia a nossa vida, a nossa mente, coração, entranhas, mãos, pés… É o cumprimento da segunda das cinco promessas acerca da Vinda do Espírito feitas por Jesus no Evangelho de João: «Ensinar-vos-á todas as coisas e recordar-vos-á tudo o que Eu vos disse» (João 14,26). Realização em casa, no Cenáculo (Atos 2,1-4). Verificação na cidade e no mundo (Atos 2,5-11): eis-nos a falar outras línguas, dádiva do Espírito! Milagre: cessam incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças, e nasce um mundo novo de comunhão e comunicação plenas, pois todos nos entendemos tão bem como se se tratasse da nossa língua materna. Mas a nossa língua materna não é o português ou o francês ou o inglês ou o chinês, mas aquele perfeito entendimento que existe entre nós e a nossa mãe, quando somos bebés, do tempo da palavra antes das palavras, divina e humana lalação, que passa por sons e intuições, que não precisam de gramática nem sintaxe nem dicionário. Chame-se-lhe confiança, intimidade, ternura, amor. Impõe-se, nesta bela comunidade, uma atitude de vigilância permanente, pois será sempre grande a tentação de querer levar o Espírito à letra! E aí está a advertência vinda dos Coríntios, cujo falar em línguas ninguém entende (1 Coríntios 14,2), sendo preciso o recurso a intérpretes (1 Coríntios 14,28). Claro que não são as outras linguagens do Pentecostes ou do Espírito, em que todos entendem tudo tão bem! E em que todos consideraríamos um absurdo a existência de um intérprete entre a mãe e o seu bebé para traduzir aquela lalação que os dois tão bem entendem!

6. É esta divina lalação (stenagmòs alálêtos) (Romanos 8,26) do Espírito, única menção desta locução no Novo Testamento, que nos ensina a compreender que «Jesus é Senhor» (1 Coríntios 12,3) e que Deus é Pai (?Abba?) (Gálatas 4,6; Romanos 8,15). Anote-se também a importante afirmação de que «a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum» (1 Coríntios 12,7) e «não para proveito próprio» (1 Coríntios 10,33), sendo que o que define o proveito comum é a edificação, não de si mesmo, mas dos outros (1 Coríntios 10,23-24).

7. A tradição situa no Cenáculo as duas cenas acima descritas. É a sala da Ceia Primeira (Lucas 22,12), do último serão de Jesus com os seus discípulos (Lucas 22,21-38), da Aparição do Senhor aos seus Apóstolos (Lucas 24,36), da eleição de Matias (Atos 1,26), da descida do Espírito Santo no Pentecostes (Atos 2,1-4), enfim, o primeiro lugar de encontro da primeira comunidade cristã reunida em oração com Maria (Atos 1,13-14), a primeira sede da Igreja nascente, a mãe de todas as Igrejas, a primeira domus-ecclesia [«casa-igreja»] do mundo cristão, situada uns duzentos metros a sul da muralha de Jerusalém, em local muito próximo da Porta de Sião. O atual edifício remonta ao trabalho dos Padres Franciscanos no século XIV, e sucedeu a outras construções sucessivamente edificadas e destruídas, desde a basílica da Santa Sião [Hagía Sion], do século IV. Sintomaticamente, por se encontrar no quarteirão sul de Jerusalém, o primitivo Cenáculo resistiu à destruição romana da guerra de 70, pois os romanos atacaram e destruíram a cidade a partir da parte norte, mais facilmente expugnável.

8. Associada às cenas acima identificadas, a sala superior do Cenáculo [15,30 metros por 9,40 metros] assemelha-se ao Sinai com os fenómenos então lá registados. Veja-se, a propósito, a bela descrição que deles faz Fílon de Alexandria (± 20 a.C.-50 d.C.): «Deus não tinha boca ou língua, mas, com um prodígio, fez que um rombo se produzisse no ar, que um sopro se articulasse em palavras pondo o ar em movimento. Este transformou-se em fogo que tinha forma de chamas […], e uma voz ressoava do meio no fogo e descia do céu, e esta voz articulava-se no idioma próprio dos ouvintes». Mas também Babel é evocada em contraponto: em Génesis 11,7, «ninguém compreendia mais a língua do seu próximo», mas em Atos 2,6, «cada um compreendia na sua própria língua materna».

9. O Espírito Santo é também enviado em missão. E é Aquele que recebe o que é do Filho (João 16,14 e 15), e que o Filho recebeu do Pai. O Filho é a transparência do Pai. O Espírito Santo é a transparência do Filho. O ensinamento do Espírito Santo é o mesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (João 14,26), e processa-se, ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição de um público determinado, mas na interioridade da inteligência e do coração de cada ser humano. Este ensinamento interior do Espírito Santo é comparado à unção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestes a unção (chrísma) que vem do Santo e todos sabeis (oídate)» (1 João 2,20); ou então: «a unção (chrísma) dele vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas» (1 João 2,27). É a unção que lentamente penetra em nós, ocupa o nosso interior, suaviza as nossas asperezas, cura as nossas dores e faz nascer entre nós comunidade e comunhão. Maravilhoso saber que nos assemelha a Deus, que sabe e cuida de nós (Êxodo 2,25), e nos põe em confronto com Caim, que não sabe do seu irmão (Génesis 4,9), e com Pedro, que não sabe de Jesus (Mateus 26,70.72.74). 

10. Ensinamento novo. Não exterior, com sons e palavras, mas diretamente nas pregas da inteligência e do coração. É assim que a linguagem nova do Espírito afeta ao mesmo tempo o português e o chinês, o inglês e o russo, o católico, o muçulmano e o hebreu. É como quando, em vez de se porem a falar cada um a sua língua incompreensível para o outro, o português e o chinês entregassem uma flor um ao outro! É assim que fala o Espírito, é assim que age o Espírito, Pessoa-Dom, fonte de dons (1 Coríntios 12,3-13).

11. Esta torrente de vida nova e não programada ou programável, esta ventania incontrolável, este fogo manso abalroa aquela casa e a cidade inteira, inunda sem aviso cada coração e move inteligências e vontades. Em plena cidade e a plenos pulmões, São Pedro traduz assim este vendaval manso: «Este Jesus, Deus o ressuscitou, e disso todos nós somos testemunhas. Exaltado à direita de Deus, recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e derramou-o sobre vós, e é isto o que vós vedes e ouvis» (Atos 2,32-33). Em pleno acordo com o dizer de Jesus em João 7,37-39: «Quem tem sede, venha a mim e beba. O que acredita em mim, como diz a Escritura, do seu seio jorrarão rios de água viva». E o narrador comenta com rigorosa precisão: «Isto dizia do Espírito que haviam de receber os que tinham acreditado nele, pois não havia ainda Espírito, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado». Sim, o Espírito Santo vem para nós da Humanidade glorificada do Senhor Jesus. Daí o importante inciso no início do cânon da Solenidade da Ascensão do Senhor, que refere esse dia como «O dia santíssimo em que Jesus Cristo, vosso Filho Unigénito, colocou à direita da vossa glória a nossa frágil natureza humana unida à sua divindade». Imprescindível. É desta humanidade glorificada do Senhor que vem o Espírito Santo para nós.

12. O Salmo 104 põe-nos a contemplar hoje as obras maravilhosas de Deus, cheias do seu alento, que são a alegria de Deus (Salmo 104,31), e a alegria de Deus é a nossa alegria (Salmo 104,34). De notar que a temática de Deus que se alegra é muito rara na Escritura. Aparece hoje no meio deste mundo novo e maravilhoso. Tema, portanto, para recuperar, pois é também a fonte da nossa alegria!

13. Nós somos do tempo da missão do Espírito. Note-se a fortíssima vinculação: «O Espírito Santo e nós» (Atos 15,28), «nós e o Espírito Santo» (Atos 5,32).

14. Deus habitando em nós (João 14,24). Deus connosco (Apocalipse 21). Cidade nova, Consolação nova, Bênção nova, Paz nova, não com a medida do mundo, mas de Deus (João 14,27; Salmo 67).

 

António Couto



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