Opinião: E la nave va, por Cristina Sá Carvalho

Como explicou Galimberti, a cultura tecnológica, que a nova elite aprecia, nada contribui para a liberdade, a identidade, a natureza, a filosofia, a política, a religião, a história, tudo aquilo de que se nutre o futuro.

Os deuses e os filósofos foram generosos com os ocidentais e, por isso, as nossas raízes são um valor seguro de desenvolvimento. A procura da verdade, a democracia e a tolerância, herdados da Grécia e de Jerusalém, forjaram o conceito de uma sociedade coesa de que é preciso cuidar, e que cuida dos seus membros, num desejo de bem-comum e respeito pelo outro.

Viver ao nível do ideal é difícil e por isso se continuam a celebrar os armistícios, com os quais procuramos sanar as divergências e manter viva a lembrança da desgraça, a modo de prevenção. Mas coisas relativamente corriqueiras, como orçamentos e fiscalidades, mostram como ainda há um longo caminho a percorrer e este nosso milénio amanheceu cheio de sombras, "fins da história" e choques das civilizações, entenebrecendo a prosperidade e a paz. Depois, a fragilidade repetida das políticas tornaram-nos insensíveis ao óbvio, apesar da nossa longa gesta mostrar que as questões civilizacionais regressam, uma e outra vez, ameaçando a nave de afundamento ou entrega à barbárie.

Em 1969, Edgar Morin publicou um ensaio premonitório sobre a juventude ocidental, constituída classe social que existe para dar suporte à aniquilação da vontade de entrar na vida adulta, um vulcão de instabilidade e intensidade antropológica prestes a explodir sobre tudo o que achamos belo e necessário. Cinco anos depois, Jerome Bruner mostrou que o ocidente habita uma sociedade juvenilizada em que os adultos são incapazes de fornecer modelos de conduta identificatórios e educação. Sublinhou que este modo de (não) reconhecer a educação era o modo como se (não) reconhecia a cultura e os seus desafios. Erik Erikson deixou-nos como testamento o elenco das necessidades de saúde mental e a funcionalidade da pessoa que, na adolescência, exige encontrar um sentimento de profundo acordo ("solidariedade interna") com o auto-definição e ideais de algum grupo que afirma a identidade da pessoa. A mente do adolescente é ideológica: na devoção a algum credo ou doutrina, a juventude encontra tanto coerência interna como uma definição do mal, o que favorece o desejo e a capacidade de confiar em si mesmo e no futuro. A fidelidade a uma ideologia em associação com um papel significa que o jovem ganha satisfação emocional - aumenta a auto-estima - através da contribuição para a sociedade, devido ao desempenho desse papel, porque a ideologia está além do self, estimula a procura e a pertença (a oportunidade de des-centração). Quando os jovens se identificam com ideologias e histórias de instituições baseadas na fé (Igrejas), a identidade pode ser colocada num quadro de ligações sócio-históricas e referências às tradições e comunidades que transcendem qualquer tempo, proporcionando aos jovens um sentido de continuidade e coerência com o passado, o presente e o futuro.

A religião pode ser um importante contributo para o processo de criação de uma identidade segura por fornecer uma categoria normativa que orienta a consciência, ajudando a explicar as questões existenciais, por proporcionar um sentimento de pertença e por oferecer uma oportunidade institucionalizada para os indivíduos se comprometerem com uma visão do mundo. Aprender a moralizar os sistemas comportamentais de vinculação, emoção, cognição e volição é uma tarefa crucial do crescimento, fornecendo à pessoa uma motivação interior para pensar e actuar de acordo com um sentido de dever, um sentido de bem e de mal, de correcto e de errado. Acontece que nas nossas sociedades cultas, moderadas e reflectidas, a família, a escola e as Igrejas perderam essa capacidade de educar, de orientar e de proteger. A família está esgotada, desde dentro, pelo narcisismo, a relativização dos valores e a precariedade crescente dos laços românticos que forjam as uniões, e, desde fora, pelo desemprego, a competição no trabalho, a insignificância do valor da vida e as soluções fraturantes oferecidas aos dramas humanos.

A escola, que antes podia ser um abrigo contra o mal, resiste com mínimos de lucidez à negligência social, à burocracia, à sobrecarga de trabalho inútil e à insignificância daquilo que propõe face às exigências da vida. E no ocidente secularizado, a educação para a fé está pouco disponível e, por vezes, é oferecida com irrelevância e funcionalismo, reduzida a umas regras básicas para se ser bonzinho, ter sorte e apaziguar a divindade.

Assim, não deveria surpreender-nos que um número crescente de jovens sinta a convicção de que uma força do mal tomou conta da bondade da sua vida. A violência, o abuso e a negligência contribuem rapidamente para que sintam que não deveriam ter nascido e para a confusão perante as dúvidas morais e a ação da consciência. Com o tempo e a ausência de orientação, o comportamento torna-se mais perigoso – e que grande escola é a net – até que a patologia no funcionamento da consciência produz uma indefinição entre o bem e o mal. A escolha do mal vai ganhando poder, há a convicção de este nos ter tomado: começa o caminho tortuoso da busca dos reinos da maldade, a única satisfação decorre de se descrever como uma má pessoa. Cada queda leva ao desejo de imaginar outra oportunidade de cair.

E há, ainda, como Mons. Pietro Parolin disse perante as Nações Unidas, a fome. Na mente de um adolescente das inóspitas periferias urbanas, a insegurança, a frustração de não se sentir aceite na escola, uma casa vazia de ambições, ninguém com quem falar, se vincular, servir de modelo, é um experiência horrenda que a nossa civilidade de democracias modernas, antes de começar a reagir com pânico à possível existência de terroristas entre nós, deveria erradicar resolutamente.

Como explicou Galimberti, a cultura tecnológica, que a nova elite aprecia, nada contribui para a liberdade, a identidade, a natureza, a filosofia, a política, a religião, a história, tudo aquilo de que se nutre o futuro. Por isso, deveríamos agir perante o fenómeno de deriva existencial, assente na insegurança, que mobiliza os jovens de hoje, os quais vivem privados de um «nós» existencial e, por isso, desistem de viver, e as suas formas de produção da consciência - que nós, adultos, deveríamos ter formado - são ritos de crueldade e de violência. Às vezes, são ritos de extrema violência. Então, o barco civilizacional entrega-se ou afunda.

 

Cristina Sá Carvalho, diretora do Departamento de Catequese do SNEC

Página 1, da Rádio Renascença, 28.10.2014

imagem: tagina.es



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