Domingo IV do tempo Comum: «Felizes, Felizes, Felizes»

Sf 2,3; 3,12-13; Sl 146; 1 Cor 1,26-31; Mt 5,1-12a

1. Vimos no Evangelho do Domingo passado (Mateus 4,12-23), Domingo III do Tempo Comum, que, tendo partido do Sul para o Norte da terra de Israel, Jesus alumia logo com a sua presença e pregação a sombria região da morte, que é como aparece descrita a região da Galileia. E aí, no coração de Neftali, que é Cafarnaum, passando junto do mar, imperativamente Jesus ordena a quatro pescadores de peixes que o sigam, com a indicação de vir a fazer deles pescadores de homens. Entendendo ou não o significado das palavras de Jesus, aqueles pescadores de peixes largaram logo tudo e imediatamente o seguiram. O texto fechava com a anotação de que Jesus percorria toda a Galileia ensinando, pregando e curando (v. 23). Nos dois versículos seguintes (v. 24-25), que fecham Mateus 4, e que não foram objeto da nossa atenção no Domingo passado por não fazerem parte do Evangelho então proclamado, dizia-se que a sua fama se espalhou por toda a Síria (v. 24), e finalmente que «o seguiam multidões numerosas (óchloi polloí) vindas da Galileia, da Decápole, de Jerusalém, da Judeia e da Transjordânia» (v. 25). Com esta maneira de reunir à sua volta multidões oriundas de toda a parte, e pregando, ensinando e curando, Jesus ilustra bem a natureza da pesca de homens para a qual tinha chamado aqueles simples pescadores de peixes.

2. Entramos agora na lição do Evangelho do Domingo IV do Tempo Comum, em que continuamos a seguir (seguimento imediato do Domingo passado) o Evangelho de Mateus (5,1-12a). Já sabemos que esta perícope de Mateus é conhecida por «BEM-AVENTURANÇAS», que abre o chamado «Discurso da MONTANHA», que preenche o terreno literário de Mateus 5-7. É o primeiro de cinco grandes Discursos proferidos por Jesus, que constituem a espinha dorsal do Evangelho de Mateus, e que aqui explicitamos para uma melhor compreensão do leitor: 1) o Discurso programático da MONTANHA (Mateus 5-7); 2) o Discurso MISSIONÁRIO (Mateus 10); 3) o Discurso das PARÁBOLAS do REINO (Mateus 13); 4) o Discurso ECLESIAL (Mateus 18); 5) o Discurso ESCATOLÓGICO (Mateus 24-25). Os cinco Discursos são fáceis de identificar, pois, a terminar cada um, encontra-se sempre o mesmo refrão ou marcador: «E aconteceu, quando Jesus terminou estas palavras…» (7,28; 11,1; 13,53; 19,1; 26,1).

3. Voltando atrás e fazendo as contas, seguem então Jesus quatro pescadores, e também as multidões assinaladas na cena anterior, no final de Mateus 4. O texto que se segue imediatamente (Mateus 5,1-2), que introduz o Discurso programático de Jesus na Montanha, diz assim:

«Vendo então as multidões (óchloísubiu à montanha, e tendo-se sentadovieram ter com Ele os seus discípulos (hoi mathêtaí autoû). Abrindo então a sua boca, ensinava-os (edídasken autoús), dizendo».

Não espanta que Jesus veja as multidões, pois já foi dito que o seguiam desde o último versículo do Capítulo anterior (4,25). Deve admirar-nos mais a presença dos discípulos, pois até é a primeira vez que Mateus emprega este nome no seu Evangelho. Na cena anterior (4,18-22), Jesus chamou quatro pescadores, a quem indicou uma nova missão, mas não lhes foi aplicada a qualificação de discípulos. E a próxima vez em que o nome aparecer, estaremos já em Mateus 10,1, falando-se aí de «os seus doze discípulos», de quem se indicam os nomes (10,2-4). E o certo é que, entre os doze, estão lá os nomes dos quatro pescadores, e também o nome de Mateus, entretanto chamado por Jesus em Mateus 9,9, sem que receba aí a qualificação de discípulo. Mesmo sem sabermos como se passou de quatro para doze, e dada a presença do nome discípulos em 5,1 e 10,1, é de supor que em 5,1, com o nome discípulos, se tenha em vista os doze discípulos, até pela importância do ensinamento que Jesus vai fazer na Montanha, e que se destina em primeiro lugar aos seus discípulos, pois é dito que vieram ter com Ele, e que os ensinava (edídasken), estando o pronome claramente em vez do nome discípulos, e o verbo no imperfeito, que implica duração, ensino continuado. Os discípulos formam, portanto, o primeiro círculo do ensinamento de Jesus. A anotação da presença das multidões (óchloi) é importante. E é também a elas, como que num segundo círculo, que se dirige o ensinamento de Jesus. De tal modo que, no final do inteiro Discurso da MONTANHA, em 7,28-29, é-nos mesmo dada a conhecer a reação das multidões que «estavam maravilhadas pelo seu ensinamento, pois os ensinava como quem tem autoridade, e não como os seus escribas». Não convém perdermos já as multidões de vista, pois é dito numa passagem idêntica, em 9,36, que «vendo as multidões (óchloi), sentiu compaixão (esplagchnístê) delas», que soa ao contrário de 8,18, em que se lê: «vendo uma multidão (óchlos), ordenou que partissem para a outra margem». «Vendo uma multidão» motiva separação. «Vendo as multidões» motiva compaixão por elas. É seguramente o caso das multidões que seguem seguem Jesus desde 4,25, e que estão agora, em 5,1, debaixo da vista dele a escutar os seus ensinamentos. É também Jesus a ensinar os seus discípulos como pescar homens.

4. Está a acontecer o Evangelho. Jesus  as multidões, sobe à montanha, os seus discípulos dirigem-se para Ele, Ele senta-seabre a sua boca, e ensina demoradamente. Tudo expressões que indicam a postura de Mestre Judaico, e também a solenidade deste início do ensinamento público de Jesus. Seja qual for a Montanha, ela aparece determinada com artigo definido (tò óros), o que deixa entender que se trata de uma Montanha concreta e conhecida (a tradição indica o Tabor), o que interessa é verificar a altura, a qualidade, a tonalidade e a intensidade que há que colocar no desempenho deste novo ministério de pescar homens. É dessa altitude, dessa MONTANHA, que Jesus diz a rapsódia mais bela e encantatória e revolucionária das «FELICITAÇÕES» ou «BEM-AVENTURANÇAS». É verdade. Há certas maravilhas que só se podem dizer nas alturas e compreender nas alturas, perto do céu, como que à altura e velocidade de cruzeiro. Destas FELICITAÇÕES envolve-nos, de facto, a sua cadência encantatória ainda antes dos seus conteúdos. Para entrar no coração destas fragrâncias, é preciso levantar o coração (sursum corda), e ir com os pássaros que Deus alimenta em pleno voo.

5. É por nove vezes que se ouve a palavra FELIZES. Felizes, felizes, felizes, declaração por nove vezes ouvida, aí está a tonalidade encantatória destas felicitações! Sintomático é que estas Felicitações não se destinem aos triunfadores, aos ricos e aos bem-sucedidos, mas aos pobres (1), aos aflitos (2), aos mansos (3), aos que clamam por justiça (4), aos misericordiosos (5), aos puros de coração (6), aos fazedores da paz (7), aos perseguidos (8) e aos amaldiçoados por causa de seguirem Jesus (9). À primeira vista, parece que Jesus está a ler o mundo ao contrário. Mas não. Trata-se de uma Retórica estupenda para nos fazer ver que somos nós que andamos virados do avesso! Nós, quem? Nós, os importantes, os ricos, os senhores do mundo! Sendo nove as Felicitações, reparar-se-á que no centro (n.º 5) está a MISERICÓRDIA. Atente-se ainda na diferente formulação desta felicitação. Salta à vista que todas as outras se abrem a uma recompensa imediata ou futura. A MISERICÓRDIA, porém, roda sobre si mesma, retornando, por obra de Deus (passivo divino ou teológico) sobre os MISERICORDIOSOS: aos misericordiosos (eleêmones), será feita misericórdia (eleêthêsontai) (Mateus 5,7). Entenda-se: aos que fazem misericórdia, será feita misericórdia por Deus! De notar ainda que, na mentalidade e na língua hebraica, «FELIZES» ou «BEM-AVENTURADOS» se diz ’ashrê, termo que qualifica, não os beatos, mas os pioneiros, aqueles que lutam e abrem caminhos novos e bons e belos e de vida nova e boa e bela para o mundo. E é verdade, por paradoxal que pareça. Ao longo da história, foram e continuam a ser os Santos e os Pobres os que verdadeiramente abrem caminhos novos e belos neste mundo enlatado, saciado, enjoado, dormente, anestesiado e medicado, e tantas vezes violento, em que vivemos. Quanto lodo é preciso retirar do coração humano! Ou, dito de outra maneira, quanta pedra é preciso partir, pois são muitos os corações de pedra, para usar a metáfora de Ezequiel 36,26.

6. Os pobres de espírito (ptôchoì tô pneúmati), aqui referidos, não são pobres de Espírito Santo nem de inteligência, mas pessoas humildes, no sentido em que uma pessoa humilde é baixa de rûah (shephal rûah) (Provérbios 16,19; 29,23) ou abatida de rûah (dake?ê-rûah) (Salmo 34,19; Is 57,15), isto é, sem espaço físico, económico, social, cultural ou psicológico. Não precisam de se afirmar. Sentem-se os últimos da sociedade. Todavia, na sua humildade e pobreza, desafiam a sociedade, pois os ptochoí ou tapeinoí são pobres ao lado de gente rica, acomodada, que estendem a mão para nós, apontando o dedo ao nosso egoísmo, afirmação, instalação e comodidade. Situação que, seguramente, não nos deixa de boa consciência, encarregando-se a Constituição Dogmática Lumen Gentium, n.º 9, de nos lembrar que «Aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo». O Povo de Deus, a Igreja de Deus, não são alguns tranquilamente instalados entre paredes douradas, num círculo restrito de amigos, mas somos nós todos unidos e reunidos numa imensa comunhão de irmãos sem paredes nem barreiras de qualquer espécie. Não são os que vivem em paz, mas os que fazem a paz (v. 9). Habitam debaixo do teto da casa de Deus, abertos a Deus, de quem sabem e sentem que recebem tudo. Não sabem o que é a autossuficiência. Só sabem o que é a auto insuficiência.

7. A profecia de Sofonias (2,3; 3,12-13) faz ressonância desta nova e bela maneira de viver, trazendo para primeiro plano aqueles que dão lugar a Deus, que estão abertos à ação de Deus, os pobres e os humildes, que tudo recebem de Deus, e em Deus encontram refúgio, sossego e felicidade, entrando assim na rota de cruzeiro das FELICITAÇÕES!

8. E São Paulo, na lição de hoje da Primeira Carta aos Coríntios (1,26-31), faz-nos voltar completamente para Deus, para sabermos quem somos: «Vede, pois, quem sois, irmãos, vós que fostes chamados por Deus» (1 Coríntios 1,26). Se não ouvirmos Deus a chamar por nós, se não ouvirmos Deus a dizer o nosso nome, isto é, a criar-nos e a cuidar de nós, se não formos irmãos, é certo que não sabemos quem somos, não sabemos qual é a nossa identidade!

9. É assim que o Salmo 146, que é uma espécie de carrilhão musical, nos convida a cantar os «doze belíssimos nomes» de Deus, decalcando aqui a expressão muçulmana que exalta os «99 belíssimos nomes» de Allah. É claro que os doze nomes que passaremos em revista não celebram tanto a essência divina, mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos. É assim que o Salmo evoca o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador (1), o Deus da verdade (?emet) (2), o Deus que faz justiça aos oprimidos, defensor dos últimos (3), que dá pão aos famintos (4), que liberta os prisioneiros (5), que abre os olhos aos cegos (6), que levanta os abatidos (7), que ama os justos (8), que protege os estrangeiros (9), que sustenta o órfão e a viúva (10), que entrava o caminho dos ímpios (11), o Deus que reina eternamente (12). Este maravilhoso Salmo ajuda-nos a saborear musicalmente toda a liturgia de hoje.

 

António Couto



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