Domingo II da Quaresma: «Transfiguração: Uma lição para os discípulos»

1. Batizado no Jordão, tentado no deserto como Israel, mas Vitorioso, após o jejum preambular de preparação para o início da sua missão na Galileia, Jesus começou a executar o seu programa filial batismal que tem por meta a Cruz Gloriosa (Batismo consumado!) em que nós somos por Ele batizados com o fogo e com o Espírito Santo (sempre o luminoso texto de Lucas 12,49-50). Entre o Jordão e a Cruz Gloriosa, e imediatamente depois do anúncio da sua Paixão, Morte e Ressurreição, dados não compreendidos e contestados por Pedro e pelos outros discípulos (Mateus 16), aí está Hoje, Domingo II da Quaresma, o episódio da Transfiguração (Mateus 17,1-9) – Luz incriada e inacessível (Mateus 17,2; cf. Salmo 104,2; 1 Timóteo 6,16) que investe a Humanidade de Jesus: experiência momentânea da Ressurreição –, mediante a qual o Pai confirma o Filho na sua missão filial batismal, já iniciada, mas ainda não consumada, e confirma também os discípulos, ainda confusos e perplexos, em ordem à sua missão futura. Que a Transfiguração deve ser vista à luz da Ressurreição, fica bem patente no dizer das Igrejas do Oriente que chamam à Festa da Transfiguração, que se celebra no dia 6 de Agosto, «a Páscoa do verão». Mas está também claro na ordem taxativa dada por Jesus aos seus discípulos ao descer do monte: «A ninguém digais esta visão até que o Filho do Homem seja Ressuscitado dos mortos» (Mateus 17,9).

2. Jesus impõe, portanto, na nossa pauta musical, pausa e bemol. Não podemos dizer a Transfiguração do Senhor antes da Ressurreição do Senhor, ou fora dela. E não podemos, porque não sabemos. E não sabemos, porque é só o Ressuscitado que faz vir o Espírito Santo sobre nós. Veja-se a lição do Livro dos Atos dos Apóstolos, com Pedro a explicar assim o Pentecostes à multidão: «Este Jesus, Deus o Ressuscitou, e disto todos nós somos testemunhas. Exaltado à direita de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou-o, e é o que vedes e ouvis» (2,32-33). E o comentário preciso e precioso do narrador às palavras que Jesus acabava de proferir: «Isto disse do Espírito que haviam de receber os que tinham acreditado n’Ele, pois não havia ainda Espírito [para nós], porque Jesus ainda não tinha sido glorificado» (João 7,39). Pausa e bemol, porque importa que não sejamos nós a falar. Importa que seja o Espírito Santo a falar em nós. Toda a atenção ainda, neste sentido, para o grande dizer de Jesus: «Quando vos entregarem, não vos preocupeis com/ou como falais (laléô). Ser-vos-á dado naquela hora o que falar (laléô). Na verdade, não sois vós que falais (laléô), mas será o Espírito do vosso PAI que falará (laléô) em vós» (Mateus 10,19-20). Portanto, antes e fora da Ressurreição do Senhor, antes e fora do Espírito Santo sobre nós derramado, nós não podemos nem sabemos dizer sobre Jesus seja o que for que faça algum sentido na ordem do divino. Apenas podemos debitar alguns dados da ordem da história, da geografia, da sociologia…

3. O famoso texto de Mateus 17, que traz até nós o episódio da Transfiguração de Jesus, começa assim: «Seis dias depois, Jesus toma consigo Pedro e Tiago e João, seu irmão, e leva-os, à parte, a um monte alto» (17,1). O uso aqui do presente histórico dá o tom enfático apropriado para vincular o episódio da Transfiguração (17,1-9) ao Capítulo 16, que o precede imediatamente. A presença do artigo antes do nome de Pedro (tòn Pétron), mas não antes dos nomes de Tiago e João, serve para pôr em destaque o papel de Pedro desde o Capítulo anterior, a que se ajusta também a ligação cronológica «seis dias depois». Pedro reconheceu e confessou Jesus como «o Cristo, o Filho do Deus vivo» (16,16), mas opõe-se energicamente às palavras de Jesus (16,22), quando Ele anuncia que vai ter de sofrer muito e morrer (16,21). Pedro e os discípulos sabem bem o que é o sofrimento e a morte, mas não têm qualquer noção do que possa ser a ressurreição dos mortos. Marcos 9,10 observa que os discípulos «se interrogavam entre si sobre o que fosse ressuscitar dos mortos». Além disso, hão de ter eles pensado, para que nos serve um Messias que sofre e morre? Para isto, os discípulos não têm necessidade dele, pois sabem que hão de sofrer e morrer mesmo sem ele. Do Messias, os discípulos, como os judeus em geral, esperavam que viesse pôr fim ao sofrimento e à morte, e que os viesse libertar, a eles e a todos, dessa triste realidade. 

4. É tendo tudo isto em conta, sobretudo o desarranjo e incompreensão de Pedro (16,22) e o desconsolo e tristeza dos discípulos (17,23), que Jesus «toma consigo» um grupo de discípulos, e os (autoús) faz subir consigo, e é transfigurado diante deles (autôn); é a eles (autoîs) que aparecem Moisés e Elias; a nuvem luminosa envolveu-os (autoús), e a voz que sai da nuvem dirige-se a eles diretamente, pois fala de Jesus em 3.ª pessoa, e apela a que o escutem; amedrontados e caídos por terra, é Jesus que os (autôn) toca, e os manda levantar, e lhes (autoîs) ordena que nada digam acerca desta visão antes de Ele ressuscitar dos mortos. Pela coleta de dados que acabámos de fazer, é fácil compreender que são os discípulos que estão no centro da cena, e que tudo é feito para eles. Na verdade, dada a sua incompreensão e enérgica reação no Capítulo anterior, torna-se necessário clarificar com eles sobretudo três aspetos: 1) contribuir para que possam vir a ter uma noção mais concreta acerca da ressurreição, vendo Jesus na sua glória celeste falando com personagens celestes; 2) ouvir e aprender do próprio Deus que Jesus é o seu Filho, o Amado; 3) predispor-se a escutar Jesus sem reservas, o que significa, entre outras realidades, escutar as palavras de Jesus acerca do seu sofrimento e morte, e não opor-se a elas.

5. A tradição situa o «monte alto», que abre o episódio da Transfiguração (17,1), no Tabor, um monte de forma arredondada que se ergue nos seus 582 metros no meio da planície galilaica de Jesrael ou Esdrelon. No sopé do Tabor ainda hoje se encontra a aldeia palestiniana de Daburiyya, cujo eco evoca a personagem bíblica mais importante desta região, a profetisa Débora. As Igrejas do Oriente conhecem este episódio da Transfiguração por «Metamorfose» (metamórphôsis), a partir das palavras do texto: «E transformou-se (metemorphôthê) diante deles [= Pedro, Tiago e João], e resplandeceu o seu rosto como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz» (17,2). O branco é a cor divina e celeste. E a luz é o seu vestido, conforme o dizer solene do Salmo 104,2: «Vestido de Luz como de um manto». E, nesse cone de luz, o Apóstolo exorta-nos: «Caminhai como filhos da luz», e lembra-nos que «o fruto da luz é toda a bondade, justiça e verdade» (Efésios 5,8 e 9). No contexto da Transfiguração de Jesus, é importante, a aparição de Moisés e Elias, cuja morte se verificou há muito tempo, não estando por isso acessíveis à visão humana comum. Só podem ser vistos se aparecerem, se se fizerem ver, se se apresentarem aos homens a partir da sua existência em Deus. Os discípulos veem que estas figuras celestes falam com Jesus transfigurado, e podem começar a descobrir a realidade que pode estar por detrás das palavras antes incompreensíveis de Jesus quando Ele anuncia a sua Ressurreição. E mais uma vez Pedro se equivoca, pois sugere tendas terrenas para figuras celestes!

6. Marcos 9,6 e Lucas 9,33 anotam criteriosamente que Pedro, ao fazer semelhante sugestão, «não sabia o que dizia». Não sabia, porque ainda não tinha sido batizado com o Espírito Santo e com o fogo; quando o for, saberá também ele, discípulo fiel, batizado e confirmado, levar por diante a missão filial batismal em que foi investido, e dará testemunho até ao sangue. Antes ainda desse final, Pedro recorda o privilégio de terem sido testemunhas oculares da Glória de Jesus sobre o monte santo, e que ouviram aí a voz vinda do Céu, do Pai, a declarar Jesus «o Filho meu, o Amado meu» (2 Pedro 1,16-18). A Ressurreição é a Transfiguração tornada permanente, eterna. Todos os batizados e confirmados estão destinados à mesma Ressurreição / Transfiguração do Senhor: a Divinização.

7. A lição do Livro do Génesis (12,1-4) abre diante de nós o caminho novo já apontado no Evangelho: «VAI para ti (lek-leka), do teu país, da tua parentela e da casa do teu pai, para o país que Eu te farei ver» (Génesis 12,1). Com este imperativo, Deus põe em marcha Abraão e a inteira história da salvação que se lhe segue. «E Abraão partiu» (Génesis 12,4). Com este gesto esplendorosamente mudo, Abraão comprometeu-se e comprometeu-nos a nós também. Abraão arrasta consigo a história toda. Ele parte (e a história com ele) em direção a Jesus Cristo, que é a sua verdadeira descendência (Gálatas 3,16). Abraão viu-O e saudou-O de longe (Hebreus 11,13), cheio de alegria (João 8,56). A sua meta é clara e define e alumia a sua estrada que até lá conduz e em que caminha Abraão, fazendo assim dele também antecipadamente «filho da Luz». Abraão não se despede do passado, e faz ao futuro um aceno de esperança e de alegria. São tão simples, tão novos e tão decididos os gestos e os passos de Abraão! Talvez devamos mesmo seguir o conselho de Isaías, o profeta: «Olhai para Abraão, vosso Pai» (Isaías 51,2). E partir com ele DAQUI, do provisório, do preliminar, do penúltimo, ao encontro de Jesus Cristo Ressuscitado.

8. Movido pela Palavra de Deus, único verdadeiro motor da sua vida, Abraão parte do seu país e da casa do seu pai. Mas não se trata apenas de uma viagem no mapa. Não é meramente da ordem da geografia. É sobretudo da ordem suprema da pessoa e da liberdade. Note-se bem que o texto não diz simplesmente: «VAI (lek) do teu país», mas «VAI para ti (lek-leka) do teu país», especialíssima locução que a gramática hebraica classifica como «dativo ético». Viagem diferente, que implica um trabalho de casa, dentro da própria casa, dentro da própria pessoa, trabalho de libertação para a liberdade, até nos fazermos verdadeiramente livres, abertos, disponíveis, acolhidos, acolhedores, abençoados, abençoadores.

9. É ainda nesse sentido que Abraão é chamado «o hebreu» (ha-‘ibrî) (Génesis 14,13). ‘ibrî reporta-se a ‘eber, que significa «margem». Ele vem da «outra margem do Rio» (Josué 24,3). Mas reporta-se também a ‘abar, que significa «passar», «atravessar», «ir além de», «converter-se», «abrir uma passagem», «transferir», o que implica um movimento ao mesmo tempo objetivo e subjetivo, ativo e passivo. Abraão é o homem que atravessa fronteiras, mas é sobretudo o homem que se atravessa a si mesmo. Viajante transitivo e intransitivo.

10. E o Apóstolo testemunha (2 Timóteo 1,8-10) que o mesmo Deus que chamou Abraão, também nos chamou a nós (2 Timóteo 1,9). Por pura graça. Para dar testemunho do Evangelho e participar na sua vida. Por isso, tal como Abraão, também Paulo saiu do passado e correu para o futuro (Filipenses 3,13). E quer agora empenhar nesta «corrida» o seu discípulo Timóteo. E a nós também. Contra a contínua tentação de querermos ficar AQUI, no provisório, no preliminar, no penúltimo, como Pedro (Evangelho) e todos os discípulos (Atos dos Apóstolos 1,11).

11. Enfim, o Salmo 33, que hoje cantamos, é um verdadeiro «canto novo» (shîr hadash) a fazer vibrar as fibras do nosso coração. Mas é também música sem palavras (terû?ah) (v. 2), jubilação, exultação, lalação de radical confiança da criança que em nós sorri e dança, porque Deus vela por nós. Comenta Santo Agostinho: «Já sabes o que é o canto novo: um homem novo, um canto novo». 

António Couto

 



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