Domingo I da Quaresma: «No deserto a céu aberto»

Gn 2,7-9; 3,1-7; Sl 51; Rm 5,12.17-19; Mt 4,1-11

1. Só secundariamente a Quaresma «prepara» para a Ressur­reição do Senhor. Na verdade, todos os «Tempos» e todos os Domingos do Ano Litúrgico, portanto, também a Quaresma e os seus Domingos, estão depois da Ressurreição e por causa da Ressurreição. E é só sob a intensa luz do Senhor Ressusci­tado com o Espírito Santo (Batismo consumado: Lucas 12,49?50) que a Igreja, e cada um de nós, pode celebrar autenti­camente a sua fé, proceder à correta «leitura» das Escri­turas e encetar a «caminhada» quaresmal. Neste sentido, todos os batizados são chamados a refazer com Cristo bati­zado o seu programa batismal, cujo conteúdo e itinerário conhecemos: desde o Batismo no Jordão, passando pela Trans­figuração no Tabor, até à Cruz eà Glória da Ressurreição (Batismo consumado!), escutando e anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho do Reino e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as «obras» do Reino (Atos dos Apóstolos 10,37-43: texto emblemático). Por sua vez, os catecúmenos, acompanhados sempre pela Assembleia dos batizados, «pre­param?se» intensamente para a Noite Pascal Batismal, início e meta da vida cristã. Assim, a Igreja Santa, toda Batizada e Crismada, sabe bem que é dali, daquela Cruz Santa e Gloriosa, e da enxurrada de Vida Nova, Ressuscitada, e da dádiva do Espírito que dela jorra, que nos é oferecida a «consumação» (teleíôsis) (cf. João 19,28-30), o cumprimento, a chegada à perfeição da nossa vida, deste segmento de tempo que, por graça, nos é dado viver.

2. O Evangelho deste Domingo I da Quaresma oferece-nos o episódio das Tentações de Jesus, conforme o relato de Mateus 4,1-11. Note-se bem que o episódio imediatamente anterior (Mateus 3,13-17) nos apresenta Jesus que vem da Galileia ao Jordão, à região de Bêthabarah, [= Casa da Passagem] (João 1,28), um pouco a norte de Jericó, para ser batizado por João, que a esse ato pretende opor-se, dado que, no seu entender, é ele, João, que deve ser batizado por Jesus, e não o contrário. Aceita, no entanto, a explicação dada por Jesus de que assim deve ser para ser cumprida toda a justiça, isto é, para ser feita ou cumprida a vontade de Deus. Ao sair da água, Jesus vê o Espírito de Deus descer sobre Ele, e ouve-se uma voz vinda do Céu, de Deus, do Pai, que faz uma declaração pública: «Este é (houtós estin) o Filho meu, o Amado, em quem me comprazo» (Mateus 3,17). É importante apercebermo-nos de que, em Mateus, este dizer do Pai se dirige a nós, revelação ou proclamação a nós feita, pois a voz do Céu faz-se ouvir em 3.ª pessoa: «Este é o Filho meu, o Amado, em quem me comprazo». De modo diferente, em Marcos e em Lucas, o dizer do Pai dirige-se a Jesus, pois a voz do Céu faz-se ouvir em 2.ª pessoa: «Tu és (sù eî) o Filho meu, o Amado, em ti me comprazo» (Marcos 1,11; Lucas 3,22). Importa, pois, salientar desde já esta vinculação do Pai e do Filho, bem como a sua proximidade e intimidade. Do Pai, que apresenta o seu Filho e declara o seu amor e comprazimento nele. Do Filho, que não age por conta própria, mas faz a vontade do Pai.

3. Bem vistas as coisas, Jesus vem da Galileia ao Jordão para ser batizado por João (Mateus 3,13-17), e regressa pouco depois à Galileia para dar início à sua vida pública (Mateus 4,12-17). Entre a vinda da Galileia e o regresso à Galileia, Mateus introduz o chamado episódio das «tentações» de Jesus (Mateus 4,1-11). O texto começa por dizer que Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, para ser tentado (peirázô) pelo diabo (diábolos), e acrescenta que Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e que no fim teve fome (Mateus 4,1-2). Ao contrário do que se possa pensar, este início do texto não tem carga negativa. Basta pensar que Jesus é conduzido pelo Espírito. Ir para o desertoser tentado e ter fome são modos de dizer que Jesus faz sua a história de Israel. No deserto, o povo de Israel sucumbiu à tentação e à fome. Indo ao deserto, Jesus assume a história do seu povo, mas vence onde Israel sucumbiu. E ao mesmo tempo prepara com o jejum a missão que está para iniciar na Galileia. Voltemos ao facto da fome de Jesus, pois é neste ponto preciso que se aproxima «o Tentador» (ho peirázôn). Este vocábulo só é usado aqui e em 1 Tessalonicenses 3,5, e define a função específica do diabo, o seu ofício ou afazer, que não consiste em pôr os homens à prova, mas em incitá-los ao pecado, que consiste em retirar a Deus a condução da ação para a atribuir ao diabo. No caso de Jesus, o Filho Amado de Deus, a tentação do diabo consiste, portanto, em procurar desfazer o nó do Amor mútuo que une o Pai e o Filho, em desvincular Jesus de fazer a vontade do Pai, de obedecer ao Pai, atitude própria da sua vocação de Filho obediente, para usar a sua autoridade de Filho e passar a agir por conta própria. A tentação é subtil, e pretende insinuar que Jesus pode prover à sua própria existência, de forma autónoma, sem precisar de depender exclusivamente do Pai. Jesus, o Filho de Deus, tem fome. De que estás à espera, diz o diabo, e sugere: «Se és o Filho de Deus, diz que estas pedras se transformem em pão» (Mateus 4,3). Vê-se a subtileza da tentação: transformar pedras em pão não é uma tentação para qualquer um; é uma tentação apenas para alguém que pode fazer isso! Jesus recusa a tentação diabólica. E fá-lo, não respondendo de forma autónoma, mas citando a Palavra antiga de Deus: «Nem só de pão vive o homem, mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus» (Deuteronómio 8,3). Com esta resposta, Jesus mostra-se como Filho de Deus, mas também filho da Escritura.

4. Na segunda vaga da tentação, parece que o diabo leva a sério a resposta de Jesus, faz também ele uso da Palavra de Deus, e sugere mais ou menos isto: «Uma vez que queres viver da Palavra de Deus, e te abandonas na sua providência, então mostra lá que levas a sério a Palavra de Deus que diz que os anjos te seguram nas suas mãos, e atira-te daqui abaixo». O diabo citou o Salmo 91,11-12, mas interpreta erradamente as palavras citadas, como se alguém fosse pôr propositadamente a sua vida em risco, e ao mesmo tempo exigisse a Deus que o salvasse! Pura provocação. Por isso, Jesus responde de forma liminar: «Não tentarás o Senhor, teu Deus», citando o Deuteronómio 6,16. O diabo faz um uso literalista do Salmo 91. Jesus responde-lhe com um procedimento que podemos chamar exegese teológica: claro que é bom confiar em Deus, mas é preciso vigiar para que esta confiança não seja pervertida pela tentação de se poder pôr o poder de Deus ao serviço da ambição religiosa do homem.

5. Na terceira tentação, o Tentador renuncia à Escritura, deixa de chamar a Jesus «Filho de Deus», abandona todos os disfarces, e mostra-se tal como é: o «príncipe deste mundo» (João 12,31; 14,30; 16,11) ou o «deus deste mundo» (2 Coríntios 4,4), e promete «todos os reinos do mundo e a sua glória» (Mateus 4,8). O preço a pagar é prostrar-se diante do Tentador e adorá-lo (Mateus 4,9). Esta terceira tentação não provém de nenhuma necessidade fundamental do homem (como a primeira), nem de uma falsa visão de Deus (como a segunda). A tentação abdica completamente de Deus, corta radicalmente com Deus, e tem em conta apenas o que este mundo fechado pode oferecer: poder, influência, sucesso, riqueza. Completo fechamento a Deus. A resposta de Jesus é taxativa, citando agora Deuteronómio 6,13: «Ao Senhor, teu Deus, adorarás; só a Ele prestarás culto» (Mateus 4,10).

6. É fácil agora compreender que todas as tentações diabólicas (as duas primeiras explicitamente) pretendem atingir Jesus na sua condição filial batismal de «Filho de Deus», tentando separá-lo de Deus e dos irmãos, não fosse o diabo, diá-bolos, o máximo «divisor» ou «separador» comum. É, portanto, na sua condição de batizado, isto é, de Filho de Deus, que Jesus é tentado. Na verdade, todas as tentações, as de Jesus Cristo como as nossas, começam sempre da mesma maneira: «Se és o Filho de Deus…». Atente-se em como se repete nos mesmos termos sob a Cruz (Mt 27,39-44), também por três vezes, em três vagas sucessivas, sendo aqui os tentadores os transeuntes, os chefes dos sacerdotes com os escribas e os anciãos, e depois os ladrões crucificados com Jesus. Portanto, sempre. Do Batismo até à Morte, a tentação visa afastar-nos de Deus e da sua providência, e pôr-nos ao serviço do «deus deste mundo» (2 Coríntios 4,4; cf. João 12,31; 14,30; 16,11). Veja-se a última oferta do «Tentador» do Evangelho de hoje: «todos os reinos deste mundo» em troca do afastamento de Deus, de um mundo sem Deus (Mateus 4,8-9). E a resposta contundente de Jesus: «Vai-te, Satanás!» (Mateus 4,10). Jesus, o Filho de Deus, permanece sempre vinculado ao Pai, nunca deixando de fazer a vontade do Pai. Mesmo quando responde ao «Tentador», não o faz com palavras próprias, mas unicamente com a Palavra de Deus, que cita sempre a propósito. Filho de Deus e filho da Escritura. 

7. Este episódio começa com Jesus a ser conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado. Com esta ida ao deserto, lugar exposto à tentação, Jesus reclama como sua a história de Israel. Com duas diferenças: 1) na história de Israel, o Jordão vem depois do deserto; na história de Jesus, o deserto vem depois do Jordão; 2) no deserto, Israel cai em inúmeras tentações; Jesus, porém, vai sair vencedor das tentações. O deserto é sempre um lugar provisório e preliminar, preambular, longe do que é nosso, mas onde se está «a céu aberto» com Deus, e se pode começar a ver surgir a «obra» nova de Deus (Isaías 43,19). Lugar ideal, também com a nota do jejum, para Jesus preparar a missão que está para iniciar na Galileia. No deserto não há pontos de referência nem marcos de sinalização. Só podemos prosseguir, se tivermos um bom guia. E o andamento do texto lembra outra vez Israel, mas também Moisés e Elias, que experimentaram no deserto a condução de Deus. Este deserto é então também uma metáfora da nossa vida como lugar onde estamos sujeitos à tentação, mas onde devemos saber escutar a «Voz do fino silêncio» de Deus e ler o mapa da sua Palavra. Como Jesus, o Filho de Deus e filho da Escritura.

8. Leem-se também hoje dois bocadinhos do Livro do Génesis 2,7-9 e 3,1-7. O homem de todos os tempos e de todos os lugares, nós também, modelado pelas mãos puras de Deus e acariciado com um «beijo de Deus» – é assim que os rabinos interpretam aquele sopro de Deus no rosto do homem (Génesis 2,7) –, cedeu à tentação, afastando-se do Bom Deus Criador e aderindo aos «deuses deste mundo», aqui simbolizados na cobra, animal que anda rente à terra ou por dentro da terra, a grande deusa-mãe, comungando da sua vitalidade, e tornando-se, por isso, em símbolo do culto da fertilidade, fecundidade e vitalidade em todo o Médio Oriente Antigo e ainda hoje no nosso mundo: vejam-se os painéis que assinalam as portas das farmácias, ostentando uma cobra enrolada numa árvore verde! Está diante de nós o orgulho do homem de todos os tempos, que não quer ser dependente e contingente, que é a condição da criatura boa que se recebe sempre do Deus Criador, mas quer ser autónomo e independente, senhor tirânico e prepotente, como os deuses dos mitos mesopotâmicos ou gregos. Admirável contraponto do Evangelho de hoje.

9. No grande texto da Carta aos Romanos 5,12-19, S. Paulo repete que somos pecadores, pois todos nos podemos rever em Adão como em um espelho. Adam é ao mesmo tempo um nome singular e coletivo, que pode ser traduzido por Adão ou por Humanidade. De acordo com a personalidade corporativa que envolve o povo bíblico, Adam é um nome singular, epónimo da humanidade, e é ao mesmo tempo a Humanidade que se revê no seu epónimo. Mas agora, insiste Paulo, é tempo de vermos a nossa vida à luz de Cristo, com Cristo, em Cristo, para Cristo. Fixamente, para não nos perdermos no caminho filial, fraternal, batismal. Onde abundou o pecado, superabundou a graça. É esta a Sabedoria que Paulo nos transmite.

10. Cantamos hoje o Salmo 51, a súplica penitencial por excelência, que constitui a ossatura espiritual de Agostinho, de Charles de Foucauld, de Joana D’Arc, que inspirou a pena de muitíssimos Padres da Igreja, e ecoa na música de Bach, Lulli, Donizetti, Honegger… Hoje é a nossa vez de nos sentarmos um pouco a trautear esta melodia que nos atravessa e nos põe de pé. Está aqui a letra e a música do homem, de qualquer homem, de qualquer tempo, seja ele quem for, de que raça for, de que religião for. Deixo aqui, a fechar, as palavras altíssimas da grande mística muçulmana do século VIII, Rabi?a, de seu nome: «Um homem disse a Rabi?a: “Cometi muitos pecados e muitas transgressões; se me arrepender, Deus perdoar-me-á?”. Disse Rabi?a: “Não. Tu arrepender-te-ás se Ele te perdoar”» (I detti di Rabi?a, XII, 2).

 

António Couto



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