Domingo III do Tempo Comum: «Domingo da Palavra de Deus»
1. «Tu estás no meio de nós, Senhor» (cf. Jr 14,9). No momento em que se faz esta afirmação, há um livro que é posto no meio, levantado, ostentado, até que um leitor o incensa, o lê em voz alta e o beija, e se compreende que o que está no meio de nós é a Palavra. Quando as palavras escritas são lidas, quando existem fora do livro, então aclama-se: «O Senhor está aqui»! É uma realidade que chamamos, de um modo ou de outro, alguém. E relacionamo-nos com ela como se fosse realmente alguém com quem falar. Quando a Igreja se reúne constitui seu presidente Cristo.
2. Na liturgia da Igreja católica tem-se dado sempre cada vez mais relevo à centralidade da Palavra até aos dias de hoje, em que o livro que contém as Escrituras é processionalmente levado, apresentado ao povo, levantado no meio do povo, colocado sobre um ambão elevado, depois aberto e incensado. É incensado como uma pessoa, é lido publicamente em voz alta, e depois é beijado como se fosse uma pessoa. Nós não beijamos romances. Quando o povo se reúne e vive um momento de recolhimento, é trazido o livro com a Escritura que contém as palavras, é colocado no meio como se fosse uma pessoa, e fala. Todos escutam. Isto acontece na liturgia, mas acontece também na vida da Igreja católica, quando esta se reúne em modo sinodal ou conciliar.
3. É dito do Concílio de Éfeso (ano 431): «O Santo Sínodo, reunido na Igreja dita de Maria, constituiu Cristo seu presidente; foi colocado no trono o Evangelho, digno de veneração» (Cirilo de Alexandria, Opera, Paris, Aubert, 1938, VI, p. 251). Traz-se um livro, mas é como a alguém que as pessoas se dirigem. Cristo. Conversação. Confronto. Instrução.
4. Por ocasião do Concílio de Niceia II (ano 787), Tarásio de Constantinopla (730-806) escreveu ao Papa Adriano I: «Estando todos sentados, constituímos Cristo nosso presidente. No trono foi colocado o Santo Evangelho que impunha a todos os participantes: «Julgai com justo juízo!» (Conciliorum Omnium Collectio, Paris, Regia, 1644, XIX, p. 651).
5. Na abertura do Concílio II do Vaticano (ano 1962), foi entronizado o Evangelho, foi incensado, lido, beijado, para indicar que a presidência competia a Cristo. Mais uma vez, uma coisa a que nos dirigimos como a alguém. Uma coisa feita de palavras. «Nós temos a inteligência (noûs) de Cristo» (1 Cor 2,16). O produto final é um facto de linguagem, articula-se em palavras, mas funciona como uma inteligência de que se dispõe em forma de conversação. Ninguém pensaria certamente pôr-se a falar com Dostoievski enquanto lê o seu belo livro Crime e Castigo. Limitamo-nos a ler uma boa página de literatura, compreender o pensamento do seu autor e discuti-lo. Mas tudo acaba aí. Não é assim com o Evangelho. Cristo interpela-nos, e nós conversamos com Ele.
(Extratos de Rocco Malatacca, Tu parli come me. La Sacra Scrittura è un’intelligenza artificiale, Roma, Città Nuova, 2024, pp. 71-74).