Solenidade: Nascimento de São João Batista

1. Com exceção (honrosa) da língua portuguesa, os nomes dos dias da semana das principais línguas vivas europeias estão marcados pelos astros: sol, lua, marte, mercúrio, Júpiter, vénus, saturno. Esta maneira de dizer salienta a nossa dependência dos astros, que o mesmo é dizer, das forças da natureza que os astros representam. Excetuam-se, nalguns casos, o sábado e o domingo, que trazem a marca das tradições hebraica e cristã.

2. Mas, mesmo no caso português, é fácil verificar como o nosso paganismo convive amenamente com o nosso cristianismo. Basta um olhar atento a esta época do ano (solstício de verão), e às celebrações que fazemos à volta dos santos populares: Santo António, São João e São Pedro.

3. Embora o fenómeno seja o mesmo, detenho-me particularmente na festa de S. João, por ser a mais afeta a esta zona norte do país. A tradição bíblica põe João Batista na linha da Graça [o nome João, hebraico Yôhanan, nome pleno, teofórico, significa «YHWH faz Graça»] e não da natureza, e faz dele um homem austero, que não beberá vinho nem bebida alcoólica (Lucas 1,15), que anda pelo silêncio do deserto para melhor escutar e escrutar a Palavra de Deus, e que, a quantos o procuram, prega penitência e conversão. Mas nós festejamo-lo com esfuziante folia, no meio de barulho e muita música, abundância de vinho e danças…

4. Na segunda metade do primeiro século e inícios do segundo da nossa era, o cristianismo e o primitivo culto cristão floresciam na Palestina, sobretudo ligados a lugares que carregavam as principais memórias cristãs, como Belém, Jerusalém, Nazaré, Ain Karem, e outros. Todavia, entre os anos 117 e 135, o imperador romano Adriano, com o intuito de paganizar a Palestina, deitou por terra todos os lugares de culto cristão que lá havia, entre os quais se contava a «casa-igreja» de Ain Karem [= nascente do jardim], lugar do nascimento de João Batista, a uns 8 Km a SO de Jerusalém, extinguindo assim o nascente culto cristão a João Batista, e implantando no seu lugar o culto pagão de Adónis. O culto de Adónis é o culto da natureza. Filho do incesto de Ciniras com Esmirna ou Mirra, a beleza de Adónis seduziu a deusa Afrodite ou Vénus, deusa do amor, da beleza, da vegetação e da fertilidade. Ciúmes de outras deusas, entre as quais Perséfone ou Proserpina, deusa da morte, fizeram que Adónis fosse morto por um javali, indo assim parar aos braços de Perséfone. O facto deu origem a intrigas entre as duas deusas (Afrodite e Perséfone), só sanadas pelo decreto de Júpiter, que decidiu que Adónis ficasse com Perséfone um terço do ano, com Afrodite outro terço, e que ficasse livre no último terço do ano. Mas Adónis ofereceu este último terço também a Afrodite. O tempo que passa com Perséfone é o inverno, o tempo triste em que a natureza definha e parece que morre. O tempo que passa com Afrodite é o tempo da primavera e do verão, o tempo da explosão da vida e da alegria. Perséfone e Afrodite são natureza, e não são mais do que natureza. As festas em honra de Adónis têm assim um tempo de choro e de lágrimas, que equivale à morte de Adónis e ao tempo invernal que passa com Perséfone, e um tempo mais intenso de folia, que equivale como que à «ressuscitação» de Adónis e ao tempo da primavera [= primeiro verão] e verão que passa com Afrodite. Como se vê, Adónis também é natureza, e não é mais do que natureza, e aquilo que se festeja nas festas populares no solstício de verão não é mais do que a exuberância da natureza.

5. É esta paganização de João Batista por Adónis que permanece ainda hoje nas nossas festas populares do solstício de verão. As festas populares desta época solsticial celebram, portanto, a explosão da natureza.

6. Voltemos aos astros. A língua latina fornece-nos duas palavras para dizer «astro»: aster, plural astra, e sidus, plural sidera. Na sua brilhante L’Écriture du désastre (Gallimard, 1980), Maurice Blanchot (1907-2003) mostrou magistralmente que se as pessoas vivem ligadas aos astros e se o seu comportamento depende deles sem qualquer possibilidade de liberdade, então a vida é com certeza um «des-astre»! E é esta a compreensão que expressamos do «desastre», quando lemos num acontecimento dramático da nossa vida ou da vida dos outros, não o resultado da nossa vontade, mas a influência perniciosa de qualquer astro, o velho destino. Do mesmo modo, dizemos hoje vulgarmente que alguém está siderado, quando está de tal modo fascinado por um objeto, por um acontecimento, por uma pessoa ou por uma ideia, que já não consegue dar um passo por conta própria.

7. Viver ligado aos astros e ao que eles dizem pode ser, portanto, um desastre: se não nos conseguimos libertar deles, ficamos como que siderados, prisioneiros nas mãos de um destino qualquer. Mas se nos separarmos deles, então ficamos de-siderados, do latim desiderare, que deu o nosso desejar. Ao sabor do nosso desejo. É, portanto, a libertação dos astros, a saída da sideração, que dá acesso ao desejo, que nasce da separação do astral e do regresso à vida e ao movimento, à liberdade e à história, a um tempo que seja nosso.

8. Mas será ainda necessário quebrar este arco desiderativo a que andamos presos e que apenas molda em nós um «eu» identitário e patronal sempre em expansão, à procura daquilo que pode satisfazer o nosso desejo, e que, o mais das vezes, resulta em rejeitar ou absorver o outro, num processo cego de autorrealização ou autossatisfação. É necessário abrir-se ao extra, ao sentido objetivo, ao éschaton, ao dom que vem de fora, e que ninguém pode produzir por si mesmo. Temos todos de aprender a recebê-lo, abrindo as mãos e o coração.

9. Mas esta tonalidade já nos faz sair do âmbito da natureza e entrar no âmbito da Graça, sair da esfera de Adónis e entrar na esfera de João Batista. Na verdade, o nome João dado ao filho de Isabel e Zacarias, significa «YHWH faz Graça». E porque João Batista está no limiar dos dois Testamentos, o seu nome, vindo de Deus e não da sua família de sangue, resume todo o Antigo Testamento, e serve de sumário a todo o Novo Testamento. O nome João exprime então o conteúdo da inteira Escritura dos dois Testamentos, que é «Deus faz Graça». João é Graça. Não é natureza.

António Couto



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