Domingo V da Quaresma: 4º dia de Lázaro ou 3º dia de Jesus?»

1. A «caminhada» quaresmal aproxima-se da sua meta e do seu verdadeiro ponto de partida: a Cruz Gloriosa onde resplandece para sempre o Rosto do imenso, indizível amor de Deus. Nesta altura do percurso (supõe-se que encetámos uma subida espiritual: entenda-se no Espírito Santo e com o Espírito Santo), batizados e catecúmenos devem estar já a ser Iluminados por essa luz, a ponto de se desfazerem das «obras das trevas» e de abraçarem as «obras da Luz», como verdadeiros discípulos que seguem o Mestre até ao fim, que é também o princípio, a Fonte da Vida verdadeira donde jorra o Espírito Santo (sempre Atos 2,32-33; João 19,30.34; 7,38-39). Os catecúmenos têm neste Domingo V da Quaresma, Domingo da dádiva da Ressurreição, os seus terceiros «escrutínios»: última «chamada» para a Liberdade antes da Noite Pascal Batismal.

2. Segundo a maioria dos estudiosos deste Evangelho de João, o episódio da chamada «ressurreição» de Lázaro (João 11,1-45) constitui o 7.º dos sete «sinais» que, neste Evangelho, vão revelando e descodificando o Mistério de Cristo. Depois das bodas de Caná (João 2,1-12) (1.º), da cura do filho do oficial em Cafarnaum (João 4,46b-54) (2.º), da cura do paralítico na «piscina probática» (João 5,1-47) (3.º), da multiplicação dos pães e dos peixes (João 6,1-14) (4.º), de Jesus a caminhar sobre o mar (João 6,16-21) (5.º) e da Iluminação do cego de nascença (João 9,1-41) (6.º). O episódio da chamada «ressurreição» de Lázaro apresenta-se como a charneira deste Evangelho, fechando, por assim dizer, a primeira Parte, mas abrindo também a segunda, que culmina no Grande Último Primeiro «Sinal» que é a própria Ressurreição do Senhor, «o Sinal da Santa Cruz», decifrado pelo Espírito Santo, com que todos fomos (somos) marcados para sempre (Efésios 1,13; 4,30). Esta página, colocada no centro do Evangelho, constitui um verdadeiro «tornado», destacando-se pelo número das pessoas envolvidas, pela extensão e magnitude do texto, pela sua intensidade dramática, pela forma como expõe diante de nós o mistério de Jesus com tão grande clareza, como Aquele-que-Vem-de-Deus para nos libertar das cadeias da morte.

3. Em boa verdade, o episódio da morte e «ressurreição» de Lázaro remete de forma clara para a Morte e Ressurreição do Senhor. O tempo que marca a narrativa não é o tempo de Lázaro (da sua doença, da sua morte, do seu sepultamento). O tempo que marca a narrativa é o tempo (a hora) de Jesus, o Filho de Deus, Aquele-que-Vem sempre, passageiro total, pascal, amigo íntimo (phílos) de Lázaro (João 11,3.11.36), e que amava com amor novo e divino (agápê) Lázaro, Marta e Maria (João 11,5). Meu amigo íntimo que me ama. Teu amigo íntimo que te ama. Nosso amigo íntimo que nos ama. Por isso, quando recebe a notícia da doença do seu amigo Lázaro, Jesus, que tinha acabado de escapar das pedras das mãos dos Judeus e se tinha refugiado no outro lado do Jordão, na margem esquerda do Jordão, na outra Betânia ou Bêthabarah (João 10,39-40; cf. 1,28), deixa passar propositadamente dois dias (João 11,6), e é ao terceiro dia que se encaminha para a Judeia (João 11,7), e é ao terceiro dia que chama Lázaro da morte (João 11,43). Pouco importa que Lázaro já esteja sepultado há quatro dias! (João 11,17.39). Verdadeiramente importante e decisiva é a hora-que-vem (!), agora, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus (João 5,25.28), Aquele-que-faz-viver (zôopoiéô) (João 5,21; 1 Coríntios 15,45), esplendoroso Rio de Luz e de Sentido a inundar a terra inteira, enchendo-a de Vida e de Saúde (Ezequiel 47,1-12; Apocalipse 22,1-2). Verdadeiramente importante é este terceiro dia em que o Filho de Deus é glorificado (v. 4), e suscita a fé de todos os intervenientes na cena: dos discípulos (João 11,15), de Marta (João 11,27), de Maria (João 11,29.32), da multidão (João 11,42), de muitos Judeus (João 11,45).

 

4. Transcorridos os dois dias assinalados (João 11,6), Jesus diz de modo convincente aos seus discípulos: «Vamos de novo para a Judeia» (João 11,7). Os discípulos tentam explicar a Jesus que não é prudente voltar para a Judeia, dado que ainda há pouco de lá tinham sido forçados a sair porque os Judeus se dispunham a apedrejá-lo (João 11,8; cf. 10,31-39). Jesus diz-lhes então que Lázaro está a dormir, e que vai acordá-lo (João 11,11). Os discípulos replicam que, se Lázaro está a dormir, não haverá problema (João 11,12). Intromete-se o narrador para explicar que os discípulos não entenderam que Jesus jogava com a dualidade ou anfibologia semântica do termo dormir, querendo, na verdade, referir-se, não ao sono, mas à morte (João 11,13). Então Jesus diz abertamente: «Lázaro morreu» (João 11,14), e acrescentou que se alegrava por não ter estado lá, para que agora os discípulos pudessem acreditar (João 11,15). É verdade que Jesus jogou com a dualidade semântica do sono de Lázaro, de modo a deixar confusos os seus discípulos. Mas também é verdade que os discípulos de Jesus jogam em dois teclados, começando por considerar, não a morte de Lázaro, mas o seu sono, não tanto a morte de Lázaro, mas a morte de Jesus, adiantando que a ida de Jesus para a Judeia era a sua entrega à morte (João 11,8), e começam a vislumbrar até o significado Batismal dessa morte, uma vez que manifestam o desejo de morrer com Ele (João 11,16), isto é, querem Viver aquela morte! Como bons catecúmenos que seguiram fielmente o Mestre, aprenderam já que a Vida verdadeira brota daquela morte na qual verdadeiramente somos batizados (Romanos 6,3-4), com-sepultados (syntaphéntes), com-ressuscitados (synêgérthête), com-vivificados (synexôopoíêsen), com-sentados na Glória celeste! (synekáthisen en toîs epouraníois) (Efésios 2,5-6; Colossenses 2,12-13). Vocabulário novo cunhado por Paulo. Fantástico aglomerado de aoristos passivos e históricos com que Paulo pretende dizer o inaudito e o indizível: a obra de Deus já realizada em nós!

5. Deixando para trás a Betânia da vida, eis que Jesus já está a chegar à Betânia da morte. Lázaro, diz-nos o narrador, já está sepultado havia quatro dias (João 11,17), e Marta, quando ouviu dizer que Jesus estava a chegar, saltou do lugar em que estava sentada e correu ao seu encontro, e disse-lhe: «Senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido» (João 11,21), palavras que Maria dirá também a Jesus um pouco mais à frente (João 11,32). Com estas palavras, as duas irmãs, cada uma por sua vez, expressam a sua fé de que Jesus podia curar os doentes, mas mostram também a sua desilusão por Ele não ter chegado a tempo! A troca de palavras que se seque entre Jesus e Marta é sublime e imperdível: «Diz-lhe Jesus: “O teu irmão ressuscitará”. Diz-lhe Marta: “Eu sei (oìda) que ressuscitará na ressurreição no último dia”. Disse-lhe Jesus: “Eu Sou (egô eimi) a ressurreição (hê anástasis) e a vida (kai hê zôê); quem acredita em mim, ainda que morra, viverá, e quem vive e crê em mim, não morrerá para sempre. Acreditas nisto?” Diz-lhe: “Sim, Senhor, eu acredito (pepísteuka: perf. de pisteúô) que Tu és o Cristo, o Filho de Deus, Aquele-que-Vem-ao-mundo”» (João 11,23-27). O que acabámos de ouvir é de um alcance excecional. O fio da esperança messiânica que em filigrana atravessa a Escritura Santa, que é toda a esperança judaica confessada por Marta, quando refere que o seu irmão ressuscitará na ressurreição no último dia (João 11,24), conhece aqui o seu fim, pois a sua realização acontece já, agora, na pessoa de Jesus, traduzida nas suas palavras: «Eu Sou a ressurreição e a vida; quem acredita em mim, ainda que morra, viverá, e quem vive e crê em mim, não morrerá para sempre» (João 11,25-26), e confessada por Marta na sua agora altíssima profissão de fé cristã: «Sim, Senhor, eu acredito (pepísteuka: perf. de pisteúô) que Tu és o Cristo, o Filho de Deus, Aquele-que-Vem-ao-mundo» (João 11,27). Marta reconhece em Jesus aquele que veio, não simplesmente do outro lado do Jordão, mas mais radicalmente do outro lado do nosso mundo de sofrimento e de morte, de Deus, para trazer à humanidade, na sua pessoa, a vida de Deus e a comunhão com Ele. Verdadeiramente, a vida, a vida mesmo, é união e comunhão com Deus. E esta vida divina, dada por Jesus à humanidade, atravessa a morte, mas não se extingue nem se apaga na morte. A união e comunhão com Deus, a nós dada por Jesus, não conhece fim nem decaimento nem qualquer tipo de parêntesis. O verdadeiro dom que Jesus nos traz não consiste numa vida terrena que se pode prolongar sempre, digamos uma vida terrena sem morte terrena, mas na vida em comunhão com Deus, esta sim, inextinguível.

6. Depois destes sublimes dizeres de Jesus e depois desta altíssima profissão de fé cristã de Marta (expressa no tempo perfeito grego, que significa, não um ato de fé pontual, mas a atitude de fé permanente), Marta sai de cena e vai chamar a sua irmã Maria (João 11,28), que imediatamente se levanta e vai também ao encontro de Jesus, ainda que os Judeus que estavam com ela, a confortá-la, ao ver tanta pressa e emoção em Maria tenham sido levados a pensar que ela iria ao túmulo para chorar. Mas tiveram que a seguir, afinal, até Jesus. Jesus viu Maria a chorar (verbo klaíô) e viu também a chorar (verbo klaíô) os Judeus que a acompanhavam (João 11,33). E o narrador acrescenta que Jesus chorou (verbo dakrýô) (João 11,35). Belo, belo, belo este Jesus que vem ao nosso encontro, sente as nossas dores, se comove connosco, chora connosco e também por nós. São quatro as menções do verbo chorar, duas por parte de Maria (João 11,31.33), uma por parte dos Judeus (João 11,33), outra por parte de Jesus (João 11,35). O verbo grego empregado é, nos três casos de Maria e dos Judeus, o verbo klaíô. No caso de Jesus, é o verbo dakrýô. Verificando então que Jesus chora porque nos vê chorar, podemos perceber que Jesus chora connosco, misturando as suas lágrimas com as nossas nesta situação dolorosa. Mas devemos notar ainda que o narrador põe Jesus a chorar com um verbo diferente do que usou para nós nas três vezes anteriores. Nós choramos com o verbo klaíô. Jesus chora com o verbo dakrýô. Com este procedimento, talvez o narrador nos queira dizer que, além de chorar connosco, Jesus chora também por nós, ao ver a nossa incredulidade.

7. Depois desta cena das lágrimas, Jesus, sempre comovido, aproxima-se do túmulo de Lázaro, que era uma gruta fechada por uma pedra (João 11,38). Jesus diz: «Retirai (árate: imperativo aor. de aírô) a pedra», e Marta refere então a Jesus a inutilidade, mesmo o desconforto, o mau cheiro de uma tal ação, dado que já lá vão quatro dias desde que Lázaro morreu (João 11,39). Marta continua a pensar que Jesus chegou atrasado, e ainda não compreendeu que não é o tempo de Lázaro (4.º dia) que conta, mas sim o tempo de Jesus (3.º Dia). Por ordem de Jesus, mãos humanas «retiraram (êran: aoristo de aírô) então a pedra» (João 11,41). Assinala-se neste momento a primeira vez, neste Evangelho, que Jesus reza ao Pai (não o tendo feito em nenhum dos sinais até agora realizados), agradecendo ao Pai por o ter ouvido, e dizendo que o fez para que a multidão acredite que foi o Pai que o enviou (João 11,41-42). Só depois da oração ao Pai, Jesus levanta a voz e grita: «Lázaro, vem para fora!» (João 11,43). E Lázaro saiu ligado com as faixas e o rosto envolvido num sudário (João 11,43-44). É preciso ainda uma nova ordem de Jesus à multidão para que Lázaro seja libertado das faixas que o prendem na morte e do sudário da morte que lhe tapa o rosto (João 11,44).

8. Como tudo isto é sublime e grandioso e aponta, em luminoso contraponto, para a ressurreição de Jesus! Aqui, no caso de Lázaro, a pedra é mandada retirar (árate) e é por mãos humanas por algum tempo retirada (êran). O verbo aírô [= retirar] aparece nos dois casos na forma ativa e no tempo aoristo, que traduz uma ação no tempo. Entenda-se: por mãos humanas e por algum tempo, dado que Lázaro, regressado a esta vida terrena, voltará naturalmente a morrer. Mas, para o leitor atento e competente, toda a ação remete já para o cenário da Ressurreição de Jesus. E então, quando se tratar do túmulo de Jesus, o leitor não pode deixar de reparar que a pedra já se apresenta retirada (êrménon: part. perf. passivo), na forma passiva e no tempo perfeito (João 20,1). Oh gramática divina! Entenda-se então: pedra retirada por Deus e para sempre! É o inefável que se abre diante dos nossos olhos! E também as faixas não prendem, e o sudário não encobre! As faixas estão no chão, e o sudário cuidadosamente enrolado em um lugar (João 20,6-7). Tudo está feito, e bem feito, ao jeito do Criador (cf. Génesis 1). Nenhuma ação de libertação é necessária, como o foi em João 11,41.44 para Lázaro.

9. A vida cristã, no seu todo, a nossa vida toda, decorre daquele 3.º Dia de Jesus, como decorre também da voz de Jesus, e daquela única mão que nos salva e nos liberta dos vales onde vamos caindo mortos. Ele é a nossa Vida. Ainda hoje, em Betânia, atual al-Azariye, aldeiazinha situada na colina oriental que desce do monte das Oliveiras, a cerca de três quilómetros de Jerusalém, se pode visitar, descendo 24 degraus, o túmulo que a tradição popular atribui a Lázaro. Ao lado está a igreja franciscana, dita «da amizade», levantada pelo famoso arquiteto Barluzzi, em 1952-1953.

10. O imenso texto de Ezequiel 37,12-14 é uma belíssima metáfora plantada no meio da Escritura, uma lampadazinha (2 Pedro 1,19) que aponta já para a Luz nova e grande de Jesus. A metáfora mostra-nos que os exilados na Babilónia são como ossos ressequidos e sem nenhuma esperança. Eles estão na morte e na humilhação. O seu discurso não deixa dúvidas: «Os nossos ossos estão secos; a nossa esperança está desfeita; para nós está tudo acabado» (Ezequiel 37,11). Mas a Palavra de Deus manda também na morte. Apontando para o Novo Testamento, Deus chama os mortos dos seus túmulos, e fá-los reviver. Jesus que passa no Evangelho de Hoje «grita com voz forte» (João 11,43), e Lázaro, morto, saiu do túmulo.

11. Paulo não se cansa de nos lembrar a vida nova que habita os filhos de Deus (Romanos 8,8-11). «Viver em Cristo» ou «no Espírito» são fórmulas batismais intensas que indicam a vida nova do batizado: com o dom da Iluminação, marcado pelo Espírito até à Vida eterna. Mas agora é tempo de passar, como Jesus, ao estilo de Jesus, dando um testemunho credível da nossa condição nova de filhos de Deus, deixando o fruto do Espírito iluminar a nossa vida. E «o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio» (Gálatas 5,22-23).

12. Sim, o Salmo 130 é um grito desde o abismo profundo em que jazemos atolados. São apenas 52 palavras hebraicas que atiramos a Deus, Senhor do Amor fiel (hesed) da Redenção (pedût). Cada orante que grita este Salmo sabe em que grau ou degrau de profundidade está. Sim, este é um dos 15 Salmos graduais ou das subidas ou das peregrinações (120-134). É uma voz que se levanta e sobe até àquele Senhor que não desprezou as nossas profundezas, mas até elas desceu, e até elas desce, para nos ajudar a subir!

 

António Couto



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