Opinião: «O sinal que Leão nos dá», por Luís Silva
‘Habemus Papam’. A boa notícia ecoa como sinal do fim de uma provisória orfandade a que se sucede um jorrar de renovada esperança
Ao anúncio da escolha concretizada, sucede o anúncio do nome escolhido e, com ele, como que um ‘programa’.
O inusitado nome de ‘Francisco’ deixara vislumbrar a ousadia e radical pobreza do ‘poverello’.
‘Leão’ traz um outro sinal.
E é esse que me proponho interpretar, sem a veleidade de pretender esgotar a sua significação e, muito menos, enclausurar nos estafados chavões de progresso ou tradição.
A Igreja será, sempre, lugar e comunidade em que confluem a memória do percorrido e a proléptica saudade do futuro. Por isso, querer encaixar um Papa no preconceito de ser ‘tradicionalista’ ou ‘progressista’ é tentação a que não cederei.
Antes, lanço-me ao caminho, sem medos nem receios: livre! Com a liberdade que nos vem do Mestre que, diversíssimas vezes, nos lembrou, principalmente após a sua ressurreição, o seu ‘não temais’. Porque, como tantas vezes recordava um dos bispos de Aveiro, ‘não morreremos nem que nos matem’ (D. António Baltasar Marcelino).
Superados medos e preconceitos, olhemos para o que nos diz Leão XIV ao apresentar-se com este nome.
Regressemos, pela mão de Leão, ao seu homónimo antecessor, Leão XIII. Teve um dos mais longos pontificados (o quarto mais longo, após o do próprio S. Pedro, o de Pio IX e João Paulo II). Ultrapassou os 25 anos de missão pontifícia.
Mas a sua marca fundamental não advém da sua longevidade, antes de duas marcas que gostaria de destacar, neste contexto: o seu olhar à causa operária e a sua atenção às soluções que para ela eram apontadas.
Não pode olhar-se para Leão XIII apenas porque trouxe a causa social para o interior da reflexão cristã. Isso já não seria pouco, ainda que ela nunca tivesse estado ausente, faltando-lhe, porém, a sistematização que a Rerum Novarum (15 de maio de 1891) permitiu. Estar atento às ‘coisas novas’ era importante…
Mas não apenas…
Isso faria da Doutrina Social da Igreja um mero laboratório de diagnósticos.
Leão XIII diagnosticou com olhar fino, viu a dor dos operários, acorreu à sua inquietação, mas ousou interrogar as soluções que, então, eram apresentadas, com um equilíbrio que matizou, definitivamente, a doutrina social da Igreja.
Lembremos que o século XIX fervilhava…
Ao mesmo tempo que se sentia a efervescência resultante das oportunidades abertas pela revolução industrial, que parecia colocar a ciência ao serviço da eficiência produtiva, as respostas aos problemas que tal realidade fazia emergia pareciam um ‘combate de boxe’ sem conciliação possível senão pelo ‘knock out’ de uma das partes.
Entre a visão liberal, em que assentava uma abordagem ‘selvagem’ (termo utilizado duas vezes na encíclica), e a via socialista parecia ser impossível qualquer conciliação.
Leão XIII vislumbra uma via ética, moral, de fortes implicações práticas, em que a legitimidade e importância da posse de propriedade privada (como condição de liberdade) não pode concretizar-se sem o respeito pelo princípio que virá a designar-se como o do ‘destino universal dos bens’. O que nos pertence deve ser possuído com um sentido comum e com forte sentido de justiça. Somos administradores de bens de que não somos os donos absolutos, mas recetores de dons concedidos.
Com efeito, o século XIX vira emergirem os movimentos influenciados pelo socialismo utópico, pelos movimentos anárquicos e pelas correntes de influência marxista e engeliana. E percebera a tentação da abordagem liberal.
Perante estas duas linhas, a Igreja, pela palavra e pena de Leão XIII, reconhecia e assumia a importância da atenção que lhe deram esses movimentos (como podiam ficar sem resposta cristã os esmagados operários?), mas divergia das soluções que, entretanto, tinham emergido, por recusarem, uns, o direito à propriedade privada ou assentarem numa visão conflitual das relações (a tentação da visão da relações de sociedade como assentes numa permanente luta de classes continua, hoje, disseminada por todos os âmbitos da realidade social, carecendo de nova leitura e novas propostas…) e, outros, uma adequada compreensão da liberdade como condição que deve encaminhar-se para a busca da verdade…
Leão XIII afirmava-se, assim, como um fino analista da sociedade e das suas mais candentes dificuldades (colocando-se do lado dos mais frágeis e ‘impoderosos’), mas recusava que a solução passasse pelas vias que os movimentos emergentes propunham.
Sendo que havia, ainda, que ter em conta que, sob as soluções de pendor socialista (assim eram designadas sem as distinções que posteriormente, vieram a fazer-se entre a linha mais moderada e a de teor marxista), deslizava um lençol freático de ateísmo que imanentizava o ser humano, reduzindo-o à dialética histórica. Leão XIII percebia que as soluções humanas sem o horizonte divino tendiam a diluir a humanidade numa vertigem sem rumo, potenciando a sua anulação em nome do coletivo anónimo e despersonalizante que mata a esperança. A história veio a dar-lhe razão.
Retemos, por isso, de Leão XIII, a preocupação com a causa dos mais frágeis da sociedade, a atenção fina às soluções que, seja pela hiperbolização da liberdade, seja pela fusão do indivíduo no coletivo, esquecem o ser humano integralmente considerado, se têm revelado insuficientes e incapazes e, por fim, a afirmação de que a humanidade não nasce de si, mas encaminha-se para a eternidade, horizonte sem o qual se aniquila em lutas fratricidas…
Ontem, como hoje, de Leão (de XIII a XIV) espera-se um alargado abraço aos que a sociedade esquece, não se satisfazendo com as vozes que, em nome de sedutoras ‘melodias’ que inebriam, apontam soluções provisórias como se pudessem ser definitivas, mas apontando rumos que se hão de configurar como respostas sempre capazes de acolher o todo e não se ficando pela parte. Porque é isso ser católico: não se ficar pela parte, mas ter uma visão que olha o todo, o universal, o integral… O Homem todo… Os Homens todos… A realidade toda! O horizonte todo!
Imagem: Vatican Media
Luís Silva é professor de Educação Moral e Religiosa Católica e presidente da Comissão Diocesana da Cultura