III Domingo do Advento: «E nós que devemos fazer?»

Sf 3,14-18; Is 12,2-6 (Salmo); Fl 4,4-7; Lc 3,10-18

1. Como tivemos oportunidade de ver e de sentir, o Evangelho do Domingo II do Advento (Lucas 3,1-6) rasga este mundo ao meio de forma clara e impiedosa. Diz o narrador, com a precisão do bisturi, que a Palavra de Deus passa ao lado dos senhores deste mundo, e cita Tibério César, Pilatos, Herodes Antipas, Filipe, Lisânias, Anás e Caifás, e nós podemos sempre atualizar esta lista, incluindo nela outros nomes e o nosso também. Aí está o golpe a sangrar do bisturi de dois gumes que é a Palavra de Deus (Salmo 149,6; Juízes 3,16-22; Hebreus 4,12). Então, a Palavra de Deus passa ao lado deste mundo rico e poderoso, autorreferencial, impiedoso, insensível, indiferente e violento, e, para espanto nosso, vai cair sobre um pobre, João Batista, que não habita em palácios, mas no deserto! Com esse bisturi da Palavra, João Batista pode sempre limpar (João 15,3) o silvado que nos enche os ouvidos, lavar as gorduras que embotam o nosso humano coração e desfazer, com o martelo pneumático, o pedregulho que petrifica o nosso quotidiano.

2. Aí está, então, no Evangelho deste Domingo III do Advento (Lucas 3,10-18), outra vez João Batista em cena, irrompendo agora com o bisturi da Palavra direto aos ouvidos dos homens deste tempo, ouvidos obstruídos por mato e por silvas, anunciando que o tempo está maduro para limpar a eira e recolher o trigo, que a hora é de frutos novos!

3. «E nós que devemos fazer?», perguntam as multidões (óchloi) (Lucas 3,10), os coletores de impostos (telônai) (Lucas 3,12) e os soldados (strateuómenoi) (Lucas 3,14). Às multidões indeterminadas, João Batista responde: «Quem tem duas túnicas (chitônes), reparta (metadótô: imperativo de metadídômi) com quem não tem nenhuma, e quem tem alimentos, faça da mesma maneira» (Lucas 3,11). Para compreender a resposta de João Batista, convém saber que a túnica era a peça do vestuário usada diretamente em contacto com a pele; usava-se debaixo do manto (himátion), e as pessoas de elevada condição costumavam usar duas túnicas. Os «coletores de impostos» aparecem habitualmente nas traduções como «publicanos». Mas não é o caso. Os publicanos eram os grandes funcionários do fisco romano; os coletores são pequenos agentes ao serviço dos publicanos. É-lhes recomendado por João Batista que não cobrem senão o que está fixado (Lucas 3,13). Aos soldados, João Batista recomenda que não roubem nada a ninguém, e que se contentem com o seu soldo (Lucas 3,14). Neste ponto do diálogo, perguntemos nós também o que devemos fazer. E João Batista, que já, entretanto, abriu passagem por entre o mato e as silvas que obstruem o caminho que vai dos nossos ouvidos até ao nosso coração empedernido, responderá mais ou menos assim: vós não vos canseis de dar, de repartir, de partilhar! E não roubeis, não pratiqueis a injustiça, não façais violência! Amai! Reparemos que todos os frutos de conversão que João Batista menciona e reclama se referem sempre ao nosso comportamento para com o próximo. Fica claro que a conversão, isto é, o nosso voltar-se para Deus, passa sempre pelos nossos gestos para com o próximo, nomeadamente pela partilha para além do impensável. Se eu tenho duas túnicas, e o meu próximo nenhuma, devo dar-lhe uma. Fica então claro que, nesta nossa sociedade, em que poucos têm muito, muitíssimo, quase tudo, e os outros nada ou quase nada, andamos a brincar com o Evangelho!

4. Mas este verbo «repartir» ou «partilhar», para a nossa mentalidade comodista e egoísta, parece-nos terrível. Sem darmos por isso, é muitas vezes a última palavra que queremos ouvir. Na verdade, «partilhar» desvenda-nos e despoja-nos da nossa falsa boa vontade, da nossa generosidade virtual, do nosso vão sentimentalismo religioso, enfim, da nossa hipocrisia. Partilhar não é «depositar» nos outros apenas o supérfluo, as sobras. Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Efésios 5,2), por mim (Gálatas 2,20). O supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo transforma a vida para sempre. Mas João Batista, verdadeiro guardião da fronteira entre este mundo velho que passa e o mundo novo que vem, anuncia também uma Presença nova, a d’Aquele-Que-Vem com o Espírito, que dá a vida verdadeira: ei-lo que vem, o noivo, o esposo, aquele de quem eu, diz João Batista, não tenho o direito nem o poder de desatar a correia da sandália!

5. E que significado atribuir à anotação da incompetência (ikanós) de João para «retirar» ou descalçar as sandálias d’Aquele-que-Vem (Lucas 3,16)? Será simplesmente uma confissão de humildade por parte de João face a Alguém que lhe é incomparavelmente superior? Esta tonalidade está certamente presente, mas não esgota a metáfora das sandálias. Trata-se, desde logo, de um dizer importante, pois encontramo-lo por cinco vezes no Novo Testamento: Mateus 3,11; Marcos 1,7; Lucas 3,16; João 1,27; Atos dos Apóstolos 13,25. Num célebre artigo, intitulado «As sandálias do Messias Noivo», Luís Alonso-Schökel levou este dizer e esta metáfora para o domínio da esponsalidade do Messias. De acordo com o referido nos Salmos 60,10 e 108,9, «pôr a sandália sobre» significa «tomar posse»; é, portanto, linguagem jurídica de posse. No Livro do Deuteronómio 25,5-9, o não-cumprimento da lei do levirato implica que seja «retirada» a sandália ao cunhado não cumpridor da lei, gesto que garante a sua perda de posse no domínio matrimonial. Aqui já se trata de direito matrimonial. Em Rute 4,7-10, temos um caso jurídico concreto em que o que tem o direito de resgatar o património e de desposar Rute prescinde desse direito. Para o dizer juridicamente, em reunião pública realizada à porta da cidade (Rute 4,1), o homem em causa «retira» a sandália e entrega-a a Booz, que fica assim com o direito de resgatar o património e de desposar Rute. A metáfora da sandália em Lucas 3,16 e nos demais dizeres do Novo Testamento que anotámos significa que é Jesus o noivo, a quem assiste o direito de desposar Israel, e que a João não assiste esse direito ou competência. Portanto, João Batista não pode desatar a sandália daquele que tem o direito à noiva. Só este é que é o noivo, o esposo. João Batista não é o noivo, mas indica-o. Ei-lo que está a chegar! O esposo é Cristo. E a esposa é do esposo. A hora é, portanto, de alegria, de amor, é de frutos de alegria e de amor!

6. Portanto, grita Paulo na lição de hoje da Carta aos Filipenses (4,4-7), «Alegrai-vos sempre no Senhor, repito: alegrai-vos!» (Filipenses 4,4). E a razão é porque «o Senhor está próximo!» (Filipenses 4,5). E continua: «Não vos inquieteis com nada, mas fazei chegar a Deus os vossos pedidos com orações, súplicas e ações de graças, e a paz de Deus guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus» (Filipenses 4,6-7). Sempre em ação de oração. Isaías poderia resumir assim esta atitude belíssima: «Vós, que sois os secretários (mazkirîm) de Deus, não vos deis descanso, nem deis descanso a Deus» (Isaías 62,6-7).

7. E o Profeta Sofonias (3,14-18) mantém alta a tonalidade festiva: «Rejubila, filha de Sião!,/ Solta gritos de alegria, Israel!,/ porque o Senhor está no meio de Ti!». Também este intenso grito de alegria é dirigido a nós, hoje, e deve ser vivido por nós, hoje e aqui, reunidos em assembleia litúrgica festiva, que confessamos uma e outra vez: «Ele está no meio de nós!».

8. Sempre em tom de festa e de alegria, o Salmo Responsorial, hoje um hino de louvor retirado de Isaías 12,3-6, deixa a nossa alma cheia de canções, fazendo-nos repetir (e nós repetimos o que amamos): «Povo do Senhor, exulta e canta de alegria!», ou «Exultai de alegria, porque está no meio de vós o Santo de Israel!». Sim, o povo de Deus, a sua Igreja Una e Santa, vive da música de Deus, cantando com um dos mais belos versos da inteira Escritura: «Minha força e meu canto Yah!» (Sl 118,14; Is 12,2; cf. Ex 15,2). Yah de YHWH, como quando cantamos «Hallelû-yah!» [= Louvai Yah], louvai Deus, o nosso Deus, Aquele que está no meio de nós, hoje e sempre, operando maravilhas.

9. Por tudo isto, e não é pouco, este Domingo III do Advento é chamado «Domingo gaudete», «Domingo da alegria». Que o seja de verdade nos nossos corações. Deixemo-nos, então, atravessar pela Alegria que vem de Deus, e sintamos bem fundo, para além da capa do nosso sentimentalismo religioso, o bisturi da Palavra de Deus e o martelo pneumático do Espírito. Sim, neste belo Domingo gaudete, em que nos invade este imenso convite à alegria, compreendamos bem que a verdadeira alegria vem de Deus, e deixemos ressoar em nós as belas palavras de Neemias, de Esdras e dos Levitas: «Não vos aflijais: a alegria do Senhor é a vossa fortaleza!» (Neemias 8,10). Neste Domingo da Alegria, fiquemos então com este punhado de imperativos: alegrai-vos! Partilhai! Rezai!

António Couto



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