Domingo V da Páscoa: «Uma mãe sabe tudo melhor»

At 6,1-7; Sl 34; 1 Pe 2,4-9; Jo 14,1-12

1. Os nomes JESUS e PAI juntam-se para entretecer uma rede finíssima que atravessa e extravasa o corpo do inteiro IV Evangelho, onde se ouvem respetivamente por 237 vezes e 124 vezes. Só no Evangelho deste Domingo V da Páscoa (João 14,1-12), pode contar-se o nome PAI (ho patêr) por doze vezes, onze das quais na boca de JESUS! Entenda-se: a vida de JESUS está completamente nas mãos do PAI, dele provém e para ele se orienta totalmente, de modo a JESUS poder dizer com verdade: «EU (egô) e (kaí) o PAI (ho patêr) somos um (hén esmen)» (João 10,30). A locução é audaz, mas clara e de extrema precisão. Não serve para indicar uma só pessoa: são claramente duas, uma indicada pelo pronome egô, e outra pelo nome masculino ho patêr. Duas pessoas distintas, não confusas, e que tão-pouco estão divididas e separadas. Indica esta não-divisão e não-separação a partícula copulativa «e» (kaì), a forma verbal plural «somos» (esmen) e o numeral neutro «um» (hén). O numeral neutro hén indica uma realidade, e não uma pessoa, o que pediria a forma masculina do numeral (heîs). Portanto, entre o PAI e o FILHO Monogénito há uma subsistência comum, indivisa, inseparável e, todavia, distinta e não confusa, relação vital interpessoal contínua. É desta «unidade» e «unicidade» de essência e subsistência concreta entre o PAI e o FILHO que decorre, no nosso texto, aquele límpido dizer de Jesus, dirigido a Filipe: «Quem ME vê, vê o PAI» (João 14,9). Esta plena comunhão de vida entre JESUS e o PAI fica bem expressa nas repetidas fórmulas de «imanência recíproca» ou de «unidade» do PAI e do FILHO, que soam: «Eu estou no PAI e o PAI está em MIM» (João 14,10.11).

2. Estabelecida esta perfeita unidade entre o PAI e JESUS, pode JESUS reclamar dos seus discípulos que acreditem nele (João 14,1b.11.12) como acreditam em Deus (ho theós) (João 14,1a), isto é, no PAI. Theós com artigo, no NT, é reservado ao PAI. «Acreditar» conserva aqui a aceção fundamental que já vem do AT, e que significa «apoiar-se firmemente em alguém» (Isaías 7,9; 28,16) que nos possa salvar. E é claro que a salvação de que aqui falamos consiste na nossa união com Deus, em apoiar-nos em Deus, único arrimo seguro de salvação. O problema consiste agora no nosso acesso a Deus em quem reside a salvação (cf. Isaías 12,2). E JESUS explica aos seus discípulos, nesta hora de despedida, que só há um acesso disponível: Ele próprio, dado que ELE está no PAI, e o PAI está nele. E usando agora a fórmula de apresentação ou de revelação, afirma: «Eu sou (egô eimi) o caminho e a verdade e a vida», a que acrescenta: «Ninguém vem ao PAI senão por MIM» (João 14,6). Claro que Jesus não é um caminho de terra batida ou uma estrada de asfalto. É um caminho pessoal, uma maneira de viver, com entranhas, pés, mãos e coração. Não é uma verdade de tipo filosófico, jurídico ou político, a usual adequação da mente à coisa (adequatio rei et intellectus). Não é uma coisa. A verdade bíblica [hebraico ?emet] não responde à pergunta: «O que é a verdade?», à boa maneira de Pilatos (cf. João 18,38), mas à pergunta inédita e surpreendente: «QUEM é a VERDADE?» De facto, ?emet deriva de ?em [= mãe] e de ?aman [= firmar, confiar], e remete para CONFIANÇA e FIDELIDADE. Não é uma verdade que se saiba. É uma atitude que se vive. É aquela verdade que uma criança vai aprendendo ao colo da sua mãe. Está ali ALGUÉM que a segura e que a ama, ALGUÉM em quem a criança pode confiar, que em caso algum a vai deixar cair ao chão, como bem refere a filósofa, de origem judaica, Edith Stein, depois Santa Teresa Benedita da Cruz. A VERDADE é ALGUÉM de fiar como uma MÃE, realidade bem patente na etimologia, dado que ?emet [= verdade] deriva de ?em [= mãe]. Não engana, portanto. É assim que JESUS, o FILHO, é também a VIDA (zôê) toda recebida (do PAI), vida divina, vida filial do FILHO de Deus, vida toda a nós dada.

3. Diz Jesus para os seus discípulos: «Para onde (ópou) EU vou, vós conheceis o caminho» (João 14,4), mas muda logo o lugar pela pessoa: «EU vou para o PAI» (João 14,12). Pelo meio, cruza-se a incompreensão ou incompetência expressa de dois dos seus discípulos: Tomé e Filipe, que o mesmo é dizer, a nossa incompreensão e incompetência. Tomé, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»], não sabe para onde vai JESUS; logo, não sabe o caminho para lá (João 14,5), e Filipe recebe de Jesus uma repreensão que também nos atinge, pois é proferida no plural, e soa assim: «Há tanto tempo que estou convosco, e não ME conheces, Filipe?» (João 14,9).

4. Tomé é bem Gémeo nosso, nosso irmão gémeo, muito parecido connosco, nesta passagem e em muitas outras. E Filipe, que significa «amigo dos cavalos», único nome verdadeiramente grego entre os Apóstolos de Jesus, também se manifesta muito semelhante a nós aqui e em outros lugares, como, por exemplo, João 6,5-7, onde é literalmente posto à prova por Jesus, e chumba claramente no teste. Na verdade, Jesus pergunta-lhe, para o pôr à prova: «Filipe, onde compraremos pão para que eles comam?» (João 6,5). E Filipe põe-se a contar o dinheiro, dizendo onde põe a sua confiança, e responde que não há nada a fazer, porque não há dinheiro que baste (João 6,7). Filipe, talvez como nós, ainda não sabia que o onde (póthen) a que Jesus se refere não é o shopping, mas é o PAI. Ainda não sabia a Escritura, e não conhecia Isaías 55,1-2, em que Deus nos convida a comprar a Ele pão, sem gastar qualquer dinheiro: «Todos vós que tendes sede, vinde às águas!/ Vós, que não tendes dinheiro, vinde!/ Comprai (agorázô LXX) cereal e comei!/ Comprai cereal sem dinheiro,/ e sem pagar, vinho e leite./ […] Ouvi-me, ouvi-me, e comei o que é bom!» (Isaías 55,1-2).

5. Filipe anda, de facto, bastante distraído, e tem dificuldade em sintonizar a onda de compreensão de Jesus, isto é, o PAI. À pergunta formulada por Jesus em João 6,5, Filipe responde literalmente: «Duzentos denários de pães não bastam (ouk arkoûsin) para que cada um receba uma migalhinha» (João 6,7). E no nosso texto de hoje, logo depois de Jesus ter afirmado: «Se ME tivésseis conhecido, também conheceríeis o meu PAI, e desde agora já O conheceis e já O vistes» (João 14,7), Filipe ainda ousa retorquir: «Senhor, mostra-nos o PAI, e basta (kaì arkeî) para nós» (João 14,8). Não deixa de ser sintomático que este verbo bastar (arkéô) só apareça duas vezes no NT, e as duas vezes apareça nos lábios de Filipe (João 6,7; 14,8). E é ainda mais sintomático que, após ter vivido o grande sinal dos pães e dos peixes realizado por Jesus, ainda não lhe baste agora a revelação de Jesus, mas pareça requerer uma revelação espetacular à maneira das manifestações de Deus no AT.

6. É assim também, maternalmente, que se entende a jovem e bela comunidade cristã nascente, atenta, outra vez como uma mãe, aos seus filhos que necessitam de assistência (Atos dos Apóstolos 6,1-7). Como é belo ver crescer, e cresce mesmo, uma comunidade de rosto maternal, de braços sempre abertos para acolher e abraçar, de mãos sempre abertas para receber, dar e acariciar. Tudo tão ao jeito e ao estilo de Jesus. Total dedicação à oração e ao serviço (diakonía) da Palavra de Deus (6,4). Total dedicação ao serviço (diakonía) da caridade. Atenção, porém: Filipe não aparece com o título de diácono (diákonos). O seu trabalho é evangelizar (Atos 8,26-40), e, se algum título lhe é atribuído, é o de «o evangelista» (ho euaggelistês), como se pode ver em Atos 21,8).

7. É claro, diz S. Pedro (1 Pedro 2,4-9), que Jesus é a pedra viva, base de um novo tipo de edifício, que nenhum arquiteto sabe desenhar ou projetar. É, na verdade, um edifício espiritual, feito de pedras vivas (!). E nós somos essas pedras vivas, esse Templo espiritual, que tem em Cristo a sua referência permanente. Um Templo novo e inédito com sangue, entranhas, mãos, pés e coração.

8. Enfim, o Salmo 34, que hoje cantamos, é um verdadeiro «canto novo» (shîr hadash) a fazer vibrar as fibras do nosso coração com a música do amor misericordioso que nos vem de Deus. Mas é também música sem palavras (terû?ah) (v. 2), jubilação, exultação, lalação de radical confiança da criança que em nós sorri e dança, porque Deus vela por nós. Comenta Santo Agostinho: «Já sabes o que é o canto novo: um homem novo, um canto novo».

9. Passa hoje também, neste Domingo V da Páscoa, o Dia da Mãe, que nos ajuda, com certeza, a entender melhor o Deus de Jesus e o Jesus de Deus da liturgia de hoje. Sobre esta terra exangue, fustigada pelos mísseis e pela insensatez, uma Mãe verdadeira ainda é o ícone mais belo do amor imenso e sem pauta nem medida, que não é meu, nem é teu, nem é nosso, que é de Deus, que atravessa os textos da liturgia de hoje, e se vê a palpitar em tantas páginas indescritíveis destes tempos ácidos e nebulosos. Nós sabemos isso. Mas uma Mãe sabe isso melhor. É por isso que é fácil, neste Dia da Mãe, ver cair pelo rosto de cada Mãe uma lágrima de tristeza ou de alegria! Melhor assim, Mulher e Mãe: sentirás a mão carinhosa de Deus a afagar o teu rosto e a enxugar essa lágrima, de acordo com a lição do Livro do Apocalipse 21,4.

 

António Couto



Newsletter Educris

Receba as nossas novidades