Domingo III do Tempo Comum: «Deixar tudo pelo Reino de Deus»

Is 8,23-9,3; Sl 27; 1 Cor 1,10-13.17; Mt 4,12-23

1. Domingo III do Tempo Comum. Cruzamento e entrelaçamento de textos num facho de intensa luz, vinda de fora, como a aurora. É assim que o Evangelho de Mateus 4,15-16 recolhe Isaías 8,23-9,1. O profeta tinha diante dos olhos uma luz grande que havia de brilhar naquela Galileia devastada. Ventos de morte tinham varrido a Galileia nos anos 733-732 a. C., quando o imperador assírio Tiglat-Pilezer III, na sua expansão para ocidente, e no seguimento da guerra siro-efraimita, invadiu e reduziu estes territórios da Galileia a três províncias assírias: Galaad, Meguido e Dor, levando para o exílio muitos dos seus habitantes judeus e transferindo para ali povos pagãos de outros credos, raças e culturas, para impedir que um Israel com identidade própria e religiosidade judaica pudesse ainda vingar e prosperar naquela região. Era assim que a Assíria tratava os seus vassalos rebeldes: matava-lhes o corpo e a alma. Mateus, que bem conhecia a realidade da Galileia, e que também seguiu os caminhos de Jesus, gravou no seu Evangelho que essa luz que Isaías vislumbrou é Jesus que, com a sua presença e pregação, alumia agora a sombria região da Galileia.

2. O Evangelho de hoje (Mateus 4,12-23) refere com precisão que, «quando Jesus soube que João Batista tinha sido preso, retirou-se (anechôrêsen) para a Galileia» (Mateus 4,12), e, «desde então, começou a pregar» (Mateus 4,17a). Uma prolepse e uma surpresa, podemos dizer mesmo um escândalo. A prolepse: ao anotar a prisão de João Batista, o narrador está a registar um facto histórico mas, mais do que isso, está já a desvendar aquilo que um dia acontecerá também a Jesus. E já se começa a notar, pois é dito que Jesus, ao ter conhecimento da prisão de João Batista, se retirou para a Galileia. O uso do verbo grego anachôréô [= retirar-se] indica geralmente em Mateus a fuga de um lugar que se revelava perigoso e hostil para outro mais tranquilo (cf. Mateus 2,12.13.14; 4,12; 12,15; 14,13; 15,21). De resto, em caso de perseguição, Jesus aconselha os seus discípulos a fugirem para outra cidade (Mateus 10,23), ainda que neste texto use um verbo diferente. A surpresa e o escândalo: era do sentir comum que o anúncio messiânico fosse feito no coração do judaísmo, em Jerusalém e na Judeia, e não numa região periférica, desprezada e contaminada pelo paganismo, como era esta «Galileia dos pagãos» (Mateus 4,15). Curiosamente, Jesus tinha vindo de Norte para Sul, da Galileia para a Judeia, ao encontro de João Batista, para ser por ele batizado (Mateus 3,13), e ei-lo que faz agora a viagem ao contrário, de Sul para Norte, da Judeia para a Galileia (Mateus 4,12), e é aí, em Cafarnaum, que começa a pregar o Evangelho (Mateus 4,17). Regresso forçado, como vimos, pelos acontecimentos hostis verificados no Sul, e que levaram à prisão de João Batista. É para justificar e iluminar este estranho e inesperado começo, que Mateus se vê como que obrigado a citar por inteiro a passagem apropriada de Isaías 8,23-9,1, que põe o povo humilhado da tribo de Zabulon, de que fazia parte Nazaré, e da tribo de Neftali, de que fazia parte Cafarnaum, a ser visitado por uma grande Luz, que rasgava a noite e a morte semeadas pela guerra e o desprezo (Mateus 4,13-16).

3. Esta Luz é Jesus. Luz de Jesus que vem iluminar a noite da Galileia. Voz de Jesus a romper aquele espesso manto de silêncio: «Convertei-vos, porque se fez próximo (êggiken) o Reino dos Céus!» (Mateus 4,17b). É assim, com estas palavras, que Jesus começa a pregar na Galileia. É fácil verificar que são exatamente as mesmas palavras com que João Baptista abria a sua pregação no Sul: «Convertei-vos, porque se fez próximo o Reino dos Céus» (3,2). Conversão, isto é, mudança de mentalidade (metanoéô LXX), mas sobretudo de caminho e de direção [voltar-me, não para mim mesmo, mas para o Deus pessoal da aliança] (shûb TM), e responder à sua Palavra sempre primeira. A exigência da conversão é motivada pela proximidade e continuidade do Reino de Deus entre nós. O uso do verbo grego eggízô no perfeito [êggiken = fez-se próximo] ensina-nos que o Reino de Deus não está apenas perto ou próximo de nós ou a caminho, que está para chegar, mas que já veio para ficar sempre próximo de nós, no meio de nós. Não está em vias de acontecer num futuro mais ou menos próximo, mas está agora a acontecer. É agora (cf. Mateus 26,45-46). Esplêndida Luz, esplêndida Voz, esplêndido Amor de Deus, esplêndida surpresa divina! Ainda antes de nos interpelar a que nos interessemos por Deus, a Bíblia mostra que é Deus que se interessa primeiro por nós, tomando a iniciativa de percorrer as nossas estradas poeirentas para nos vir visitar a nossas casas! E não apenas visitar, mas ficar connosco! É esta a maravilha desconcertante do Evangelho! Evangelho no duplo sentido: objetivo e subjetivo. O Evangelho é Jesus, a pessoa de Jesus (sentido objetivo). O Evangelho é a ação de evangelização desencadeada por Jesus (sentido subjetivo). Jesus é o Evangelho e o Evangelizador.

4. É o que constatamos no velho texto de Mateus e nas nossas estradas de hoje. Verificação: Jesus caminha ao longo das praias do Mar da Galileia, e vê dois irmãos, Simão e André, ocupados nos trabalhos da pesca, e diz-lhes: «Vinde atrás de mim (deûte opísô mou)» (Mateus 4,19). Bem vistas as condições de trabalho em que os dois estavam envolvidos, e a importância da pesca no mundo pobre da Galileia, a ordem de Jesus parece completamente disruptiva. Mas a resposta dos dois é excessiva, imediata e radical: «Deixaram logo (euthéôs) as redes, e seguiram-no!» (Mateus 4,20). Note-se, no entanto, que aquele «Vinde atrás de mim» não é um convite; é uma exigência. E não se trata tanto do dizer de um Mestre, mas de um Profeta, ao jeito do chamamento de Elias a Eliseu (cf. 1 Reis 19,19-21). É normal os discípulos seguirem o Mestre, «atrás do Mestre», mas já não é usual ser o Mestre a chamá-los; são os discípulos que devem procurar um Mestre. Por outro lado ainda, a atividade própria do Mestre é ensinar, mas no caso deste chamamento, Jesus parece ter em vista uma estranha atividade de pesca: «farei de vós pescadores de homens». Compreende-se a metáfora da pesca no seguimento da ocupação acabada de descrever daqueles dois chamados, mas fica em aberto a natureza da nova pesca acenada por Jesus: de quê e para quê pescar pessoas? Jeremias 16,16 põe Deus a lar e a dizer: «Enviarei muitos pescadores para a pesca, e pescá-los-ão». É a mesma metáfora da pesca, mas trata-se aqui de reunir os pecadores para o julgamento. É aqui que encaixa a pesca proposta por Jesus face à Vinda do Reino de Deus. Daí também a exigência da conversão ordenada por Jesus. E a força daquele chamamento feito por Jesus àqueles pescadores. Lendo outra vez as palavras de Jesus, percebemos que não se trata de convidar, mas de exigir, método de Profeta, e não de Mestre. E falar de «pescadores para pescar homens» é também linguagem profética e tem em vista o julgamento de Deus. E andando um pouco mais, viu outros dois irmãos, Tiago e João, que, com o pai, Zebedeu, remendavam (katartízontas) as redes na barca. Também os chamou. E também eles deixaram logo (euthéôs) a barca e o pai, e seguiram-no (Mt 4,21-22). Porquê este chamamento disruptivo e a resposta radical destes pescadores? A resposta reside na urgência criada pela proximidade do Reino de Deus, a que nada se deve antepor. Nada é primeiro em relação ao Reino de Deus: nem sepultar o próprio pai ou despedir-se dos familiares (Lucas 9,59-61). «Quem lança as mãos ao arado e olha para trás não está apto para o Reino de Deus» (Lucas 9,62). E o Reino de Deus não tem fronteiras, nem bandeiras, nem moeda própria. Não está aqui ou ali. Não é deste mundo. O Reino de Deus é o próprio Jesus Cristo com o Espírito Santo. Ele é o Reino em pessoa (hê autobasileía), conforme o belo dizer de Orígenes. É, então, face a Ele que nos devemos converter. É a voz dele que temos de ouvir. É o seu caminho que temos de seguir. O Reino de Deus, Jesus, põe-nos em cheque e em causa. Daí a urgência da conversão, daquele chamamento e daquela resposta.

5. É então urgente compreender que Jesus, que é o Reino de Deus em pessoa, desce ao nosso mundo, caminha pelas nossas estradas e vem ter connosco aos nossos lugares de trabalho. E é aí que nos chama e nos põe em estado de urgência e de conversão. Não espera por nós apenas no cenário sagrado das nossas Igrejas! Não nos obriga a fazer uma inscrição, a preencher uma ficha, a aprender uma doutrina, nem sequer nos entrega um projeto de vida, um guião, uma regra, não pede a nossa opinião. Não nos convida a segui-lo, mas exige que o sigamos, não para nos ensinar, mas para nos enviar como pescadores de homens para o julgamento decisivo do Reino de Deus. A sua voz é mais de Profeta do que de Mestre. Tudo o que Jesus diz e faz é exigente, decisivo e urgente. É face a Ele que devemos saber queimar a nossa palha. É a isso que se chama pôr a nossa vida em estado urgente, mas permanente, de conversão. Jesus não nos põe a fazer uma espécie de estágio, para que um dia nos tornemos Mestres. Já sabemos que permaneceremos sempre irmãos, e um só é o nosso Mestre (cf. Mateus 23,8). Não nos coloca num estágio, num estado, num estrado, numa estante, mas num caminho! E um dia mais tarde, ouvi-lo-emos ainda dizer: «Ide!» (Mateus 28,19). É sempre no caminho que nos deixa. Mas sempre atrás d’Ele.

6. A toada do Evangelho de hoje, com Jesus a chamar por nós, pode levar-nos a casa de Carl Gustav Jung (1875-1961), um dos pais da psicanálise. Carl Jung mandou esculpir sobre a porta da sua casa, em Küsnacht, na Suíça, esta frase: «Chamado ou não chamado, Deus estará sempre presente. Nunca se vai embora. Fica sempre por perto, à espera de nos abraçar».

7. Mas voltemos a Isaías 8,23-9,3, hoje, como já vimos, entrançado com o sublime Evangelho de Mateus 4,12-23. Visita de Deus. Luz grande para os abandonados. É a passagem das nossas trevas para a luz refulgente que vem de Deus. É o habitual link editorial dos profetas que sabem sobrepor ou justapor a promessa de redenção com o desastre, mostrando que dentro do desastre já germina a esperança, das entranhas das trevas já começa a despontar a luz, nova criação, milagre sem explicação. Deus em ação. As trevas podem surgir quando falta a luz; mas em caso algum podem produzir luz. Vê-se ainda a vida a borbotar das feridas infligidas pelas espadas. Alegria a desenhar a estação das ceifas. As nossas mãos em concha a recolher os dias dados. Deus primeiro e antes. Deus basta. O dia de Madiã é o dia em que Gedeão enfrenta e desbarata as tropas de Madiã com trezentos homens que sabem que a água é um dom de Deus (cf. Juízes 7). E estiveram lá junto da fonte mais trinta e um mil e setecentos candidatos que apenas exibiam a própria força e que pensavam que estavam ali por mero acaso! Estavam a mais. Foram naturalmente mandados embora. Como já tinham sido outros dez mil antes deles.

8. Continuamos a saborear a Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, servida hoje no extrato entrecortado de 1,10-13.17. Sem cedências de qualquer espécie, Paulo aponta à comunidade cristã de Corinto as divisões e rixas que nela se instalaram, e os grupinhos de pertença em que as pessoas se agrupam e reveem. E Paulo propõe aos Coríntios e a nós que, em vez de nos ocuparmos com divisões ou cismas (schísmata), nos tornemos «remendadores» (katêrtisménoi: part. perf. pass. de katartízô) (1,10), que é sintomaticamente o mesmo verbo em que se ocupavam os discípulos hoje chamados, que estavam a remendar (katartízontas: part. presente de katartízô) as redes (Mateus 4,21). Aí está um novo e belo ministério: «remendadores» da comunidade, isto é, fazedores de pontes, estradas, braços e abraços, para que as pessoas, em vez de se separarem e dividirem, se unam e reúnam. E porque circulava também em Corinto uma certa conceção de batismo que criava especiais laços de pertença do batizando em relação a quem o batiza, Paulo adianta bem que a sua missão não é batizar, mas evangelizar!

9. O Salmo 27 pode deixar-nos nos braços de Deus, cantando e decantando a luz e a confiança que de Deus recebemos. Mas também a suavidade, a bondade e a beleza nos encantam. Corolário normal, ainda que sempre de excecional elevação, para este dia e para esta liturgia, que nos deixa sempre tranquilos a brincar à porta da Casa de Deus, sob o olhar atento e carinhoso de Deus.

10. Este Domingo é também, por vontade do Papa Francisco, o Domingo da Palavra de Deus. Portanto, deixemo-nos invadir performativamente, e não apenas informativamente, pela torrente da Palavra de Deus. E deixemos que rasgue em nós novas avenidas férteis e floridas, onde despontem novos e adequados comportamentos.

 

António Couto



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