Homilia de D. Rui Valério, na ordenação episcopal de D. Nuno Isidro e D. Alexandre Palma, auxiliares do Patriarcado de Lisboa, lembrou que o ministério “não depende tanto das nossas qualidades […] mas da dádiva do nosso coração a Deus”
Homilia de D. Rui Valério, Patriarca de Lisboa
1. Caríssimos irmãos, no episcopado, no sacerdócio, no diaconado, ilustres autoridades, caras irmãs e caros irmãos em Cristo.
A Igreja de Lisboa exulta de alegria no Senhor, pelo dom da consagração episcopal de D. Nuno Isidro e D. Alexandre Palma. Neste ano da graça de 2024, o Santo Padre Francisco oferece dois zelosos pastores, como Bispos Auxiliares, a este amado Patriarcado.
2. Dentro de alguns instantes, após a invocação da intercessão dos santos do céu, o Espírito Santo marcará os novos Bispos com o caráter que os reveste da plenitude do sacerdócio de Cristo, verdadeiro e eterno sacerdote das almas, o Pastor dos pastores.
E do fascínio dessa novidade, os primeiros a serem surpreendidos, sereis precisamente vós. Consiste numa autêntica dilatação do coração, que vos permite expandir a relação com as comunidades que vos serão confiadas:
- de forma ocasional, mas também abrangente;
- de maneira precisa e, ao mesmo tempo, profunda;
- incisiva, mas também libertadora.
Na realidade, trata-se de ter aquela sabedoria que é simultaneamente lúcida e benevolente, tão própria de um pai de família que olha para os seus filhos com verdade e os apoia com o mais compassivo amor; mas que também é própria de um bom pastor que cuida com ternura das suas ovelhas e as reúne na unidade de um só rebanho. Que reconhecem, agradecidos, até o mais pequeno pedaço de bem e o valoriza na harmonia da comunidade eclesial.
3. Sereis revestidos pelo dinamismo daquela nova paciência que não germina apenas de mecanismos psicológicos, mas que brota das fontes da graça, que vos permitirá permanecer firmes na autenticidade da vocação e assumir altruisticamente o destino dos homens, e carregar o peso das situações trágicas do nosso mundo, sabendo que os tempos de Deus não são os nossos tempos, e quer a Igreja, quer a história da humanidade estão nas mãos dóceis e ternas de Cristo, o Bom Pastor.
Nós, servos por iniciativa e exclusiva vontade do Senhor; escolhidos para servir, reconhecemos a loucura do amor que Ele tem por nós. Somos amados, chamados e enviados em missão. Jesus, Deus humanado e crucificado, abraçou-nos enquanto pobres homens que somos, carregou-nos aos ombros como ovelhas perdidas e feridas. Mas Ele é a nossa verdadeira razão de ser, o vínculo amoroso que nos une para sempre.
4. Muitas vezes, ao longo da vossa vida, ireis sentir a doçura da paternidade de Deus, da qual sereis os primeiros beneficiários, mas também, misteriosamente, os seus ministros. Uma paternidade, que não nasce da vossa humanidade, das vossas competências, mas vem do Alto, como dom do Espírito. Acolhei este dom incomensurável da graça, sobretudo nos momentos de maior aridez e solidão; invocai e regressai sempre à fonte da obra que Cristo hoje está a fazer em vós para sempre. De facto, Ele indica a tarefa, mas também oferece a força para a realizar. E não é, porventura, esta a nossa segurança e a nossa paz? Em que outro porto poderemos procurar abrigo, particularmente, nas horas de sombra e nos tempos de deserto, senão junto do Senhor, e aos pés da sua Cruz?
Por isso, caros D. Nuno e D. Alexandre, quando, no segredo da noite, procedeis à revisão do dia, não considereis tanto aquilo que fizestes, mas o que fostes. Conscientes de que é fundamentalmente ao nível da dimensão do ser, mais do que do fazer, que a vossa relação com Cristo, com a Virgem Maria e os Santos, mais se concretiza e desenvolve. Uma relação confiante, vivida na oração – esse diálogo silencioso com o Mestre –, no encontro a sós com o Senhor. Vivida porque, na simples presença junto ao tabernáculo, ela é chamada ao vosso coração, desejada e recordada em cada gesto de entrega e misericórdia.
5. O nosso ministério não depende tanto das nossas qualidades, que, no entanto, são sempre um importante instrumento; nem tão pouco depende da oferta da nossa vida pelos outros; acima de tudo, depende da dádiva do nosso coração a Deus. Por isso, nós não dizemos que somos conquistadores de almas, mas dizemos que estamos conquistados por Cristo.
Viver em Cristo, estar enxertados n’Ele, não significa fugir do mundo, significa, sim, estar no mundo, mas na maneira mais bela e no modo mais útil. É necessário olhar o céu para ser capaz de ver a terra; é indispensável contemplar o mistério da cruz, para descobrir o serviço aos homens e mulheres do nosso tempo.
Quanto a esta forma de viver no tempo, as pessoas têm a capacidade de perscrutar, também aí, a presença de Deus e do seu reino, particularmente em fragmentos de gestos e de palavras; de vislumbrar, nas pequenas migalhas de Absoluto desprendidas da mesa do amor, alimento para a alma, nutrimento para a esperança. E até os surdos conseguirão recuperar nova capacidade para escutar, os mudos para falar, os cegos para verem a presença do invisível, d’Aquele que vos escolheu para serdes, com o nosso Presbitério, sinal e sorriso, palavra e amor, alegria e esperança.
Sereis perdão, porque fostes perdoados; portadores de salvação, porque fostes salvos; mensageiros de misericórdia, misericordiosos, “porque fostes misericordiados”, eis o rosto do Vosso ministério. Sede humildes, dedicados e generosos, pois tudo o que receberdes é graças ao Espírito de Deus que habita em vós.
6. A humanidade tem uma absoluta necessidade d’Aquele rosto, que consciente ou inconscientemente, vai afanosamente procurando, mas também contestando.
Onde conduzireis, vós, o povo a vós confiado? Esse povo que vos olha, recordando-nos quanto os nossos predecessores elevaram a fasquia do serviço e do anúncio. Lisboa é um imenso campo que atende, sedenta e faminta, a genuína semente do Evangelho para germinar frutos de fé; está desejosa dum anúncio de Cristo Vivo, que o Papa Francisco define como “nossa esperança e a mais bela juventude deste mundo!” Espera, impaciente, o rosto de Deus na presença amorosa, disponível, dos seus filhos, sobretudo dos seus ministros, para restaurar a verdadeira paz, mas também a ousadia de sonhar, apanágio dos empreendedores do Espírito.
Onde conduzireis o rebanho do Senhor? Eu mesmo reunirei o resto das minhas ovelhas de todas as terras onde se dispersaram
e as farei voltar às suas pastagens,
para que cresçam e se multipliquem.
Dar-lhes-ei pastores que as apascentem,
e não mais terão medo nem sobressalto;
nem se perderá nenhuma delas.
O povo olhará para ver onde colocareis os vossos pés, certos de que os plantareis nas peugadas do Mestre. Pisadas visíveis e seguras, que enxergais no grande alvor da sucessão apostólica, à qual, a partir de hoje e para sempre, pertenceis.
Ora, vós sabeis que as pastagens mais abundantes e nutritivas crescem sempre nas alturas; e quando o povo vos vê a subir, à frente deles, a essas alturas, ele vos seguirá. Tal não significa, como tem exortado o Papa Francisco, que não estareis no meio do povo para o escutar, exortar e ensinar; para sentir a alma dos mais simples, dos mais pobres, dos excluídos. Significa que estareis lá, junto de quem anda desencorajado, para reanimar o alento do caminho; estareis ao lado dos cansados e feridos, para oferecer repouso e cuidados, para sarar as feridas com o balsamo da misericórdia. Quando se sobe às alturas, tudo favorece para, com os presbíteros e por eles, chegar a todos. Sim, a todos, mas com um olhar especial aos mais frágeis e pobres. E não é sequer uma questão de justiça, mas de amor. Porque o amor configura-se sobretudo na relação com os outros, porque só se existe porque se foi amado e se ama.
“A característica dos sacerdotes deve ser o espírito de sacrifício e de abnegação. Se procurardes o vosso bem-estar, o poder terreno, vivereis em contradição com o vosso ministério; se procurardes a doação, a compaixão, a entrega, vivereis em harmonia com o nosso tempo e com os nossos irmãos. A nossa autoridade, tão grandiosa, torna-se aquilo que o Senhor quer, ou seja, serviço, humildade, amizade, diálogo de coração para coração, de pessoa para pessoa. E isto exige de nós uma intensa vida interior, um relacionamento face a face com Cristo e com a Sua Palavra de salvação.”
Partilho convosco esta última mensagem do antigo Arcebispo de Milão, Cardeal Schultz, a escassas horas de expirar: “Não tenho outra recordação para vos deixar, se não um convite à santidade. Parece que as pessoas, hoje, já não se deixam tocar pela nossa pregação. Mas, na presença da santidade, ainda creem, ajoelham-se e rezam”.
7. “Não temais!” É o que, hoje, vos segreda o Senhor ao vosso coração de pastores, e é também, o que nós vos transmitimos com amizade.
A nossa oração estará sempre presente. A prece que elevamos do santuário do nosso coração acompanhar-vos-á.
Do céu, vos contemplam os vossos entes queridos, mas também aqueles que serviram, com amor e dedicação, o nosso amado Patriarcado: D. António, D. José, D. Tomás, D. Daniel… apenas para referir os mais próximos.
Deixai-vos, pois, seduzir pelo olhar maternal da Virgem Maria, olhar que nos diz: “fazei tudo o que Ele vos disser”. Permanecei sempre seus filhos, porque ela é Mãe. Cultivai a confiança na sua ternura maternal, o seu coração materno tudo escuta, tudo compreende e, vós o sabeis, tudo conforta e consola. A sua companhia é luz e sustento para o caminho, quando caminhar significa progredir, construir, encarnar Cristo na história e na vida de cada homem e mulher. Não temais!
Mosteiro dos Jerónimos, 21 de julho de 2024
† RUI, Patriarca de Lisboa
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