Estados Unidos: Papa critica políticas de «expulsão em massa» que ferem «a dignidade humana»

Em carta aberta, aos Bispos dos Estados Unidos da América, Francisco agradece “sinal” da Igreja Católica no acolhimento de migrantes e refugiados e exorta a que não se ceda “perante narrativas que discriminam e fazem sofrer desnecessariamente os irmãos migrantes e refugiados”

Caros Irmãos no Episcopado:

Dirijo-vos algumas palavras nestes momentos delicados que estais a viver como Pastores do Povo de Deus que caminha nos Estados Unidos da América.

1. O caminho da escravidão para a liberdade que o povo de Israel percorreu, narrado no Livro do Êxodo, convida-nos a olhar para a realidade do nosso tempo, tão claramente marcada pelo fenómeno da migração, como um momento decisivo da história para reafirmar não só a nossa fé num Deus sempre próximo, encarnado, migrante e refugiado, mas também a dignidade infinita e transcendente de cada pessoa humana. [1]

2.º Estas palavras com as quais começo não são articuladas artificialmente. Mesmo um exame superficial da Doutrina Social da Igreja mostra com grande força que Jesus Cristo é o verdadeiro Emanuel (cf. Mt 1,23), e que Ele não viveu separado da difícil experiência de ser expulso da sua própria terra por causa de um risco iminente para a sua vida, e da experiência de ter de se refugiar numa sociedade e numa cultura estranhas às suas. O Filho de Deus, ao fazer-se homem, escolheu também viver o drama da imigração. Gosto de recordar, entre outras, as palavras com que o Papa Pio XII iniciou a sua Constituição Apostólica sobre o cuidado dos migrantes, considerada a Carta Magna do pensamento da Igreja sobre a migração:

«A família de Nazaré no exílio, Jesus, Maria e José, emigrantes no Egito e aí refugiados para escapar à ira de um rei ímpio, são o modelo, o exemplo e a consolação dos emigrantes e peregrinos de todos os tempos e países, de todos os refugiados de qualquer condição que, pressionados pela perseguição ou pela necessidade, são obrigados a abandonar a sua pátria, a sua querida família e os seus queridos amigos para irem para terras estrangeiras.» [2]

3.De igual modo, Jesus Cristo, amando a todos com um amor universal, ensina-nos a reconhecer permanentemente a dignidade de cada ser humano, sem exceção. De facto, quando falamos de “dignidade infinita e transcendente”, queremos realçar que o valor mais decisivo que a pessoa humana possui supera e sustenta qualquer outra consideração jurídica que se possa fazer para regular a vida em sociedade. Por conseguinte, todos os fiéis cristãos e pessoas de boa vontade são chamados a considerar a legitimidade das normas e políticas públicas à luz da dignidade da pessoa e dos seus direitos fundamentais, e não vice-versa.

4. Tenho acompanhado de perto a grande crise que está a ocorrer nos Estados Unidos devido ao início de um programa de deportação em massa. Uma consciência devidamente formada não pode deixar de emitir um juízo crítico e de manifestar a sua discordância com qualquer medida que identifique, tácita ou explicitamente, a situação ilegal de alguns migrantes com a criminalidade. Ao mesmo tempo, deve ser reconhecido o direito de uma nação se defender e manter as suas comunidades seguras daqueles que cometeram crimes violentos ou graves enquanto estavam no país ou antes de chegarem. Posto isto, o ato de deportar pessoas que, em muitos casos, abandonaram as suas terras por motivos de extrema pobreza, insegurança, exploração, perseguição ou grave deterioração ambiental, fere a dignidade de muitos homens e mulheres, de famílias inteiras, e coloca-os num estado de especial vulnerabilidade e indefesa.

5. Esta não é uma questão menor: um verdadeiro Estado de direito verifica-se precisamente no tratamento digno que todas as pessoas merecem, especialmente as mais pobres e marginalizadas. O verdadeiro bem comum é promovido quando a sociedade e o governo, com criatividade e estrito respeito pelos direitos de todos — como já afirmei em inúmeras ocasiões — acolhem, protegem, promovem e integram os mais frágeis, desprotegidos e vulneráveis. Isto não impede o desenvolvimento de uma política que regule a migração ordenada e legal. Contudo, a referida “maturação” não pode ser construída através do privilégio de uns e do sacrifício de outros. O que é construído com base na força, e não com base na verdade sobre a igual dignidade de todo o ser humano, começa mal e acabará mal.

6. Nós, cristãos, sabemos muito bem que só afirmando a dignidade infinita de todos podemos atingir a maturidade da nossa própria identidade como pessoas e como comunidades. O amor cristão não é uma expansão concêntrica de interesses que se estendem gradualmente a outras pessoas e grupos. Por outras palavras: a pessoa humana não é um mero indivíduo, relativamente expansivo, com alguns sentimentos filantrópicos! A pessoa humana é um sujeito digno que, através da relação constitutiva com todos, sobretudo com os mais pobres, pode amadurecer gradualmente na sua identidade e vocação. O verdadeiro ordo amoris que deve ser promovido é aquele que descobrimos meditando constantemente na parábola do «bom samaritano» (cf. Lc 10, 25-37), isto é, meditando no amor que constrói uma fraternidade aberta a todos, sem exceção. [3]

7. Preocupar-se com a identidade pessoal, comunitária ou nacional, para além destas considerações, introduz facilmente um critério ideológico que distorce a vida social e impõe a vontade do mais forte como critério de verdade.

8. Reconheço os vossos valiosos esforços, queridos bispos dos Estados Unidos, ao trabalharem em estreita colaboração com os migrantes e refugiados, anunciando Jesus Cristo e promovendo os direitos humanos fundamentais. Deus recompensará abundantemente tudo o que fizer para proteger e defender aqueles que são considerados menos valiosos, menos importantes ou menos humanos!

9. Exorto todos os fiéis da Igreja Católica e todos os homens e mulheres de boa vontade a não cederem a narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados. Com caridade e clareza, todos somos chamados a viver em solidariedade e fraternidade, a construir pontes que nos aproximem cada vez mais, a evitar muros de ignomínia e a aprender a dar a nossa vida como Jesus Cristo ofereceu a sua, pela salvação de todos.

10. Peçamos à Santíssima Virgem Maria de Guadalupe que proteja as pessoas e as famílias que vivem com medo ou dor devido à migração e/ou deportação. Que a “Virgem negra”, que soube reconciliar os povos quando estavam em desacordo, nos conceda a todos o reencontro como irmãos, no seu abraço, e assim dar um passo em frente na construção de uma sociedade mais fraterna, inclusiva e respeitadora da dignidade de todos.

Fraternalmente,

Francisco

Imagem: Foto de Barbara Zandoval na Unsplash

Tradução EDUCRIS a partir do original em inglês



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