Papa aos artistas: «Sede aliados do Sonho de Deus»

Francisco reuniu-se ontem com duas centenas de artistas de todo o mundo para assinalar os «50 anos da inauguração da coleção de arte moderna» nos museus vaticanos. Aos criativos o papa lembrou a importância de interpretar "o grito silencioso" dos pobres, citou Anna Arenth e Simone Weil e lembrou o papel da arte para lá da tentação da "maquilhagem" atual

Leia, na íntegra, e em português, o discurso do Papa Francisco

Bom dia, sejam bem-vindos! Aqui tudo é arte, ali [aponta para os afrescos], vós, todos! Bem-vindos!

Obrigado por terdes aceite o meu convite. A vossa presença alegra-me, porque a Igreja sempre teve uma relação com os artistas que pode ser definida como natural e especial. É uma amizade natural, porque o artista leva a sério a profundidade inesgotável da existência, da vida e do mundo, mesmo nas suas contradições e tragédias. Esta profundidade corre o risco de se tornar invisível ao olhar de muitos saberes especializados, que respondem a necessidades imediatas, mas têm dificuldade em ver a vida como uma realidade multifacetada. O artista lembra a todos que a dimensão em que nos movemos, mesmo quando não temos consciência disso, é a do Espírito. A vossa arte é como uma vela que se enche de Espírito e faz continuar adiante. A amizade da Igreja com a arte é, portanto, algo natural. Mas é também uma amizade especial, sobretudo se pensarmos nos muitos trechos da história percorridos juntos, que são património de todos, crentes ou não crentes. Em memória disto, esperamos novos frutos também no nosso tempo, em clima de escuta, liberdade e respeito. As pessoas precisam destes frutos, de frutos especiais.

Romano Guardini escreveu que «o estado em que se encontra o artista enquanto cria é semelhante ao da criança e também ao do vidente» (L'opera d'arte, Brescia 1998, 25). Estas parecem ser duas comparações interessantes. Segundo ele, «a obra de arte abre um espaço no qual o homem pode entrar, no qual pode respirar, mover-se e lidar com as coisas e os homens, que se tornaram abertos» (ivi, p. 35). É verdade que, quando se trabalha na arte, as fronteiras afrouxam-se e os limites da experiência e da compreensão expandem-se. Tudo parece mais aberto e disponível. Adquire-se a espontaneidade da criança que imagina e a agudeza do vidente que apreende a realidade.

Sim, o artista é uma criança – não deve soar como uma ofensa -; significa que se move sobretudo no espaço da invenção, da novidade, da criação, de trazer ao mundo algo que nunca foi visto desta forma. Ao fazer isto refuta a ideia de que o homem é um ser para a morte. O homem deve aceitar a sua mortalidade, é verdade, mas não é um ser para a morte, mas para a vida. Uma grande pensadora como Hannah Arendt afirma que o próprio do ser humano é o de viver para trazer novidades ao mundo. Esta é a dimensão de fertilidade do homem. Trazer a novidade. Mesmo na fecundidade natural, cada filho é uma novidade. Abrir-se e transportar novidade. Vós, artistas, conseguis isto afirmando a vossa originalidade. Colocai-vos sempre em obra, como seres irrepetíveis como todos nós somos, mas com a intenção de criar ainda mais. Quando o talento vos auxilia, trazeis à luz o inédito, enriqueceis o mundo com uma nova realidade. Penso em algumas palavras que lemos no Livro do profeta Isaías, quando Deus diz: «Eis que estou fazendo uma coisa nova, agora mesmo está brotando: não o percebeis?» (43,19). E no Apocalipse confirma: «Eis que faço novas todas as coisas» (21,5). A criatividade do artista parece assim participar da paixão geradora de Deus, aquela paixão com a qual Deus criou. Sede aliados do sonho de Deus! Sede os olhos que observam e sonham. Não basta apenas olhar, é preciso também sonhar. Um escritor latino-americano disse que nós, pessoas, temos dois olhos: um para ver o que vemos e outro para ver o que sonhamos. E quando a pessoa não tem estes dois olhos, ou só parte de um ou do outro, falta alguma coisa. Ver o que sonhamos... A criatividade do artista: não basta olhar, é preciso sonhar. Nós, seres humanos, ansiamos por um mundo novo que não veremos plenamente com os nossos próprios olhos, mas desejamo-lo, buscamos, sonhamos com ele.

Vós artistas, então, tendes a habilidade de inventar novas versões do mundo. E é tão importante: novas versões do mundo. A capacidade de introduzir novidades na história. É por isso que Guardini diz que vós também os pareceis com videntes. Sois um pouco como os profetas. Sabeis olhar as coisas ao fundo e ao longe, como sentinelas que estreitam os olhos para perscrutar o horizonte e sondar a realidade para além das aparências. Nisto sois chamados a escapar ao poder sugestivo daquela suposta beleza artificial e superficial que hoje se difunde e que é muitas vezes cúmplice dos mecanismos económicos geradores de desigualdades. Essa beleza não atrai, porque é uma beleza que nasce morta. Não há vida ali, não atrai. É uma falsa beleza cosmética, uma maquilhagem que esconde em vez de revelar. Em italiano é chamada de "trucco" porque tem algo de enganoso. Vós estais distantes dessa beleza, a vossa arte quer atuar como uma consciência crítica da sociedade, tirando o véu do óbvio. Quereis mostrar o que vos faz pensar, o que vos torna vigilante, o que revela a realidade mesmo nas suas contradições, nos seus aspetos que é mais cómodo ou conveniente ocultar. Como os profetas bíblicos, vós confrontais-nos com coisas que às vezes nos incomodam, criticando os falsos mitos de hoje, os novos ídolos, os discursos banais, as armadilhas do consumo, as artimanhas do poder. Isto é interessante na psicologia, na personalidade dos artistas: a capacidade de ir além, ir além, na tensão entre realidade e sonho.

E muitas vezes o fazeis com ironia, o que é uma virtude maravilhosa. Duas virtudes que não cultivamos tanto: o sentido de humor e a ironia, devemos cultivá-las mais. A Bíblia está repleta de momentos de ironia, em que a presunção de autossuficiência, a prevaricação, a injustiça, a desumanidade são ridicularizadas quando revestidas de poder e às vezes até de sacralidade. Têm razão também em serdes sentinelas do verdadeiro sentido religioso, por vezes banalizado ou comercializado. Neste ser videntes, sentinelas, consciências críticas, sinto-vos aliados para tantas coisas que me são caras, como a defesa da vida humana, a justiça social, os últimos, o cuidado da nossa casa comum, sentindo-nos todos irmãos. Está-me no coração a humanidade do humano, a dimensão humana da humanidade. Por que também é a grande paixão de Deus. Uma das coisas que aproxima a arte da fé é o facto de ela se atrapalhar um pouco. A arte e a fé não podem deixar as coisas como estão: elas mudam-nas, transformam-nas, convertem, movem-nas. A arte nunca pode ser um anestésico; dá paz, mas não adormece as consciências, mantém-nas despertas. Vós, artistas, muitas vezes tentais sondar até mesmo o submundo da condição humana, os abismos, as partes escuras. Não somos apenas luz, e vós lembrai-nos disso; mas é preciso lançar a luz da esperança nas trevas da humanidade, do individualismo e da indiferença. Ajudai-nos a vislumbrar a luz, a beleza que salva.

A arte esteve sempre ligada à experiência da beleza. Simone Weil escreveu: «A beleza seduz a carne para obter permissão para passar à alma» (L'ombra e la grazia, Bolonha 2021, 193). A arte toca os sentidos para animar o espírito e faz isto através da beleza, que é o reflexo das coisas quando são boas, certas, verdadeiras. É o sinal de que algo tem plenitude: é então que dizemos espontaneamente: "Que belo!" A beleza faz-nos sentir que a vida é orientada para a plenitude. Assim, na verdadeira beleza, começamos a sentir a nostalgia de Deus. Muitos esperam que a arte volte mais à frequente beleza. Claro, como eu dizia, há também uma beleza fútil, uma beleza artificial e superficial, até enganosa, a da maquilhagem.

Mas creio que existe um critério importante de discernimento, o da harmonia. A verdadeira beleza, de facto, é um reflexo da harmonia. Na teologia – é interessante – os teólogos descrevem a paternidade de Deus, a filiação de Jesus Cristo, mas quando se trata de descrever o Espírito Santo: o Espírito é harmonia. Ipse harmonia est. O Espírito é quem cria a harmonia. E o artista tem algo desse Espírito para criar harmonia. Esta dimensão humana do espiritual. A verdadeira beleza, de facto, é um reflexo da harmonia. É, se assim posso dizer, a virtude operativa da beleza. É o seu espírito subjacente, no qual atua o Espírito de Deus, o grande harmonizador do mundo. Harmonia é quando há partes, diferentes umas das outras, mas que formam uma unidade, diferente de cada uma das partes e diferente da soma das partes. É uma coisa difícil, que só o Espírito pode tornar possível: que as diferenças não se tornem conflitos, mas diversidades que integram; e ao mesmo tempo essa unidade não é uniformidade, mas acolhe o que é múltiplo. A harmonia opera esses milagres, como no Pentecostes. Impressiona-me sempre pensar no Espírito Santo como aquele que permite que as maiores desordens ocorram - pensemos na manhã de Pentecostes - e depois cria a harmonia. O que não é equilíbrio, não, para criar harmonia precisa primeiro do desequilíbrio; harmonia é algo mais do que equilíbrio. Como é atual esta mensagem: estamos num tempo de colonização ideológica dos mídia e de conflitos dilacerados; uma globalização homogeneizadora coexiste com muitos localismos fechados. Este é o perigo do nosso tempo. Até a Igreja pode ser afetada. O conflito pode operar sob uma pretensão fingida de unidade; daí as divisões, as fações, os narcisismos. Precisamos do princípio da harmonia para habitar mais o nosso mundo e expulsar a uniformidade. Vós, artistas, podem ajudar-nos a abrir espaço para o Espírito. Quando vemos a obra do Espírito, que é criar a harmonia das diferenças, não as destruir, não padronizá-las, mas harmonizá-las, então compreendemos o que é beleza. A beleza é aquela obra do Espírito que cria harmonia. Irmãos e irmãs, que o vosso génio viaje por aqui!

Queridos amigos, estou feliz por ter este encontro convosco. Antes de me despedir, ainda tenho uma coisa a dizer, que está perto do meu coração. Gostaria de vos pedir que não esqueçais os pobres, que são os favoritos de Cristo, de todas as formas como hoje se é pobre. Até os pobres precisam de arte e beleza. Alguns experimentam formas muito duras de privação da vida; por isso, precisam ainda mais. Eles geralmente não têm voz para se fazer ouvir. Vós podeis interpretar o seu grito silencioso.

Obrigado e confirmo-vos a minha estima. Desejo que as vossas obras sejam dignas dos homens e mulheres desta terra, e que deem glória a Deus, que é o Pai de todos, e a quem todos procuram, também através da arte. E, finalmente, peço-vos, harmoniosamente, que rezem por mim. Obrigado.

Imagem: Vatican Media

Tradução Educris a partir do original em Italiano

Educris|24.06.2023

 



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