Domingo XVIII do Tempo Comum: «Senhor, dá-nos sempre deste pão!»

Ex 16,2-4.12-15; Sl 78; Ef 4,17.20-24; Jo 6,24-35

1. Continuamos, neste Domingo XVIII do Tempo Comum, a revisitar a página Evangélica de João 6, no caso de hoje, 6,24-35. Depois do episódio da CONDIVISÃO dos pães, Jesus afastou-se sozinho para o monte (João 6,15), e os seus discípulos entraram na Barca e atravessaram o Mar da Galileia, na direção de Cafarnaum (João 6,16-17). Em pleno Mar, foram apanhados pelo escuro, por um vento grande e pelo medo (João 6,17-20). Na verdade, iam sós, pois Jesus, que se tinha afastado para o monte, ainda não tinha vindo ter com eles. Mas vem, e com ele vem também a calma e a serenidade, e logo a Barca encontra rumo seguro para terra (João 6,21). Definitivamente, os discípulos de Jesus não podem andar sozinhos, sem Jesus. Quando o fazem, invade-os a noite, a tormenta, o medo.

2. Com os discípulos sozinhos na Barca, no mar, e o afastamento de Jesus para o monte (João 6,15), também a multidão ficou sozinha, mas leva mais tempo até se aperceber de que a sua verdadeira solidão é motivada pela ausência de Jesus. O escuro não os preocupa. Passam a noite a dormir descansadamente. Só no dia seguinte se apercebem da falta de Jesus, da falta que Jesus lhes faz, e vão à procura d’Ele (João 6,22-24). Encontram-no, e manifestam a confusão neles instalada, perguntando: «Rabbî, quando vieste para aqui?» (João 6,25).

3. Sem contemplações e com palavras duríssimas, Jesus desvenda logo ali, de forma clara e solene, a sonolência e incompreensão que os habita: «Em verdade, em verdade, vos digo: “Vós procurais-me, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e enchestes a barriga como animais (chortázô)”» (João 6,26). A comparação é forte e de denso sabor profético. O verbo usado é chortázô, derivado de chórtos, que significa «erva seca», «feno», «palha», termo já atrás encontrado, em João 6,10: «Havia muita erva seca (chórtos) naquele lugar». No dizer de Jesus, aquela multidão comeu como comem os animais. E, no fim, deitam-se a dormir. Até ao dia seguinte (João 6,22). A comida dos animais também é dom de Deus (Gn 1,30), mas eles não se apercebem, nem agradecem. Do mesmo modo, a multidão come e dorme. Não vê nem lê sinais. O alimento recebido não dá que pensar e que rezar! Não se apercebe que o alimento é dom de Deus, e que remete, portanto, para Deus. É natural, portanto que, depois da declaração fulminante atrás disparada sobre a multidão, Jesus acrescente no mesmo tom, agora ilocutivo: «Trabalhai, não pelo alimento que perece, mas pelo que permanece até à vida eterna» (João 6,27). Na ótica de Jesus, o pão atrás repartido não tem sentido em si mesmo, mas está lá para indicar o dom que Jesus quer dar à multidão: o pão do céu!

4. No mesmo sentido aponta o estranho dizer do narrador atrás anotado: «Havia muita erva seca (chórtos) naquele lugar» (João 6,10). Serve esta anotação para nos fazer ver que a função da muita erva que seca e passa é uma espécie de campainha que toca para nos acordar e levantar os nossos olhos para a Palavra de Deus que permanece para sempre. O que perece é a «erva» (ou «feno») (chórtos), seja ele qual for, que compramos com dinheiro e nos cala a boca e enche (chortázô) o estômago, fartando-nos como animais (cf. João 6,26). O que permanece é a Palavra que Deus diz, e que deve ser por nós ouvida, recebida e respondida. Mas esta disjunção entre a erva que seca e passa e a Palavra de Deus que não passa pode ainda ser mais bem explicitada se passarmos os olhos por outro texto de Isaías, que diz:

«(…) Toda a carne é erva (chórtos LXX), e toda a sua graça como a flor do campo. Seca a erva (chórtos LXX) e murcha a flor, mas a Palavra do Senhor permanece para sempre» (Isaías 40,6 e 8).

5. Equivocam-se todos os leitores que preferem ver na anotação daquele «havia muita erva naquele lugar» a evocação do Bom Pastor e o seu dizer no Salmo 23,2:

«O Senhor é meu pastor, nada me falta: num lugar de erva verde (tópos chlóês LXX) me faz repousar».

Nem sequer reparam que o vocabulário de João 6 e de Isaías 40 é diferente do vocabulário do Salmo 23. João 6 e Isaías 40 falam de erva seca ou feno (chórtos). O Salmo 23 fala de erva verde (chlóês).

6. O leitor instruído nas Escrituras, que já foi levado a folhear Isaías 40, e a ver a diferença entre a erva (ou palha ou feno) que seca e passa e a Palavra de Deus que não passa, e que também já folheou Isaías 55, e se deteve no significativo convite de Deus aos exilados: «Todos vós, que tendes sede, vinde às águas! Vós, que não tendes dinheiro, vinde! Comprai (agorázô LXX) cereal e comei! Comprai cereal sem dinheiro, e sem pagar, vinho e leite. (…) Ouvi-me, ouvi-me, e comei o que é bom!» (Isaías 55,1-2), estará cada vez mais apto a responder à estranha pergunta de Jesus: «Onde compraremos pão para que eles comam?». Está visto que não é num mercado qualquer. É na loja de Deus. Até o próprio Jesus vai comprar a essa loja, pois conjuga o verbo comprar na primeira pessoa do plural. Também este cenário transborda de pedagogia. Jesus que, no cenário anterior (João 4), desceu ao nível da mulher da Samaria para ganhar a mulher da Samaria, desce agora ao nível dos discípulos para ganhar os discípulos (João 6). A iniciativa é sempre de Jesus. Os discípulos tinham ficado na linha do comprar (João 4). É aí que Jesus os vai agora buscar, formulando a pergunta: «Onde compraremos pão, para que eles comam?» (João 6,5). Vimos atrás que o verbo «comprar» é estranho na boca de Jesus, mas usual na dos discípulos. Usando agora o verbo «comprar», e conjugando-o na primeira pessoa do plural, Jesus desce ao nível dos discípulos. Não, porém, simplesmente para dizer com eles, mas para os levar a dizer com Ele. Depois de muitos mal-entendidos e deserções, uma última interpelação de Jesus acaba por lhes dar a oportunidade de se dizerem com Jesus. A multidão é levada pelo interesse meramente material, tornando-se dependente, no mau sentido, de Jesus, por o verem apenas como uma fonte de rendimento. É duramente recriminada por Jesus. O leitor encontra, neste cenário, um jogo de muitas surpresas, de muitos olhares. E é o leitor o que mais tem a ganhar, se verdadeiramente entrar no jogo exigente do relato.

7. O que Jesus pretende é dar-nos o pão da vida (6,35). De facto, o pão é importante para alimentar a nossa vida terrena. Para isso, temos de o comer. Se não o comermos, temos fome e morremos, mesmo que tenhamos à nossa frente muitos cestos cheios de pão. Chegará, todavia, o momento em que nem o melhor pão nos pode salvar da morte. Jesus, que é o pão da vida, e é superior à morte, quer conduzir-nos para além da morte, dando-nos a vida eterna. A vida eterna não começa apenas depois da morte, mas bem antes com o início da nossa fé em Jesus. Como Jesus, também a nossa adesão a Jesus, a que chamamos fé, passa através da morte. No âmbito terreno, se pela fé aderimos a Jesus, já vivemos a vida eterna sem, todavia, a vermos ainda com nitidez. Como diz S. Paulo: «agora vemos de forma confusa como num espelho, mas depois veremos face a face» (1 Coríntios 13,12). Este depois, que traz o modo da visão clara, implica a morte e a ressurreição. Vida eterna significa vida plena, contacto direto com Jesus glorificado e com o Pai, vida que é tão somente vida, vida em plenitude, vida que não caminha para o fim, vida que não passa, vida ilimitada, indestrutível, tranquila, plena de sentido, de alegria e de harmonia. A vida com Jesus é a vida eterna. Diferente do maná, que os judeus trazem para a cena (6,31), mas que, sem deixar de ser um dom de Deus, era bem pouca coisa, e por pouco tempo.

8. Bem pouca coisa era o maná. Mas foi «visto» como sinal da providência de Deus em pleno deserto, como ensina a lição de hoje do Livro do Êxodo 16. Trata-se do maná chamado lecanora, que se encontra desde o Irão até ao Norte de África, portanto também no norte da Península sinaítica, que é granuloso e aquado, de dimensões bem reduzidas, minúsculas, do tamanho da semente do coentro [= cerca de 5 milímetros de diâmetro], de cor branca, e tem sabor a mel (Êxodo 16,31), produto bem conhecido dos beduínos. Trata-se, na verdade, da secreção produzida pelo tamarisco, chamado tamarix gallica ou tamarix-mannifera, após a picada de um inseto, o coccus manniparus, ou de dois, a trabutina-mannipara e o naiacoccus serpentinus.

9. Afinal, é bem pouca coisa o maná. Tal como os cinco pães e os dois peixinhos. Mas, quando se vê como um dom de Deus, essa pouca coisa é tanto! Eis como admiravelmente escreve o Livro da Sabedoria, quando fala do maná à luz de Deus: «nutriste o teu povo com um alimento de anjos, deste-lhe o PÃO do CÉU, com mil sabores: ele manifestava a tua DOÇURA (glykýtês, glicose). Assim os teus FILHOS QUERIDOS aprenderam, Senhor, que NÃO É A PRODUÇÃO DE FRUTOS que alimenta os homens, mas a tua Palavra que a todos sustenta» (Sabedoria 16,20-21.26). Aí está, claro, claríssimo, o indicador correto da compreensão da chamada «multiplicação» dos pães por Jesus. Não, Jesus não faz o papel de um qualquer produtor ou empresário que faz uma operação de multiplicação de bens, para satisfazer os desejos das pessoas, em termos de consumo e de mercado. Ele recebe, bendiz, distribui, reparte, partilha a Palavra de Deus, o Pão de Deus, fazendo nascer desta operação um mundo novo. Já todos devíamos saber, até porque está bem à vista, que aumentar a produção pode aumentar a ganância, mas não resolve o problema da fome ou da pobreza. Aumentar a produção não é nenhum milagre. O milagre reside na partilha! O nosso povo simples, que guarda sempre uma inteligência grata e penetrante, diz bem que «o pouco com Deus é muito, e o muito sem Deus é nada!». Admirável sabedoria e sintonia com o Evangelho de Jesus!

10. Jesus é a Palavra Viva, o Pão da Vida que, no meio de nós, manifesta a Doçura ou a Glicose de Deus (cf. Sabedoria 16,21). É sempre tendo este Jesus como referência e fonte de vida nova, que devemos abandonar a antiga vida oca e vã (mátaios), a inteligência obscurecida (skótos), a alienação (apallotrióô) e a ignorância (agnôsía) de Deus, o coração endurecido (pôrôsis), que geram insensibilidade, dissolução, impureza e avidez, e, em Jesus, renovar a nossa inteligência, compreensão e sentido da vida, revestindo-nos (endýô) de hábitos novos, que não se vendem ou compram no pronto-a-vestir (Efésios 4,17-24).

11. Sim, Ele está no meio de nós, mas não é nosso. Não é um sistema de produção ou de abastecimento. Ele é o Amor, a Alegria, a Vida Vivente e Eterna, Vida divina, dita zôê (João 6,33), ou Vida eterna, dita zôê aiônios (João 6,27), e não bíos ou psychê, vocábulos que dizem a nossa vida terrena e o seu sustento. Ele é o Céu e o Pão descido do Céu à nossa terra, para nos fazer viver felizes e nos elevar à sua condição de Filho, filhos no Filho. Está no meio de nós, mas não o podemos reter ou possuir. Ensina-nos bem Abraham Joshua Heschel que um dom é como um vaso cheio de afeto, que se quebra logo que o recebedor o comece a considerar como seu. Senhor Jesus, dá-nos sempre desse pão!

12. O Salmo 78 ensina-nos que a Bíblia é a longa história de uma salvação sempre oferecida, acolhida e, por vezes, rejeitada. Lembra-nos que as maravilhas de Deus não são para guardar no cofre da família, mas para passar, de mão em mão, de coração a coração, de pais para filhos, de geração a geração. A catequese é o anúncio de um acontecimento em carne viva que nos deve comprometer, e não de uma série de frias, enlatadas ou requentadas fórmulas ou teses teológicas. Glória a Deus para sempre!

António Couto



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