Domingo VI do Tempo Comum: «Habitar nas Alturas»

Sir 15,16-21; Sl 119; 1 Cor 2,6-10; Mt 5,17-37

1. Continuamos a escutar, neste VI Domingo do Tempo Comum, o sublime Discurso da Montanha, hoje as quatro primeiras das famosas «seis antíteses» (Mateus 5,17-48), cujos temas são: o homicídio (1), o adultério (2), o divórcio (3), o perjúrio (4), a lei de talião (5), o amor ao próximo (6). Ouviremos então, neste VI Domingo do Tempo Comum, o sublime dizer de Jesus sobre os primeiros quatro temas: homicídio, adultério, divórcio e perjúrio (Mateus 5,17-37), enquanto nos preparamos para ouvir no próximo Domingo, VII do Tempo Comum, os últimos dois importantes temas: a lei de talião e o amor que a todos devemos (Mateus 5,38-48).

2. Não nos esqueçamos que continuamos na Montanha, nas alturas, pois há certas maneiras de viver e de sentir que só podem ter o seu habitat nas alturas. O Papa S. João Paulo II escreveu na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte [2001], n.º 31, que perguntar a um catecúmeno se ele quer receber o batismo é o mesmo que perguntar-lhe se ele quer ser santo, e fazer-lhe esta última pergunta é colocá-lo no caminho do Sermão da Montanha. E logo a seguir, na mesma Carta e no mesmo número, S. João Paulo II define a santidade como a «”medida alta” da vida cristã ordinária». É, portanto, imperioso que o cristão aprenda a ganhar altura, não para se separar dos caminhos lamacentos do quotidiano, mas para os encher de um amor maior.

3. Cada uma das «seis antíteses» abre com as palavras de Jesus: «Ouvistes o que foi dito […]; porém, eu digo-vos», fazendo-nos compreender, com o uso desta locução, que fala com a autoridade de Deus. Em termos formais, Jesus usa a técnica de contraponto, e não quer que se desperdice nada do Antigo Testamento; quer antes enchê-lo (plêróô), levar quanto aí é dito, que é Palavra de Deus, ao seu ponto mais fundo e mais alto. Por exemplo, quando ouvimos o que foi dito: «Não matarás!» (Mateus 5,21), para cumprirmos este mandamento, não basta determo-nos no limiar do assassínio, como manda a letra, de acordo com uma leitura literalista e legalista da Palavra de Deus. É preciso ir mais fundo e mais alto: mondar todas as raízes da ira, do ciúme, da inveja, do ódio, desprezo e desamor, e encher todos os regos e cicatrizes de mais amor, mais amor, mais amor, só amor. Não se trata apenas de travar a fundo no último momento, evitando o acidente; trata-se de viver permanentemente a nova cultura do amor. Neste sentido, escreve S. João, com ponta fina de diamante, não na pedra ou no papiro ou no papel, mas no nosso coração meio embotado e engessado: «Quem não ama o seu irmão, é homicida» (1 João 3,15).

4. «Não matarás!». Palavra fortíssima e de extrema mansidão, inscrita no Rosto ou viso nu do Outro, de qualquer outro, pobre e nu e senhor, pobre porque nu, e senhor porque pobre e nu, que de improviso te visita e te elege, e te ordena, de forma imperativa e não optativa [soa: «Não me matarás!», e não: «se quiseres, podes não me matar!»], entregando-te uma palavra que é um mandamento, que não te deixa em estado de decisão, que não se dirige, portanto, à tua liberdade de escolha, mas à tua responsabilidade, pois te manda responder a ele e por ele, pela sua vida, resposta que não podes adiar nem delegar. Na verdade, foi a ti que ele elegeu, é a ti que ele dirige o seu mandamento: «Não matarás!», obrigando-te, portanto, a responder, e não te dando a possibilidade de não responder. Reclama a tua responsabilidade: por muito que te custe compreender, trata-se de uma responsabilidade anterior à liberdade! Coisa simples, que só não compreendes se não quiseres. É o “bom dia” antes do cogito. Devemos estar atentos, porque o rosto pobre e nu do outro é o único soberano que existe. Pode estar em coma à beira da estrada, na soleira da tua porta, na cama de um hospital. Não tem nenhum poder (não te aponta uma arma, não tem dinheiro para te seduzir ou para te pagar…), e, todavia, obriga-te, sem te obrigar, a debruçares-te sobre ele. Quando dás por ti, estás debruçado sobre ele a prestar-lhe todos os cuidados. Vês, então, como ele é soberano? É o único que te pode libertar dos cadeados da tua Sinngebung (da tua capacidade de produção de sentido subjetivo). Os que têm espingardas e dinheiro, na verdade, pouco podem fazer por ti: apenas te podem escravizar! Não te podem libertar! São tiranos e prepotentes. Não são soberanos! Seguem as leis da natureza. Não sabem fazer milagres!

5. E assim também o adultério, o divórcio, o perjúrio. Qualquer destes pontos representa o fim de um amor, que é sempre um acontecimento dramático. Veja-se atentamente, neste mundo cinzento e insípido, sem sol e sem sal, em que vivemos, o drama imenso que cada divórcio comporta. Digo-o em termos de sociedade e de humanidade. E o estranho é que, no meio deste nevoeiro de «compromissos enlatados» ou «relações de bolso», ainda haja gente perversa ou simplesmente imersa na piscina da banalidade a contar os divórcios com imensa volúpia, pensando de forma sarcástica e mordaz que é a Igreja Católica que está em perda e a afundar-se. Nem imaginam que o terreno também lhes está a fugir de debaixo dos pés! Mas, para encher de sentido o «porém, eu digo-vos» de Jesus sobre estes pontos precisos, também não basta viver uma vida cinzenta e mentirosa e evitar em cima da linha chegar ao adultério, ao divórcio ou ao perjúrio. É necessário encher a vida inteira de amor, de mais amor, só de amor. É preciso verificar tudo o que está antes da ação má que estamos para fazer. É fácil de ver que não basta, no limite, «cortar a mão direita» ou «arrancar o olho direito». Já se sabe que estas expressões não são para tomar à letra. Na verdade, não é o olho que peca, mas o homem. E mesmo que se arrancasse o olho, bem sabemos que ainda lá ficam a imaginação, a fantasia e a doentia vontade do homem.

6. Para todas as situações de desentendimento, Jesus propõe, não apenas que se impeça que se chegue a fazer mal a alguém, mas que por todos os meios e modos, primeiro, primeiro, primeiro (prôton), se chegue à «reconciliação» (diallássô). Jesus vê aqui um remédio ou um «sal» tão importante que, por causa dele, é lícito interromper o próprio culto a Deus (Mateus 5,24). A reconciliação aparece como uma condição indispensável para se poder prestar culto a Deus. E nem é preciso que saibas e sintas que és tu que tens alguma coisa contra o teu irmão. Basta que te recordes que «o teu irmão tem alguma coisa contra ti» (Mateus 5,23). Mesmo que penses que é o teu irmão que tem alguma coisa contra ti, não podes pensar que não é nada contigo. Tens de te pôr a caminho para sanar a situação. Já se sabe que este comportamento passa por cima dos códigos de boas maneiras. Mas o Evangelho requer de ti esta atitude, e não te deixa ficar tranquilamente à espera. Por aqui se vê que é requerido um paladar apurado e uma sensibilidade afinadíssima nas nossas relações fraternas para nos apercebermos quando alguma coisa não está bem. Não se fala sequer de haver culpas. O que aparece como decisivo e necessário é estarmos em fraternas relações com os irmãos, para nos podermos aproximar de Deus. Compreende-se a prioridade de Jesus neste relacionamento fraterno, pois, se este não estiver assegurado, como é que podemos ainda voltar-nos para Deus, Nosso Pai, e rezar em boa consciência a oração do «Pai Nosso», que está no centro do Sermão da Montanha, isto é, no coração dos ensinamentos de Jesus? Sim, é óbvio que, para rezarmos com verdade a Deus, a quem Jesus nos ensina a chamar, não apenas Pai, mas «Pai Nosso», precisamos mesmo de estar em fraterna sintonia com todos os nossos irmãos. Se assim não for, é claro que a nossa oração é mentirosa e o nosso culto vazio. Vê-se que é preciso pôr sal na vida, não deixar que o nosso coração se torne pesado e insípido, para que possamos permanecer no cimo da Montanha, e nos deixemos deslumbrar, como as multidões, com este novíssimo, em conteúdo e método, ensinamento de Jesus (Mateus 7,28-29).

7. O belo Livro de Jesus Ben-Sira, de que hoje recebemos a deliciosa lição de 15,16-21, lembra-nos que os mandamentos de Deus estão sempre cheios apenas de bondade. Serve essa fortíssima afirmação para nos advertir que a nenhum de nós foi dada licença para pecar, nem sequer para produzirmos coisas vãs e ocas, sem ponta de sal ou de sentido. Vale ainda saber que este livro delicioso, de tom edificante, terá sido escrito por Jesus Ben-Sira em hebraico no primeiro quartel do século II a.C., aí por volta dos anos 180-175, tendo sido depois lido e muito apreciado por um seu neto, no Egito, parece que no ano 132 a.C. Tanto o neto apreciou o texto do seu avô, que resolveu traduzi-lo para grego, para possibilitar que muitos outros o pudessem ler também com proveito. Bela também esta ligação entre as gerações.

8. S. Paulo fala-nos na lição de hoje da Primeira Carta aos Coríntios (2,6-10) da Sabedoria de Deus. E lembra-nos que a Sabedoria de Deus não está à venda em nenhum mercado deste mundo, nem está na posse dos senhores deste mundo. E precisa ainda que a sabedoria dos senhores deste mundo, que é sempre a sabedoria orgulhosa e arrogante que nos pode fazer senhores do mundo, mas nos conduz sempre fatalmente para a ruína. A verdadeira sabedoria, a de Deus, é depositada no nosso coração pelo Espírito de Deus, dando-nos assim acesso, por graça, às insondáveis riquezas divinas que Deus, desde sempre, tem preparadas para nós. Em vez da ruína, fica aberta diante de nós uma maneira nova de viver e de morrer. Chama-se santidade, «medida alta» da vida cristã ordinária.

9. À nossa frente estão sempre os caminhos do Senhor, que devemos calcorrear com alegria e felicidade recebida e dada, enquanto cantamos a imensa partitura do Salmo 119, admirável composição de 1064 palavras hebraicas reunidas, repartidas, repetidas, entretecidas e entretidas à volta da Palavra de Deus que alumia a nossa vida. O grande pensador francês Blaise Pascal (1623-1662), de quem o Papa Francisco já anunciou querer abrir o processo de beatificação, recitava este Salmo todos os dias.

António Couto



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