Na visita que realiza ao Luxemburgo e à Bélgica o Papa esteve hoje na Universidade Católica de Leuven onde abordou o perigo do "racionalismo sem alma" e de um certo "cansaço de espírito". Aos professores o Papa pediu a capacidade de educar para "a verdade plena" sem medo do "espanto" e do "desassombro" como princípios do conhecimento.
Numa sociedade que tende à uniformização do pensamento, o Papa agradeceu o exemplo de Leuven na receção, acolhimento e educação de migrantes desafiando os docentes a "serem buscadores da verdade"
Leia, na íntegra, a reflexão do Santo Padre
Senhor Reitor,ilustres professores,caros irmãos e irmãs, boa tarde
Estou feliz por estar aqui entre vós e agradeço ao reitor as palavras de boas-vindas, com que recordou a história e a tradição em que se funda esta Universidade, bem como alguns dos principais desafios atuais que a todos nos envolvem. Esta é a primeira tarefa da Universidade: oferecer uma formação integral para que as pessoas adquiram os instrumentos necessários para interpretar o presente e projetar o futuro.
A formação cultural, certamente, nunca é um fim em si mesma e as universidades não devem cair na tentação de se tornarem “catedrais no deserto”, mas são, pela sua própria natureza, lugares onde se promovem ideias e novos estímulos para a vida e o pensamento do homem e para os desafios da sociedade, ou seja, espaços geradores. É bonito pensar que a Universidade gera cultura, desenvolve ideias, mas sobretudo promove a paixão pela busca da verdade, ao serviço do progresso humano. Em particular, os ateneus católicos, como este, são chamados a «trazer o contributo decisivo do fermento, do sal e da luz do Evangelho de Jesus Cristo e da Tradição viva da Igreja, sempre aberta a novos cenários e a novas propostas» (Const. ap. Veritatis gaudium, 3).
Desejo, por isso, fazer-vos um simples convite para alargardes as fronteiras do conhecimento. Não se trata de aumentar noções ou teorias, mas de fazer da formação académica e cultural um espaço vital, que abrace a vida e a desafie.
Há uma breve história bíblica contada no livro das Crónicas, que gostaria de evocar aqui. O protagonista é Iabés, que dirige esta súplica a Deus: «Se realmente me abençoares, alargarás os meus limites» (1 Cr 4,10). Iabés significa ‘dor’, e recebeu este nome por que a sua mãe sofreu muito ao dar à luz. Mas agora Iabés não quer ficar preso na sua dor, deixando-se levar pelo lamento, e pede ao Senhor que “amplie as fronteiras” da sua vida, para entrar num espaço abençoado, maior, mais acolhedor. O oposto está nos fechamentos.
Alargar as fronteiras e ser um espaço aberto ao homem e à sociedade constitui a grande missão da Universidade.
No nosso contexto, de facto, encontramo-nos perante uma situação ambivalente, em que as margens estão a diminuir. Por um lado, estamos imersos numa cultura marcada pela renúncia à busca da verdade; perdemos a paixão inquieta da investigação, para nos refugiarmos no conforto de um pensamento fraco - o drama do pensamento fraco - para nos refugiarmos na convicção de que tudo é igual, de que uma coisa vale o mesmo que a outra, de que tudo é relativo. Por outro lado, quando falamos de verdade em contextos universitários e também noutras áreas, caímos muitas vezes numa atitude racionalista, segundo a qual só se pode considerar verdadeiro aquilo que podemos medir, experimentar, tocar, como se a vida se reduzisse apenas à matéria e o visível. Em ambos os casos os limites são reduzidos.
Quanto ao primeiro ponto, temos o cansaço do espírito, que nos relega para a incerteza constante e para a ausência de paixão, como se fosse inútil procurar sentido numa realidade que permanece incompreensível. Este sentimento emerge frequentemente em algumas personagens da obra de Franz Kafka, que descreveu a condição trágica e angustiante do homem no século XX. Num diálogo entre duas personagens de uma das suas histórias, encontramos esta afirmação: «Creio que não se lida com a verdade simplesmente porque é demasiado desgastante» (Descrição de uma luta, 1908). A busca da verdade é cansativa, porque nos obriga a sair de nós mesmos, a correr riscos, a questionarmo-nos. E, por isso, somos mais atraídos – no cansaço do espírito – por uma vida superficial que não suscita muitas interrogações; Assim como da mesma forma somos mais atraídos por uma ‘fé’ fácil, leve e confortável, que nunca questiona nada.
Quanto ao segundo ponto, pelo contrário, temos um racionalismo sem alma, no qual hoje corremos o risco de voltar a cair, condicionados pela cultura tecnocrática que nos leva a isso. Quando o homem é reduzido à mera matéria, quando quer forçar a realidade até aos limites do visível; quando a razão é apenas matemática, quando a razão é razão de ‘laboratório’, então perde-se o espanto – e quando este falta, não se pode pensar; o desassombro é o princípio da filosofia, é o princípio do pensamento – esfuma-se aquele deixar-se maravilhar interior que nos leva a olhar mais além, a olhar para o céu, a desvendar a verdade oculta que confronta as questões fundamentais: por que existo? Que sentido tem a vida? Qual é o objetivo final e a meta final desta viagem? Romano Guardini interrogava-se: «Por que razão o homem, apesar de todos os progressos, permanece desconhecido de si mesmo e se torna cada vez mais desconhecido? Por que perdeu a chave para compreender a essência do homem. A lei da nossa verdade diz que o homem só se reconhece de cima, acima dele, de Deus, porque só de Deus traz a sua existência» (Oração e verdade).
Queridos professores, contra o cansaço do espírito e o racionalismo desalmado, aprendamos também a rezar como Iabés: «Senhor, alarga as nossas fronteiras». Peçamos a Deus que abençoe o nosso trabalho, ao serviço de uma cultura capaz de enfrentar os desafios de hoje. O Espírito Santo que recebemos como dom impele-nos a procurar, a abrir os espaços do nosso pensamento e das nossas ações, até nos guiar para a verdade plena (cf. Jo 16,13). Estamos certos – como nos disse o reitor no início – “que ainda não sabemos tudo”, mas, ao mesmo tempo, é precisamente esta limitação que deve sempre impulsioná-los a seguir em frente, ajudando-os a manter a chama acesa da investigação e continuar a ser como uma janela aberta para o mundo de hoje.
E, por isso, quero agradecer-lhe sinceramente. Obrigado por que, ao expandires as vossas fronteiras, tornastes-vos um espaço acolhedor para todos os refugiados que foram obrigados a fugir das suas terras, no meio de inúmeros perigos, enormes dificuldades e sofrimentos por vezes atrozes. Obrigado. Vimos recentemente, no vídeo, um testemunho muito comovente. E enquanto alguns pedem que as fronteiras sejam reforçadas, vós, enquanto comunidade universitária, alargais as vossas próprias fronteiras. Obrigado. Abristes os braços para acolher estas pessoas marcadas pela dor, para as ajudardes a estudar e a crescer. Obrigado.
É disto que precisamos, de uma cultura que alargue as fronteiras, que não seja “sectária” – e vós não sois sectários, obrigado – nem se coloque acima dos outros, mas, pelo contrário, se insira na massa do mundo, fornecendo-lhe um bom fermento, que contribui para o bem da humanidade. Esta tarefa, esta “maior esperança”, está-vos confiada.
Um teólogo originário desta terra, filho e professor desta Universidade, afirmou: «Somos a sarça ardente que permite que Deus se manifeste» (A. Gesché, Deus para pensar, Salamanca 2010). Mantende acesa a chama deste fogo, alargai as fronteiras. Por favor, sede inquietos, com uma inquietação vital, sede buscadores da verdade e nunca apagueis a vossa paixão, para não cederdes à acídia do pensamento, que é uma doença muito feia. Sede protagonistas na criação de uma cultura de inclusão, de compaixão, de atenção aos mais frágeis e aos grandes desafios do mundo em que vivemos.
E por favor não vos esqueçais de rezar por mim. Obrigado.
Tradução Educris a partir do original em italiano
Imagem:
Foto de Winston Tjia na Unsplash
Educris|27.09.2024
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