Domingo XXX do Tempo Comum: «Rezar e evangelizar é a maneira de ser Igreja»

1. Domingo XXX do Tempo Comum. Aí está, no Evangelho de hoje (Lucas 18,9-14), mais uma parábola de Jesus direitinha ao nosso orgulhoso coração. Trata-se da famosa parábola do fariseu e do publicano, que sobem ao Templo para rezar. O narrador fornece-nos, a abrir e a fechar a parábola, a respetiva chave de interpretação. Abre assim: «Contou ainda esta parábola para alguns que, convencidos de serem justos, desprezavam os demais» (Lucas 18,9). E a fechar: «Todo aquele que se exalta será humilhado, e aquele que se humilha será exaltado» (Lucas 18,14b). A intenção de Jesus não é, portanto, mostrar-nos a radiografia religiosa de duas figuras públicas e emblemáticas do seu tempo: um fariseu e um publicano. A intenção de Jesus é que a parábola nos atinja a nós, e dissolva o orgulho e a arrogância que nos habitam e orientam a nossa vida, quer na nossa relação com Deus, quer na nossa relação com o próximo.

2. O facto de nos ser dito que os dois homens subiram ao Templo para rezar, é para os colocar e nos colocar, não numa situação qualquer, mas numa situação-limite, dado que, de acordo com o fortíssimo dizer de Jeremias, «aproximar-se de Mim» (lageshet ?elay), diz Deus, implica «empenhar [ou penhorar] o coração» (?arab ?et-libbô) (Jeremias 30,21). «Empenhar o coração» no sentido estrito e técnico de «pôr o coração no prego», de «penhorar o coração», no contexto das «casas de penhores». Salta à vista que «penhorar o coração» é pôr a vida em risco, é como subir a um poste de alta tensão, onde vemos escrito: «perigo de morte». É, pois, nesta situação-limite, que são colocados os dois homens de hoje, e nós também. Esta situação dá às coisas uma seriedade imensa e intensa. Vejamos como tudo se passa.

3. Vem primeiro a radiografia do fariseu. Entenda-se sempre, não de um homem da classe dos fariseus do tempo de Jesus, mas do farisaísmo que há em mim, em nós. O que a radiografia nos mostra é, então, um fariseu cheio de si, afogado em si, autossuficiente e autorreferencial. Já a água lhe dá pelo pescoço, dada a situação de proximidade com Deus em que ousou colocar-se, mas nem por isso «põe o coração» na situação-limite em que se encontra. Para espanto nosso, na sua oração, não pede auxílio, não estende a mão; antes, procede a um estranho ritual de auto incensação e debita faturas e palavras que não atravessam as nuvens. Mais parecem pedradas no charco em que alegre e orgulhosamente se afunda, agora já com a água a entrar-lhe pela boca adentro. Em breve as velas do coração ficarão encharcadas, e a embarcação afundar-se-á. À superfície, a boiar, antes de se afundarem também, um monte de faturas e de palavras inchadas. É assim que vive e reza o fariseu que há em mim, em nós. A balança do deve e haver com Deus, pensa o fariseu e pensamos nós muitas vezes, está claramente desequilibrada a seu e a nosso favor. Aí estão as faturas que Deus terá de nos pagar: «Jejuo duas vezes por semana [a lei mandava jejuar uma vez] e pago o dízimo de todos os meus rendimentos» (Lucas 18,12). Julga o fariseu, portanto, e julgamos muitas vezes nós também com ele, que temos muito crédito acumulado face a Deus. E, por isso, até nos damos ao luxo de dar graças (eucharistéô) a Deus por não sermos como os outros, que vemos como ladrões, injustos e adúlteros, nem como este reles publicano (Lucas 18,11), estes, sim, cheios de dívidas para com Deus. Convenhamos que esta é uma estranha forma de dar graças a Deus, isto é, de «fazer eucaristia»! Este fariseu que eu sou acha-se com direitos adquiridos sobre Deus e sobre o próximo, de tal modo que facilmente os julgo e condeno. A sua oração não atravessa as nuvens, como a do humilde (Ben-Sirá 35,21); desfaz-se contra as paredes da sua arrogância.

4. Ao fundo, sempre ao fundo, da cena, vislumbra-se um verdadeiro e assumido pecador. Coisa tão rara e, por isso, tão cara. Sim, este pecador, este publicano, leva a sério a situação-limite que é rezar, que supõe verdade. Não vale a pena mentir à beira da morte, à beira da vida dada! Sim, é um publicano, um cobrador de impostos, coletor de dinheiro público, daí o publicano [do latim publicanus], é um traidor à pátria judaica, um vendido aos invasores romanos, um ladrão, porque, naquela profissão, sempre se cobravam uns cobres a mais. Mas tem ainda coração. Por isso, bate com a mão no peito, e pede a Deus a esmola do perdão, rezando assim: «ó Deus, sê-me propício (hilásthêtì mou: imp. aor. pass. de hiláskomai), a mim, que sou pecador» (Lucas 18,13). É assim que põe a andar a sua pobre embarcação. É assim que reza o publicano que há em mim, em nós. É a verdadeira respiração ou oração do nosso coração. Conclui Jesus de forma solene: «Eu vos digo: “este desceu justificado (dedikaiôménos: part. perf. pass. de dikaióô) para sua casa; o outro não”» (Lucas 18,14a). Este justificado, no modo passivo, chamado passivo divino ou teológico, diz-nos que esta justificação é obra de Deus, não nossa. Diz bem São Paulo: «não com a minha justiça, a da lei, mas aquela através da fé em Cristo, a de Deus» (Filipenses 3,9; cf. Romanos 3,28). Na verdade, justificar significa transformar um pecador em justo. Então, justificar é perdoar. E, neste profundo sentido bíblico, justificar e perdoar são ações que só Deus pode fazer («quem pode perdoar os pecados senão Deus somente?») (Lucas 5,21), dado que, transformar um pecador em justo é igual a Criar ou Recriar um homem novo. E da ação de Criar também só Deus é sujeito em toda a Escritura. Atenção que diante de Deus, não há justos. Há apenas justificados!

5. Pode ajudar-nos uma belo conto judaico, edificante, sobre a verdadeira oração, que vai de encontro à parábola de Jesus, hoje escutada, e que mostra a oração como abandono a Deus e em Deus, louvor, súplica, confissão. O protagonista é David, depois do pecado de adultério com Betsabé e do homicídio de Urias. David apresenta-se diante de Deus, e diz somente: «Pequei, Senhor!», calando-se logo e ficando em silêncio. Por que se cala?, pergunta o narrador. Porque se vê semelhante àquele pobre, esfomeado, com as roupas rotas, que um dia teve a sorte de poder entrar no palácio, à presença fulgurante do rei. Chegado à beira do trono, não disse nada, não obstante a insistência dos cortesãos para que implorasse a ajuda do rei. Na verdade, não precisava de palavras. O seu próprio corpo, a sua miséria, era um pedido mais forte do que qualquer palavra.

6. O precioso Livro de Ben-Sirá, que uma vez mais temos a graça de folhear, ler e escutar, mostra-nos como Deus está atento ao indigente, à viúva, ao órfão, ao deserdado, ao humilde, e diz-nos que a sua oração atravessa as nuvens (Ben-Sirá 35,15-22). Belíssima expressão que se cruza com a palavra fecunda de Deus que, como a chuva, atravessa as nuvens para baixo e para cima, enchendo de alegria a nossa terra abençoada (Isaías 55,10-11). Diz ainda o sábio que a viúva, o pobre, o órfão, o humilde não dão descanso ao seu coração em oração a Deus, enquanto Deus não olhar para eles com olhos de bondade (Ben-Sirá 35,21). É exatamente o modo como reza o publicano: «ó Deus, olha para mim com a bondade do perdão», com aquele olhar maternal da bênção sacerdotal (Números 6,25-26).

7. Reza, meu irmão. Como vês, rezar não é para beatos ou beatas de trazer por casa. Rezar é para militares, pois requer a coragem das situações-limite, podendo, de facto, mudar a nossa vida inteira. Bem, hoje, a confissão de São Paulo na reta final da sua vida: «Combati o bom e belo combate, terminei a carreira, guardei a fé» (2 Timóteo 4,7). E a bela doxologia final, que nos mostra um Paulo sempre em oração: «A Ele a glória pelos séculos dos séculos. Ámen» (2 Timóteo 4,18).

8. Aí está, a fazer ressoar no nosso coração as páginas deliciosas deste Dia de Domingo, o Salmo 34, que põe nos lábios dos pobres a bênção (berakah) que os une a Deus para sempre, e o louvor jubiloso e intenso (tehillah) que é a sua verdadeira razão de viver (vv. 2-3). O pobre enche o seu olhar de Deus e fica radiante, luminoso (v. 6), sabe que Deus o escuta e o salva, e convida a saborear a bondade de Deus (v. 9). Ou talvez mais do que isso. Na versão grega deste v. 9, muito utilizado no momento da comunhão, também nas liturgias de rito bizantino, lê-se: «geúsasthe kaì ídete hóti chrêstós ho Kýrios» («Saboreai e vede que Bom é o Senhor»), em que o adjetivo chrêstós, «bom», é lido na pronúncia viva: christós, o que vem a resultar, na atualização cristã: «Saboreai e vede que Cristo é o Senhor». Belo e saboroso, sem dúvida. Deus segue sempre o pobre de perto, cerca-o de amor (v. 8), protege até os seus ossos para não serem quebrados (v. 21), tal como é dito do cordeiro pascal, o mais alto símbolo de libertação. No seu Caminho de perfeição, Santa Teresa de Ávila deixa-nos, talvez, um dos mais belos e e incisivos discursos sobre a pobreza: «A pobreza é um bem que contém em si todos os bens do mundo; ela confere um império imenso, torna-nos verdadeiramente donos de todos os bens cá de baixo desde o momento em que os faz cair aos pés». E São Francisco de Assis, no Pequeno Testamento, ditado em Siena, à pressa, a Frei Benedetto da Prato, aí por abril ou maio de 1226, poucos meses antes da sua morte, ocorrida em 3 de outubro desse mesmo ano, recomenda aos seus irmãos que amem sempre nossa senhora, a santa pobreza.

 

A Palavra de Deus desce, desce, desce,

Atravessa as nuvens,

Como chuva miudinha,

Cai num pedaço de chão,

Ou num pobre coração,

E adormece

Como o crescente

No ventre da farinha,

E cresce, cresce, cresce,

Até voltar a Deus, sua nascente.

 

A oração do humilde é pobre e pura,

Mas sobe, sobe, sobe,

Como um passarinho,

Atravessa as nuvens,

E deita-se de mansinho no coração de Deus,

Que presta atenção e cura

As nossas penas

Leves e escuras

E acaricia as nossas alegrias.

 

Atende, Senhor, as nossas preces de hoje

E de todos os dias.

 

António Couto



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