Festa da Sagrada Família: «Não podemos viver sem Jesus»

Sir 3,2-6.12-14; Sl 128; Cl 3,12-21; Lc 2,41-52

1. Atravessamos ainda a Solenidade do Natal do Senhor, dado que esta Solenidade se prolonga durante oito dias (Oitava) até à Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, que se celebra no primeiro Dia de Janeiro.

2. O Natal do Senhor põe diante do nosso olhar contemplativo uma Família humilde e bela, Jesus, Maria e José, mas traz também consigo uma forte sensibilidade Familiar, tornando-se o tempo forte da reunião festiva das nossas Famílias. Estes dois acertos são importantes para se compreender a razão pela qual, no Domingo dentro da Oitava do Natal, a Igreja celebra a Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José.

3. Os textos da Liturgia são outra vez preciosos. O Evangelho põe no nosso coração o último episódio do Evangelho da Infância de S. Lucas, conhecido por «Encontro de Jesus no Templo» (2,41-52). Na verdade, o texto refere, logo a abrir, que «os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém pela Festa da Páscoa» (Lucas 2,41), certamente envoltos na intensa alegria com que os judeus piedosos acorriam ao Templo do Senhor nas três Festas de Peregrinação, que são a Páscoa, as Semanas ou Pentecostes e as Tendas, cantando: «Que alegria quando me disseram: vamos para a Casa do Senhor!» (Salmo 122,1). Eram oito dias de alegria filial e fraternal, uma vez que, na Casa do Senhor, todos eram e se sentiam verdadeiramente filhos e irmãos.

4. Mas este episódio sublime guarda ainda mais alguns sabores requintados. O texto é rigoroso. Todo o homem hebreu devia ir em peregrinação três vezes no ano ao Templo de Jerusalém, à presença de Deus, como se lê na Lei do Senhor (Êxodo 23,14-17). As três vezes coincidem com as três festas de peregrinação acima assinaladas. A Lei Santa obriga apenas os homens, mas o homem hebreu é inseparável da família, e leva-a sempre consigo. É o que sucede aquando do recenseamento, em que José viaja com Maria, sua esposa, em avançada gravidez, de Nazaré para Belém (Lucas 2,1-5). Assim também agora, José leva consigo Maria e Jesus. Ainda que Jesus, pelo facto de ter completado doze anos (Lucas 2,42), estava agora também obrigado por conta própria ao pleno cumprimento da Lei. Portanto, incumbia também sobre ele o dever de subir «três vezes» a Jerusalém, nas festas de peregrinação acima referidas, e de responder pessoalmente, sem a mediação dos pais, pelo cumprimento dos mandamentos de Deus, como ainda hoje se verifica na cerimónia pública chamada «bar mitswah» [= «filho do mandamento»], que os rapazes judeus piedosos realizam aos 12 anos.

5. Conforme a atenta descrição dos factos, Jesus, que tinha entrado na caravana sinodal (synodía) que partiu de Nazaré para Jerusalém, não se encontrava agora na mesma caravana que regressava a Nazaré (Lucas 2,44). Maria e José aperceberam-se de que Jesus «não fazia caminho com eles», ficaram preocupados e foram procurá-lo entre os parentes e conhecidos, mas não o encontraram (Lucas 2,45). Dá para entender que Jesus quase nunca se encontra onde e como seria de esperar, naquilo que podemos controlar, entre os parentes e conhecidos. Ele é a surpresa sempre nova, fora dos nossos domínios e raciocínios. É encontrado três dias depois no Templo, que é a Casa de Deus, num claríssimo aceno à Ressurreição ao terceiro dia e ao verdadeiro parentesco e identidade de Jesus, que acabamos por encontrar na Casa de Deus. Mais ainda: está sentado na cátedra (kathezómenos) no meio (en mésô) dos mestres (Lucas 2,46). Então Ele é o Mestre por excelência, e o seu lugar é sempre no meio de nós, a ensinar. Sinal importante para as restantes páginas do Evangelho e para nós: quando nos apercebermos de que Jesus não está a fazer caminho connosco, devemos ficar preocupados e ir à procura dele. Por outras palavras: não podemos perder Jesus. Podemos perder coisas e tralhas que nos atrapalham e nos sobrecarregam. Mas Jesus é a nossa vida. Se o perdemos, perdemo-nos! E tornamo-nos inaptos para dar uma mão a todos aqueles que se dirigem a nós e nos pedem: «Nós queremos ver Jesus!» (João 12,21). Se o perdemos da vista e do coração, não o temos para dar!

6. É agora compreensível que Lucas tenha encontrado aqui, na peregrinação de Nazaré ao Templo de Jerusalém e na idade de doze anos de Jesus, que representa a sua maturidade física, moral e religiosa, o enquadramento ideal para inserir as primeiras palavras ditas por Jesus neste Evangelho e as únicas nos chamados relatos da infância (Mateus 1-2; Lucas 1-2). Da parte de Jesus fica aqui uma fortíssima declaração. Ele afirma, e são as suas primeiras palavras, que ganham por isso particular relevância, que «é necessário para mim estar» (deî einaí me), e não simplesmente «ocupar-me», «nas coisas do meu Pai» (en toîs toû patrós mou) (Lucas 2,49). «Estar em» (einaí en) implica a vida, e não apenas simples atos de administração. Note-se então que Jesus não se ocupa simplesmente das coisas, dos negócios do Pai, mas está nas coisas do Pai. Expressão fortíssima, de intimidade e dedicação total, que implica a própria vida, e não um mero negócio de coisas exteriores. Neste sentido, podemos acostar aqui as palavras argutas que um velho rabino dizia acerca de um seu colega: «anda de tal modo ocupado com as COISAS de Deus, que até se esquece que ELE existe!».

7. Convenhamos que se trata de um esquecimento desastroso… Obviamente não é o caso de Jesus. E para Maria e José abre-se também aqui um caminho novo, o caminho da fé, uma vez que «não compreenderam a palavra (tò rhêma) que Ele lhes falou (elálêsen autoîs)» (Lucas 2,50). Vão ter então de continuar, como nós, a fazer o caminho sinuoso e belo da fé. Abre-se aqui, de forma proléptica, para Maria e José e para nós, um percurso semelhante ao das mulheres da Páscoa de Lucas 24,1-12: os acontecimentos têm lugar depois da festa da Páscoa (Lucas 2,43), e Jesus, que desaparece, não é logo encontrado pelas mulheres (Lucas 24,3.23-24). Sê-lo-á também depois de três dias (Lucas 24,21), durante os quais nos faz correr por todo o lado. Acerca de Maria, mesmo sem compreender, importa ainda reter aquela última anotação do narrador: «guardava (dietêrei) todas as palavras (pánta tà rhêmata) no seu coração» (Lucas 2,51). Vale para Maria e vale para nós. Mas acerca de Maria, vale ainda a pena vir atrás recuperar aquele dizer poético e musical com que a descreve o narrador escutando deslumbrada o discurso dos pastores: «Maria guardava (synetêrei) todas estas palavras, compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,19). Expressão belíssima que mostra bem a altura do crente verdadeiro, que não tem de compreender tudo já, mas guarda e vai compondo palavras e acontecimentos divinos numa bela melodia, como quem compõe uma música, um poema, embebida e embevecida de sentido. Sim, vê-se bem que, tal como Jesus, também Maria não se ocupa, de vez em quando, com as coisas de Deus. Ela está sempre nas coisas de Deus!

8. Dentro da temática da Família, o Antigo Testamento traz-nos hoje um extrato sapiencial retirado do Livro de Ben Sira (ou Eclesiástico) 3,2-6.12-14, e que nos convida ao amor dedicado aos nossos pais sempre, para que o Senhor ponha sobre nós o seu olhar de bondade.

9. O Salmo 128 é a música suave, de teor didático-sapiencial, que canta uma família feliz e nos mostra a fonte dessa felicidade: a bênção paternal do Senhor. «Felizes os que esperam no Senhor,/ e seguem os seus caminhos» é a bela litania em que o refrão nos faz entrar hoje.

10. Finalmente, o Apóstolo Paulo, na Carta aos Colossenses 3,12-21, exorta esposos, pais e filhos ao amor mútuo, mostrando ainda de que sentimentos nos devemos vestir por dentro e de que música devemos encher o nosso coração. Salta à vista que a misericórdia, a bondade, a humildade, a mansidão, a longanimidade, o amor, o perdão, são vestidos importantes para a festa, mas não se compram nem se vendem por aí em nenhum pronto-a-vestir. De resto, vê-se bem que andamos todos bem vestidos por fora, mas andamos muitas vezes nus por dentro! E é para aqui que aponta a incisiva exortação de S. Paulo. Nesta época de bastante consumismo e vestidos novos, convém que nunca nos esqueçamos de Deus, pois é Ele, e só Ele, que veste carinhosamente de festa o coração e as entranhas dos seus filhos.

António Couto



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