Domingo III da Páscoa: «O Corpo de Jesus envolvido no corpo da Escritura»

At 3,13-15.17-19; Sl 4; 1 Jo 2,1-5a; Lc 24,35-48

1. É-nos dada hoje, Domingo III da Páscoa, a graça de escutar a página sublime do Evangelho de Lucas 24,35-48, em que Jesus Ressuscitado se faz ver aos seus discípulos reunidos, que não são apenas os Onze, mas «os Onze e os outros com eles» (v. 33). Jesus Ressuscitado apresenta-se no MEIO deles, e saúda-os com a Paz (eirênê) (v. 36), tema que este Evangelho privilegia, usando o termo por 13 vezes [Mt 4x; Mc 1x; Jo 6x; At 7x], uma espécie de rio de paz que percorre o Evangelho de Lucas desde o coro angélico de 2,14, aquando do nascimento de Jesus, até ao fim. A página de Lucas hoje proclamada, e que pretende mostrar-nos a evidência da Ressurreição de Jesus, não convence os seus discípulos e produz mesmo o efeito contrário, pois é-nos dito pelo narrador que os discípulos ficam assustados (ptoêthentes) e amedrontados (émphoboi), não por saberem que ali estava Deus, mas por julgarem estar a ver um espírito ou um fantasma (pneûma) (v. 37). Jesus questiona a incapacidade destes discípulos e o ceticismo (dialogismós) que os envolve (v. 38), avança ainda novos dados, mas a incredulidade (apistía) permanece, não obstante uns laivos de alegria: duvidam ao mesmo tempo que se alegram, alegram-se com facilidade, acreditam com dificuldade (v. 41), um pouco à semelhança de quanto dito no Evangelho de Mateus que refere com mais racionalidade que «uns adoram e outros duvidam» (Mt 28,17). O leitor que se debruça sobre esta página pode ser assaltado por questões como estas: a) o que terá acontecido àqueles discípulos depois da morte de Jesus?; b) como chegaram ao ponto de afirmar a sua ressurreição?; c) terão sido vítimas de alguma desmedida ilusão?; d) autoconvenceram-se de que a obra de Jesus não podia terminar com aquela morte?; e) é a partir de si mesmos que chegam à fé na ressurreição, e que começam a anunciar convictamente que Jesus está vivo? A página do Evangelho de hoje ajuda-nos a compreender melhor os acontecimentos. Mas fica desde já claro que a Ressurreição de Jesus não pode ser invenção das mentes desiludidas, e sem réstia de esperança, dos discípulos (cf. Lc 24,20-21). Só o Ressuscitado pode tomar a iniciativa de pôr outra vez a arder o coração em cinzas dos discípulos, recorrendo às Escrituras (v. 32).

2. Voltemos, então, ao princípio. Ainda os dois discípulos de Emaús faziam exegese demorada (exegoûnto: impf. de exêgéomai) das coisas acontecidas no caminho e de como Jesus se deu a conhecer (egnôsthê: aor. pass. de ginôskô) a eles (autoîs), dativo do beneficiário, no partir do pão (en tê klásei toû ártou) (v. 35), quando o próprio Ressuscitado irrompeu e ficou de pé no MEIO deles (o lugar da presidência), e saudou-os, dizendo: «A Paz convosco!» (v. 36). O leitor estaria talvez à espera de uma receção apoteótica, do rebentamento de recalcadas emoções, de incontidos gritos de júbilo e de alegria. E, em vez disso, assistimos ao extravasar de medos, perturbação e dúvidas, o que mostra e realça outra vez a sua desilusão sem saída, pois o que pensavam estar a ver diante deles, no MEIO deles, era um espírito, um fantasma (pneûma)! (vv. 37 e 39).

3. Digamo-lo outra vez: esta reação é importante, e manifesta que estes discípulos de Jesus, após aquela morte de Jesus, já tinham desistido de Jesus e nada mais esperavam dele (v. 21). Qualquer novo início só poderia vir de fora, só poderia vir de Deus. Naqueles discípulos não se vislumbrava nenhuma réstia de esperança, nenhuma acha ainda fumegava. Tudo cinza do mais cinzento que há. É a maneira de a Bíblia inteira realçar as intervenções de Deus. Deus não intervém como consequência de um pedido ou desejo nosso, para satisfazer os nossos anseios ou projeções mais insistentes. É sempre pura iniciativa sua, do nosso lado, impensável, imprevisível e incontrolável. Ao mostrar as coisas desta maneira, a Bíblia, toda a Bíblia, antecipa-se em muitos séculos aos «mestres da suspeita» (Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud) e dissolve avant la lettre a sua denúncia de um Deus produzido ou projetado pelos nossos anseios e desejos. É, portanto, de assinalar que estes discípulos de Jesus deem o “dossier Jesus”, que os encantou, por encerrado, e comecem às apalpadelas a planear à sua maneira o “pós-Jesus”. Como se Jesus não estivesse aqui, no MEIO de nós! E como se não houvesse mais nenhuma surpresa para engolir! Não nos esqueçamos da verdade escondida aos olhos dos dois discípulos de Emaús: «Tu és o único (mónos) que não sabe as coisas que aconteceram em Jerusalém nestes dias?» (v. 18). Sim, Ele é o único que não sabe aquelas coisas, estas coisas, como nós as sabemos! Sabe-as de outra maneira, da maneira certa!

4. É assim que Jesus vem sem ser esperado e sem se fazer anunciar. E porque não era possível, da nossa parte, acreditar que fosse Ele, Ele tem mesmo de se identificar, coisa estranha, como se o dono da casa – e Ele é o dono da casa: «Sou eu próprio» (egô eimi autós) (v. 39) –, para entrar na sua própria casa, fosse obrigado a identificar-se. Temos, então, por um lado, o desnorte dos discípulos, e, por outro, Jesus que quer ser por eles reconhecido como o Ressuscitado. Para esse reconhecimento, Jesus vai fazer uso de todos os seus trunfos, mas não exibe qualquer fotografia ou documento. Reprova o ceticismo (dialogismós) que habita o nosso coração (v. 38), mostra as mãos e os pés, como em João 20,20 e 27 mostra as mãos e o lado, que levam a reconhecer o Ressuscitado como o Crucificado, sendo as mãos e os pés, como as mãos e o lado, as marcas da sua vida dada até ao fim (Jo 13,1). No texto que estamos a ler, sujeita-se mesmo a deixar-se apalpar, para dissipar a ideia do fantasma que os seus discípulos têm na cabeça e que, ao contrário de Jesus, não tem carne nem ossos (v. 39-40). Para afastar em definitivo a ideia do fantasma, Jesus come diante deles uma posta de peixe assado (v. 42-43). Note-se uma vez mais que não é pelo rosto que identificamos Jesus Ressuscitado. Se assim fosse, e se Jesus mostrasse o rosto, aqueles discípulos, que com Ele tinham convivido de perto, tê-lo-iam identificado sem demora. Mas não é pelo rosto que Jesus se identifica. É a sua maneira de ser que diz Quem Ele é. E a sua maneira de ser é dar a vida até ao fim. Maneira de ser e de estar connosco. No meio de nós (v. 36), à nossa frente (v. 43), presidindo-nos e precedendo-nos e surpreendendo-nos. Como a Escritura aberta e interpretada.

5. Sintomático que aqueles discípulos, vendo o que veem, nada digam. Permanecem mudos e incrédulos! (v. 41). Eles que antes tinham a boca cheia de palavras e o coração de fé (vv. 34-35)! Mas Jesus continua a ser, é sempre, não o simples orador à maneira dos escribas, mas Aquele que fala com autoridade (Mc 1,22). Ele é a Palavra criadora de mundos novos e de corações novos (Jo 1,3). Quando Ele surge, um mundo novo começa a acontecer. Dentro e fora de nós. E como é que nós podemos falar, se ainda agora estamos a nascer?! Portanto, Ele fala (laléôcomo fala a Escritura: «É necessário (deî) que sejam cumpridas (plêrôthênai: inf. aor. pass. de plêróôtodas (pánta) as coisas escritas (gegramména: part. perf. pass. de gráphô) na Lei de Moisése nos Profetas e nos Salmos acerca de mim (perì emoû). […] Assim foi escrito (gégraptai: perf. pass. de gráphô) que o Cristo havia de sofrer (1) e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia (2) e de ser anunciada (kêrýssô) (3) no seu nome a conversão para a remissão dos pecados a todas as nações» (vv. 44-47). E acrescenta com autoridade: «Vós sois testemunhas (mártyres) destas coisas» (v. 48). Ou seja: de nada vale a insistência sobre a materialidade do seu corpo enquanto não formos levados a vê-lo integrado no corpo da Escritura. Não é a evidência incontestável da existência corpórea de Jesus que produz a fé, e é também verdade que a Ressurreição não significa simplesmente voltar da morte a esta vida terrena. Os factos, em si, são mudos e ambíguos, e reclamam um critério de interpretação. Esse critério é a Escritura. É, portanto, necessário que Jesus nos abra «a mente (noûs) para compreendermos as Escrituras» (v. 45). Sim, é só com o seu falar de revelação (laléô) com autoridade (exousía) e com as Escrituras abertas, a transbordar, que Ele dissipa as nossas dúvidas e medos, ao mesmo tempo que nos indica o rumo da Escritura, que abre diante dos nossos olhos a compreensão do Ressuscitado e o sentido obrigatório da missão. E também só agora, com a luz que brota da interpretação das Escrituras, os discípulos experimentam, não uns laivos de alegria, mas a «alegria grande» (chará megálê) (v. 52).

6. O que nos é dado compreender é que a morte e a ressurreição de Jesus fazem parte dos desígnios de Deus, o que implica compreender que a história pessoal de Jesus, enquanto história do Messias sofredor e glorioso, está inscrita dentro da história mais ampla narrada na Escritura, e é por isso que é necessário que a nossa mente seja por Ele aberta para podermos compreender a Escritura. E já agora, porque o texto também o diz, a história da Igreja nascente só pode ser entendida dentro da história de Jesus e dentro do andamento da Escritura. É só neste horizonte de compreensão que se pode entender que a Missão do anúncio do Evangelho não é facultativa, mas se insere na necessidade do plano de Deus, ao mesmo nível da morte e da ressurreição de Jesus. De forma clara, o cristão é batizado na morte de Cristo e vive a vida nova da Ressurreição de Cristo, mas tem de viver também do/e para o anúncio do Evangelho. É este o único lugar do Novo Testamento que guarda esta tripla necessidade: sofrimento e morte de Jesus (1), ressurreição de Jesus (2), anúncio do Evangelho a todas as nações (3). Nos outros lugares do Novo Testamento, esta necessidade afeta apenas as duas primeiras realidades.

7. Esta necessidade divina ou teológica fica registada no uso do verbo grego deî e das coisas para sempre escritas em todas as Escrituras. O para sempre escritas fica gravado no uso dos dois perfeitos (gegramména e gégraptai, respetivamente particípio perfeito passivo e perfeito passivo do verbo gráphô). Se o uso do perfeito indica o «para sempre», o uso da forma passiva aponta para Deus, tratando-se, como é usual classificar-se, de um passivo divino ou teológico.

8. Importa ainda precisar que este necessário anúncio do Evangelho não afeta apenas os Onze, mas «os Onze e os outros com eles» (v. 33), entenda-se, todos os discípulos de Jesus, pois é perante todos [«os Onze e os outros com eles»] – não há mudança de cenário – que Jesus pronuncia o luminoso falar de revelação (vv. 44-47). Sem equívocos então: esta missão afeta-nos a todos, todos os discípulos de Jesus de todos os tempos. Fica ainda claro que o anúncio (kêrygma) do Evangelho não decorre por conta e risco do anunciador (kêryx), que não o faz em seu próprio nome; antes, apresenta-se sempre vinculado a Jesus Cristo, pois o anúncio é feito «em seu nome» (v. 47), é Ele que envia o anunciador. E este anúncio do Evangelho não fica circunscrito a um horizonte limitado, paroquial, diocesano, nacional, continental, pois o seu verdadeiro horizonte são «todas as nações» (v. 47), «todos os lugares», todos os corações.

9. Impõe-se ainda uma anotação sobre aquela importante afirmação final de Jesus, que nos designa como testemunhas (mártyres). É a primeira vez que os discípulos são designados como testemunhas. No mundo de hoje, tal como o conhecemos, falar de testemunhas é falar de alguém que, tendo presenciado um acidente ou um crime, se compromete depois, no tribunal, a apresentar o seu ponto de vista sobre o sucedido. Alguém, portanto, que é chamado a comprometer-se com uma história que não é dele. Para evitar incómodos e chatices, acabamos muitas vezes por dizer logo à partida que não vimos nada. Mas, aqui, é Jesus que nos designa como testemunhas. Convenhamos que esta designação dos cristãos como testemunhas não tem sido nem é habitual. A linguagem corrente cataloga-nos mais depressa como «praticantes» ou «não-praticantes». Mas aqui somos designados como «testemunhas» dos acontecimentos de Jesus Cristo. Aquando da necessária substituição de Judas no colégio apostólico, Pedro traça assim os requisitos necessários que devem presidir à escolha do novo membro que venha a entrar no grupo dos Doze: «É necessário (deî), pois, que, dos homens que vieram connosco (synérchomai) durante todo o tempo em que entrou e saiu à nossa frente o Senhor Jesus, tendo começado desde o Batismo de João até ao dia em que Ele foi arrebatado (anelêmphthê) diante de nós, um destes se torne connosco testemunha (mártys) da sua Ressurreição» (At 1,21-22). Somos, portanto, chamados a envolver-nos de tal modo na história e na vida de Jesus, a ponto de a fazermos nossa, para a transmitir aos outros, não com discursos inflamados ou esgotados, mas com a vida! Sim, aquela história e aquela vida são a nossa história e a nossa vida. Aí está o estilo da testemunha e do evangelizador.

10. É neste ponto preciso e nesta necessidade, que se refere aos desígnios de Deus, que S. Paulo, «o maior missionário de todos os tempos» (Bento XVI) e «modelo de cada evangelizador» (S. Paulo VI), enxerta a sua vida e se entende a si mesmo, pois confessa: «Evangelizar não é para mim um título de glória, mas uma necessidade que se me impõe desde fora (epíkeitai). Ai de mim se não Evangelizar!» (1 Cor 9,16).

11. Aí está, então, o importante acerto com a narrativa do Livro dos Atos dos Apóstolos (3,13-19), que nos mostra Pedro no papel de testemunha (mártys) (v. 15) envolvendo-se e envolvendo outros na história «deste Jesus, que vós entregastes» (v. 13), «mas que Deus ressuscitou dos mortos» (v. 15). E a Primeira Carta de S. João (1,1-5) mostra-nos Jesus Cristo como nosso Advogado (paráklêtos) e vítima de expiação (hilasmós) pelos pecados de todos.

12. O canto sereno, à serena luz da vela, do Salmo 4, que é um canto noturno, enche-nos de paz e de confiança e ensina-nos a viver serenamente, dia e noite, na companhia daquele Deus que se envolveu e envolve na nossa história e na nossa vida, realizando prodígios e reduzindo a fumo os ídolos e as insensatas e orgulhosas manobras humanas. O poeta francês Paul Claudel, que muitas vezes passeava pela Bíblia, parafraseou assim: «Há em mim esta paz que me leva ao sono. Há em mim este tesouro da esperança que me deste».

 

António Couto



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