Natal do Senhor: Jesus vem nascer em Belém»

Noite: Is 9,1-6; Sl 96; Tt 2,11-14; Lc 2,1-14

Aurora: Is 62,11-12; Sl 97; Tt 3,4-7; Lc 2,15-20

Dia: Is 52,7-10; Sl 98; Hb 1,1-6; Jo 1,1-18

1. «Exultemos de alegria no Senhor, porque nasceu na terra o nosso Salvador», é a Antífona do Cântico de Entrada da Missa da Noite, que dá o devido tom de exultação a esta Solenidade, magnífico pórtico para este intenso feixe de Luz, Mistério de Jesus, fazendo logo ver o Natal à Luz da Páscoa, «a Páscoa do Natal», assim o diz significativamente a liturgia oriental. A Antífona da Missa da Aurora prossegue a mesma sintonia, conjugando Isaías 9,1 e Lucas 2,11, e soa assim: «Hoje sobre nós resplandece uma Luz: nasceu o Senhor». A Antífona da Missa do Dia continua a indicar o «para nós» deste Filho e do seu Mistério, trazendo ao de cima outra vez a pauta luminosa de Isaías: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado» (Isaías 9,6).

2. A linha dos Evangelhos deste Dia é de excecional riqueza, e desenvolve-se em quatro andamentos: o acontecimento, o anúncio, o acolhimento e a revelação do Verbo feito carne. Começa com Lucas 2,1-14 (Noite), e continua com Lucas 2,15-20 (Aurora), que nos trazem o quadro histórico-geográfico do nascimento de Jesus (Lucas 2,1-7), o seu anúncio (Lucas 2,8-14) e acolhimento (Lucas 2,15-20), e culmina com o prólogo de João 1,1-18 (Dia), que nos mostra a Luz fulgurante do Verbo de Deus feito carne, o Único que nos pode dizer Deus. O nascimento de Jesus, na sua nudez, aparece narrado três vezes, nos três andamentos do texto lucano (Lucas 2,7.12.16). Ele é claramente o centro. Aparece logo situado no decurso do recenseamento do mundo romano ordenado por César Augusto, sendo Quirino prefeito romano da Síria (Lucas 2,1-2). O reinado de Augusto estende-se por muitos anos (27 a.C.-14 d.C.), mas Pôncio Sulpício Quirino foi prefeito da Síria apenas no ano 6 d.C., sendo então que liquida os bens de Arquelau, filho de Herodes o Grande, e anexa definitivamente a Judeia ao Império Romano. O leitor menos prevenido dirá logo que há aqui uma imprecisão histórica. Acrescento então que este recenseamento foi iniciado em 7-6 a.C. por Sêncio Saturnino, prefeito da Síria durante os anos 9-6 a.C. É sabido, de resto, que a era cristã atualmente em vigor foi fixada no século VI pelo monge xiita, de origem egípcia, Dionísio o Pequeno, com um pequeno erro de cálculo que resultou no atraso de 6 ou 7 anos em relação ao nascimento de Jesus. Portanto, Jesus terá nascido 6 ou 7 anos antes do início da era cristã fixada pelo monge Dionísio. E aí está então tudo em dia: Jesus nasce quando Sêncio Saturnino dá início ao recenseamento. Dirá outra vez o leitor incauto: se assim foi, por que é que Lucas fala de Quirino, e não de Saturnino? Se repararmos bem, Lucas faz exatamente como nós fazemos hoje. Nas placas que colocamos nos edifícios públicos que inauguramos constam os nomes das autoridades que os terminam e inauguram, e não daqueles que os iniciam. O mesmo se diga da promulgação de leis e tratados.

3. É ainda no quadro deste recenseamento que José, acompanhado por Maria, sua esposa, sobe a Belém para se recensear. O texto explica bem que esta deslocação se fica a dever ao facto de José ser da descendência de David (Lucas 2,3-4). O próximo passo refere que, quando chegaram (José e Maria), não havia lugar para eles na sala (Lucas 2,7). Note-se que o texto refere, de forma clara, sala, grego katályma, e não hospedaria, como se lê em muitas e preconceituosas traduções. Na verdade, Lucas sabe bem dizer hospedaria, como faz na passagem do bom samaritano (Lucas 10,34), em que usa o termo grego pandocheîonKatályma não significa hospedaria. Significa sala. Pode ser a sala do andar superior (Lucas 22,11), que ficou conhecida como Cenáculo, onde Jesus comerá a Ceia da Páscoa com os seus discípulos. No episódio de Belém, que estamos a ler, pode tratar-se de uma sala destinada a hóspedes que a arqueologia pôs a descoberto no rés-do-chão de muitas das casas da Judeia do tempo de Jesus. Esta sala apresenta forma quadrangular ou retangular, com um banco rochoso ao longo das paredes, destinado ao descanso das pessoas. A sala tinha uma única porta de entrada, por onde entravam as pessoas com os seus animais de transporte. Ao fundo da sala localizava-se outra porta, que dava para um estábulo, para onde as pessoas conduziam naturalmente os animais. É neste estábulo anexo à sala destinada aos hóspedes que vai nascer Jesus, e é também aqui que se compreende perfeitamente a presença da manjedoura (Lucas 2,7 e 12).

4. Vem depois a cena maravilhosa da manifestação desta Notícia aos pastores dos campos de Belém. Os pastores são os últimos da sociedade, e não entram nas contas de ninguém, tal como o pequeno pastor de Belém, David, não entra nas contas já encerradas de seu pai (1 Samuel 16,10-11), mas entra nas contas de Deus (1 Samuel 16,11-12). O mesmo acontece com os pastores de Belém, a quem o mensageiro celeste anuncia a Alegria do nascimento de um Salvador para todo o povo, Hoje nascido em Belém (Lucas 2,8-11). E, deste acontecimento, o mensageiro celeste dá um sinal (sêmeîon) aos pastores e a nós: «encontrareis um recém-nascido envolto em faixas e deposto numa manjedoura» (Lucas 2,12). E, depois daquele celestial e humano Gloria in excelsis Deo e Paz na terra aos homens que Ele ama (Lucas 2,14), aí vão eles, os pastores, aqueles com quem ninguém conta e que não entram em nenhuma lista de pessoas dignas de consideração, aí vão eles apressadamente (Lucas 2,16), como Maria (Lucas 1,39), verificar (ideîn) os acontecimentos a eles dados a conhecer por Deus (Lucas 2,15), e que, como verdadeiros anunciadores, não podem calar, e devem dar também a conhecer a todos (Lucas 2,17). Note-se o aroma desta Paz diferente, que não é obra das armas, como no mundo romano, nem de acordos entre as partes, como no judaísmo palestinense, mas dom de Deus!

5. Cena sublime e suprema ironia. Os senhores do mundo (César Augusto e Quirino) são mencionados, mas saem logo de cena, para dar lugar aos pastores, que assumem o papel de verdadeiros protagonistas. Os senhores do mundo ocupam um único versículo cada um (Lucas 2,1 e 2). Os pastores enchem treze versículos (Lucas 2,8-20). Também lá estão Maria, José e o Menino, mas não dizem uma única palavra. A palavra é toda dos Anjos e dos pastores. Mas Maria é estupendamente retratada a «guardar todas aquelas palavras, compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,19). Note-se ainda o sinal dado aos pastores e a nós, leitores: um recém-nascido envolto em faixas, deposto numa manjedoura. É preciso também começar a ver já aqui a Luz da Páscoa, a «Páscoa do Natal», com o corpo de Jesus a ser envolto num lençol e deposto num sepulcro (Lucas 23,53). Mas também a sala (katályma) onde não havia lugar para eles (Lucas 2,7) reclama já a sala (katályma) para comer a Páscoa (Lucas 22,11), onde haverá lugar para Jesus e para nós! O Evangelho do Dia, o prólogo do Evangelho de João 1,1-18, deixa-nos de joelhos em contemplação: «E o Verbo se fez carne e pôs a sua tenda (eskênôsen) entre nós, e nós contemplámos (theáomai) a sua glória» (João 1,14). Mas também: «Veio para o que era seu, e os seus não o receberam» (João 1,11). Leitura sublime do presépio, da falta de lugar para Jesus, e a sua rejeição já desde então encenada e em prolepse acenada.

6. Mas é imperioso ler este extraordinário texto até ao fim. E, no final, no v. 18, lemos: «Deus (theón), ninguém (oudeís) viu (heôraken: perf. de horáô) nunca (pôpote); o Monogénito Deus (monogenês theós), Aquele-que-é (ho ôn) para o seio do Pai (heis tòn kólpon toû patrós), Ele (ekeînos) fez exegese (exêgêsato)» (Jo 1,18). Este texto imenso introduz a afirmação da revelação pelo Filho Monogénito e marca bem a invisibilidade de Deus por nós, que exclui toda a espécie de “visão” humana, quer física quer intelectual. Revelação exclusiva: nenhum ser humano atinge diretamente Deus. E gratuita: note-se a mudança de sujeito: não nós, mas o Filho Monogénito trouxe a revelação. É sobre esta nova dimensão da revelação de Deus a cargo do Verbo, na parte final do v. 18, que recai o acento do inteiro versículo. Este texto traz, portanto, um dado novo: a exclusividade do agente da revelação. Só o Filho Único de Deus (monogenês designa o Filho e exprime a sua relação única, que não se pode comparar a nenhuma outra, com Deus), voltado para o seio do Pai, para a sua Origem, para o seio em que é eternamente gerado, verdadeira «cátedra» divina, pode explicar-nos o Deus que nunca ninguém viu (heôraken). Não é que a tese seja a invisibilidade de Deus. O texto, imenso, não tem vocação metafísica. Com o recurso ao verbo no tempo perfeito (heôraken), que cobre o passado e o presente, e ao advérbio temporal pôpote [= nunca], que exclui a história humana, o texto pretende colocar-nos perante o momento decisivo da história entre Deus e a humanidade. E é Jesus o centro dessa história.

7. Este Filho em Belém e na Cruz nascido, totalmente voltado para o seio do Pai, e que é eternamente consciente de receber do Pai todo o seu ser filial, é o único capaz de nos trazer a revelação. Sendo o revelador definido pela sua relação filial e intradivina, podemos então esperar que o ato de revelação e o seu conteúdo sejam constituídos por esta relação filial. Neste sentido, podemos agora notar com atenção meticulosa como o termo theós [= Deus], que abre o v. 18, vem a ser intencionalmente substituído no fecho, em 18b, pelo termo patrós [= Pai]. Na verdade, esta relação divina, inefável oceano da Divindade Única, é, sem mediação temporal, coextensivamente e coeternamente, in eterno, o Gerar paterno e o Ser-gerado filial: um único Gerar, um único Ser-gerado. Seguindo a preciosa formulação de S. Gregório de Nazianzo (329-389), que mereceu o título de «O teólogo» (ho theólohos), desta relação intradivina única entre o Pai e o Filho, o Pai, Arquétipo divino paterno, que é eternamente, «Aquele que é sem princípio» (ánarchos), e o Filho Monogénito, que é eternamente gerado, «Aquele que é gerado sem princípio» (ánarchôs gennêthéntes), Imagem divina filial, nada saberíamos, se o Verbo Único do Pai, Imagem eterna do Pai, e em si mesmo, como Deus, invisível por definição, não se tivesse feito, filialmente, também Imagem espacial e temporal do Pai, através da Incarnação, também esplendidamente afirmada e formulada no prólogo joanino (v. 14), que aqui inserimos novamente: «E o Verbo fez-se (egéneto) carne e pôs a sua tenda (eskênôsen) no meio de nós, e nós contemplámos (etheasámmetha) a sua Glória (dóxa), Glória de Monogénito do Pai, Cheio de graça e de verdade» (João 1,14). 

8. Fica assim a claro a vinculação e unidade entre os v. 14 e 18, entre a invisibilidade de Deus (v. 18) e a visibilidade da Glória do Verbo Incarnado (v. 14), que podemos demorada e intensamente contemplar, como sugere o uso do verbo theáomai, um olhar prolongado que se abre à contemplação e interioridade. O Verbo Único de Deus, Deus Ele mesmo, sem deixar de ser o que eternamente é junto do Pai, com o Espírito Santo, fez-se também a nossa carne humana, e cumpriu o Êxodo histórico juntamente connosco ao pôr a sua tenda no deserto da vida humana, «entre nós, em nós», connosco. Há que acentuar aquele «fez-se» (egéneto), que põe em relação a divindade com a carne, associação que é absolutamente estranha e incompreensível para a mentalidade grega, segundo a qual a essência divina é por definição imutável e impassível, excluindo a ousía divina qualquer alteração, que seria “geração e corrução”. Outra vez a feliz formulação de S. Gregório de Nazianzo: «O que era, manteve; e o que não era, assumiu. Antes, era sem causa (anaitíôs), pois a causa (aitía) de Deus, qual é? Mais tarde, nasceu devido a uma causa (di’ aitían), para que tu fosses salvo, tu, que o insultaste; tu, que desprezaste a divindade, por ela ter acolhido a tua baixeza». Oh insondável mistério do amor de Deus!

9. Os passos dos peregrinos e os nossos convergem Hoje para a Basílica da Natividade em Belém. Não obstante os múltiplos trabalhos de reconstrução e conservação ao longo dos séculos, a Basílica que hoje se depara ao peregrino é, nas suas linhas gerais, obra do imperador Justiniano, edificada entre 531 e 565, e é mesmo o único templo, provindo de Justiniano, que resta na Palestina. Escapou à razia dos Persas de Cosroé II, em 614, contra os templos cristãos, devido ao facto de os frescos que adornam a Basílica conterem representações dos Magos, o que muito terá sensibilizado os Persas. Esta não é, porém, a Basílica primitiva. Os trabalhos arqueológicos efetuados pelo P. Bagatti em 1949-1950 mostraram, por debaixo do pavimento da atual Basílica, os traços arquitetónicos de outra grandiosa Basílica, levantada entre 326 e 333, por Santa Helena, mãe do imperador Constantino. Esta primitiva Basílica foi assolada por diversos incêndios e depois grandemente devastada pela revolta dos Samaritanos de Nablus em 529 contra o governo bizantino. Foi sobre as ruínas desta Basílica Constantiniana que o imperador Justiniano fez construir, com traços arquitetónicos diferentes, a Basílica atual.

10. Mas a Basílica Constantiniana também não representa o estádio primitivo do culto cristão em Belém. Este encontra-se certamente na cripta da Basílica atual, guardado num espaço retangular de 12,30 metros de comprimento por 3,50 metros de largura, para onde convergem os passos dos peregrinos. Este espaço corresponde ao estábulo anexo à já mencionada sala de hóspedes. Aí se encontra o Altar da Natividade, debaixo do qual se pode ver uma estrela de prata com a inscrição: Hic de Virgine Mariae Jesus Christus natus est [= «Aqui da Virgem Maria nasceu Jesus Cristo»]. A Basílica da Natividade guarda na sua cripta o mistério do nascimento de Jesus, da pobreza, da humildade, do amor, da paz. Daquele e daquilo que não tem lugar na sala do nosso bem-estar, poder, ódio, ostentação, tirania. Na tua casa e na tua sala há lugar para quem e para quê, meu irmão deste Dia de Natal?

 

António Couto



Newsletter Educris

Receba as nossas novidades