Seguimos todos, apreensivos e preocupados, o evoluir entre nós e no mundo inteiro da pandemia. Os números de vítimas mortais e de infetados sobem. Mas esses números, a inspirar belos gráficos interativos, não são apenas estatísticas; são história de vidas dramáticas, muitas acabaram no mais profundo desamparo e solidão, sem uma palavra ou um gesto de consolo. Em cada número há um drama pessoal que não é notícia, há um rosto com nome, uma história única.
Em tempo de quarentena, a nossa Quaresma avança para a Páscoa. Celebraremos este ano uma páscoa insólita em nossas vidas, sem celebrações solenes comunitárias, sem sinais exteriores, totalmente despojada e silenciosa. Vimos na sexta-feira as impressionantes imagens do Santo Padre, só, na Praça de S. Pedro vazia, ao entardecer. Liturgia bela mas austera, sem massas nem festa, despojada, intensa. Assim será a nossa páscoa. Será para todos nós uma páscoa única e inesquecível. Na ausência de celebrações comunitárias, de gestos solenes, será uma páscoa existencial. Talvez mais autêntica e mais intensa. Na paixão do mundo, das famílias, de cada um de nós celebramos, na própria carne, a paixão de Cristo. A nossa Páscoa desloca-se do rito para o concreto da vida, do templo para os hospitais, para os lares, para as nossas casas. Desloca-se ou sempre aí esteve, e distraídos não erámos capazes de a identificar?... A solenidade do templo, agora silenciada, dá lugar à solenidade dos gestos arriscados e salvadores do humano. Somos desafiados a viver a laicidade entranhada e quotidiana da condição cristã. Aí onde estamos, em casa, nos hospitais, nos serviços públicos, no voluntariado que realizamos por imperativo de responsabilidade e de consciência. A Igreja reinventa-se no testemunho doméstico, corajoso e humilde, sem triunfalismos, dos seus leigos e leigas, dos seus pastores, dos seus religiosos e das suas religiosas.
Compreendemos melhor, em nossos dias, as palavras que as irmãs de Lázaro mandaram dizer a Jesus: «Senhor, o teu amigo está doente» (cf. João 11,1.45). Tantos são os doentes que aumentam no curso dos dias pela propagação da pandemia, e correm aos hospitais ou permanecem em suas casas. Vejamos os dramas em tantos lares de idosos, ou nas prisões, lugares propícios a uma maior propagação. Com as palavras do evangelho, todos nós gritamos: «Senhor os teus amigos estão doentes». Desconcerta-nos a resposta do Senhor; temos dificuldade em compreendê-la, pois o seu sentido mais profundo escapa-nos no imediato: «Essa doença não é mortal, mas é para a glória de Deus, para que por ela seja glorificado o Filho do homem». Mas a contaminação do vírus pode ser mortal, sobretudo naqueles que têm as defesas imunitárias mais vulneráveis. Neste jogo de palavras e sentidos, tipicamente joanino, Jesus quer levar-nos mais longe: a doença mais mortal é a falta de esperança, o desânimo, a falta de confiança. A doença mortal é não ser capaz tornar fecunda a própria vida em situações de morte.
No luto e no pranto das irmãs de Lázaro, Marta e Maria, vemos o luto e o pranto, sem consolo, de todas as famílias enlutadas. Aquelas duas irmãs podem chorar a morte de seu irmão, sem a companhia de Jesus, mas com a companhia de amigos, do povo onde moravam. Nas vítimas do vírus não há velórios. Os funerais são feitos à pressa no cemitério por razões sanitárias, com a presença de familiares reduzida ao mínimo e longe, sem a consolação da comunidade e os afetos dos amigos. Sem afetos, sem gestos, sem rituais de adeus, a perda torna-se insuportável e o luto duro e lento caminho. Na querida Itália, tanto pastores e como fiéis foram enterrados sem funerais e sem celebração da eucaristia. Estranha comunhão de destino. Custa e choca uma morte despersonalizada, assim, sem afetos, em total isolamento. É uma morte desumana, indigna e injusta. Muitas famílias, pelo mundo inteiro, atravessam o luto num profundo desamparo e solidão. A diocese de Bergamo, do norte de Itália, já perdeu... sacerdotes. É fácil, nestas circunstâncias, entrarmos numa lógica de culpabilização e de acusação, como Marta o faz em relação a Jesus: «Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido». Possam estas palavras dizer a dor de tantas famílias enlutadas, com agressividade, diante de Jesus.
Perante a morte de Lázaro, Jesus «comoveu-se profundamente e perturbou-se». Aproximando-se da sua sepultura «chorou». O Senhor chora hoje a perda de cada um dos seus amigos e dos seus irmãos. O Senhor chora hoje a morte de todos os Lázaros contemporâneos, chora com toda a humanidade, com todas as famílias que estão em luto, como o fez com Marta e Maria. Contemplamos, a partir do relato do evangelho de João, Cristo em lágrimas que connosco e por nós chora, nesta hora contemporânea de dor e de urgência. Nas lágrimas de Jesus são recolhidas e santificadas as lágrimas da humanidade inteira. O Senhor está connosco, silenciosamente. Ele é o Deus que vive connosco e para nós, que morre connosco em nossa morte e morre para nós, para podermos ressuscitarmos com Ele e vivermos uma vida plena. No meio da dor do luto e da morte, que alguns atravessam no silêncio e na solidão, conforta-nos as palavras que o Senhor hoje, de modo direto, nos diz: «Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em Mim, ainda que tenha morrido, viverá; e todo aquele que vive e acredita em Mim nunca morrerá».
Os tempos presentes são, verdadeiramente, apocalíticos. «Apocalíticos» num rigoroso sentido bíblico, que significa reveladores. São tempos reveladores da grandeza e da miséria de cada um de nós, das nossas famílias, das comunidades cristãs, das nações, e de toda a humanidade. Tempos reveladores da capacidade solidária e fraterna ou do egoísmo individualista. Os tempos presentes tiram todas as máscaras com que nos ocultamos e devolvem o verdadeiro rosto do humano, de cada um de nós. Estes nossos tempos convocam-nos à decisão, à ação, ao testemunho, à uma (re)invenção pessoal, familiar, comunitária. Deus fala-nos através dos sinais destes nossos tempos.
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