Domingo VII do Tempo Comum: «Oh Sublime Ciência das Alturas»

Lv 19,1-2.17-18; Sl 103; 1 Cor 3,16-23; Mt 5,38-48

1. Neste Domingo VII do Tempo Comum, continuamos a escutar nas alturas, em alta-frequência e alta-fidelidade, o que não se pode escutar cá por baixo, em onda média, no meio do barulho e do entulho. E soam hoje, aos nossos ouvidos atónitos, no nosso coração atónito, as duas últimas das «seis antíteses» proferidas por Jesus no SERMÃO da MONTANHA, e referentes à lei de talião e ao amor ao próximo (Mateus 5,38-48).

2. Diz a conhecida «Lei de talião», do latim taliotalis [tal, igual] ou ius talionis [lei do corte ou contusão], assim formulada no Livro do Êxodo: «vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, contusão por contusão» (Êxodo 21,24-25). Formulação semelhante desta Lei já se encontra, de resto, nos parágrafos 196 e 197 do famoso código de Hammurabi, que remonta mais ou menos a 1700 anos antes de Cristo. E, ao contrário do que se diz habitualmente, esta Lei não representa a barbaridade, mas um avanço civilizacional, pois assenta, não na multiplicação desenfreada da vingança e da violência, mas na sua contenção, pois condena o agressor a receber apenas a sanção igual àquela que ele provocou à vítima.

3. Bem diferente é a chamada Lei da vingança desenfreada, traduzida, por exemplo, no famoso «Cântico da espada» de Lamec, que se expressa assim no Livro do Génesis: «Eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. Sim, Caim é vingado sete vezes, mas Lamec setenta e sete vezes!» (Génesis 4,23-24). O que se vê aqui é que Lamec respira uma vingança irracional, um ódio irracional. O que ouvimos nas alturas da Montanha é que Jesus respira e ensina um amor irracional, até ao paroxismo, até ao absurdo e à estupidez (!), dissolvendo completamente os ódios, vinganças e violências do «Cântico de Lamec», mas ultrapassando também a fria simetria da «Lei de talião». «Ouvistes o que foi dito: “Olho por olho, dente por dente”. Porém, eu digo-vos: “Não resistais (anthístêmi = levantar-se contra) ao homem mau. E exemplifica: se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda; se alguém te levar ao tribunal para ficar com a tua túnica (chitôn), oferece-lhe também o manto (himátion); se alguém te forçar a acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas!”» (Mateus 5,38-41). A milha (mílion) romana media mil passos, o equivalente a 1478,5 metros.

4. Pura assimetria. Levantar-se contra o homem mau, ou fazer-lhe frente, implica aumentar a violência e o mal. Portanto, ao mal não se responde com o mal, «não se paga (ou retribui) o mal com o mal» (Romanos 12,17; cf. 1 Tessalonicenses 5,15); «não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem» (Romanos 12,21), sentencia e recomenda S. Paulo, que sabe bem que fazer o mal seja a quem for, inclusive a quem acaba de nos fazer mal, significa sempre perder, ser vencido pelo mal, e não ser vencedor do mal. Ser vencido pelo mal significa que o mal manda em mim, me domina, em vez de ser eu a dominar o mal. Para fazer ver melhor esta realidade e para a fazer entrar pelos nossos olhos dentro, Jesus opera uma espécie de redução ao absurdo, quando refere que a quem nos bater numa face se deve oferecer também a outra, que a quem nos quiser levar a túnica devemos oferecer-lhe também o manto, e a quem nos obrigar a fazer um serviço de transporte por uma certa distância, devemos até fazer o dobro. Na cultura do Médio Oriente Antigo, em que a Bíblia se insere, esbofetear alguém constituía uma afronta grave à própria dignidade da pessoa (cf. Job 16,10; Lamentações 3,30). Alguns profetas, como Miqueias e o Servo do Senhor, de Isaías, sofreram este tipo de insulto (cf. 1 Reis 22,24; 2 Crónicas 18,23; Isaías 50,6). E Jesus também (cf. Mateus 26,67). Face a este tipo de insulto, Jesus propõe, não a retaliação, mas o perdão excessivo! No mesmo mundo do Médio Oriente Antigo, as pessoas usavam habitualmente um traje exterior, que é uma espécie de manto, que servia também de resguardo ou cobertor durante a noite, e uma peça de vestuário por baixo, que é a túnica. Ora, se a quem nos quiser tirar a túnica, lhe dermos também o manto, ficamos nus e expostos ao frio e à vergonha. Quanto ao serviço de transporte, as pessoas eram muitas vezes requisitadas pelas forças de ocupação, a fazer estes serviços: veja-se o caso de Simão de Cirene (Mateus 27,32).

5. E Jesus continua em alta sintonia, altíssima alegria, altíssimo amor, estendendo o amor para além dos círculos restritos das nossas simpatias, até aos nossos próprios inimigos! Amar os inimigos, em vez de os odiar (cf. Mateus 5,43-44), é mais uma imensa provocação. O ódio aos inimigos não aparece em nenhum mandamento do Antigo Testamento, mas é expressamente incutido (cf. Salmo 109,6-20). Ora, Jesus manda amar os inimigos, e, em vez de se invocarem maldições sobre eles (ver outra vez o Salmo 109,6-20), Jesus manda rezar por eles. Amor assimétrico e radical, portanto, que Jesus ensina agora nas alturas, e que praticará e ensinará até à Cruz! Ele leva até ao alto do Monte das Bem-Aventuranças e até ao alto do Calvário os nossos ódios desenfreados, a nossa fria justiça distributiva, a nossa cinzenta indiferença, e restitui-nos em troca o perdão excessivo e o amor transbordante.

6. Ao tempo de Jesus, o panorama do judaísmo palestinense era dominado por duas escolas: a escola conservadora e rigorista de Shammai e a escola liberal de Hillel. Conta-se que, um dia, um homem se terá apresentado na escola de Shammai, e fez ao mestre um estranho pedido: «quero que», diz o homem, «enquanto eu me mantiver apenas com um pé no chão, tu me expliques toda a Lei». Diz-se que Shammai se limitou a pegar na sua vara de mestre e a correr o homem pela porta fora, pois era óbvio que o homem fazia um pedido impossível de cumprir, tal era a vastidão da Lei, e o pouco tempo concedido para a sua explicação. Mas o homem não desanimou e dirigiu-se à escola de Hillel, a quem formulou o mesmo pedido. E Hillel terá respondido de pronto: «Nada mais fácil: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti!”». A esta sentença de Hillel, na sua formulação negativa, deu-se o nome de «regra de ouro». Em boa verdade, ela já aparece no Livro de Tobias 4,15. É, todavia, fácil de verificar, que esta sentença é de fácil cumprimento. Dado que o seu teor é negativo, para a cumprir, basta a alguém cruzar os braços e nada fazer. Procedendo assim, nada fará de inconveniente a ninguém, cumprindo assim escrupulosamente a sentença formulada.

7. Tentando talvez evitar a inação acoitada na formulação negativa anterior, os Evangelhos apresentam desta máxima uma formulação positiva: «Faz aos outros o que queres que te façam ti!» (Mateus 7,12; Lucas 6,31). Levando a sério esta formulação, já não é suficiente jogar à defesa e nada fazer, mas é, de facto, requerido fazer alguma coisa. Seja como for, as duas formulações apresentadas, quer a negativa quer a positiva, padecem do mesmo vício: sou eu o centro, é à minha volta que tudo roda, e o que eu faço ou deixo de fazer é com o objetivo claro de que me seja retribuído outro tanto! O tom positivo da referida «regra de ouro» recebe ainda outra bem conhecida formulação: «Ama o teu próximo como a ti mesmo!», que atravessa a inteira Escritura: Levítico 19,18; Mateus 22,39; Romanos 13,9; Gálatas 5,14; Tiago 2,8. Mas também esta formulação é perigosa: primeiro, porque eu continuo o ser o centro, sendo eu a medida do amor devido aos outros; segundo, porque, se alguém não se ama a si mesmo (e são, infelizmente, cada vez mais os casos!), como poderá cumprir devidamente esta máxima?

8. É aqui que cai, como uma lâmina, a força do Evangelho que sai dos lábios de Jesus: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei!» (João 13,34; 15,12). Aqui, a medida não sou eu. Aqui, a medida é Jesus, o das alturas, o do alto das montanhas. Aqui, a medida é sem medida! Aqui, o amor não é interesseiro. Aqui, o amor é puro, radical, incondicional, assimétrico, sem retorno. Aqui, o amor é até ao fim! Oh sublime ciência das alturas!

9. O texto do Antigo Testamento que faz hoje companhia ao Evangelho é retirado do Livro do Levítico 19,1-2.17-18, e nele fica desenhado o caminho e a fonte da santidade: «Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo» (Levítico 19,2); mas é também tirado a limpo que o nosso caminho, isto é, o nosso comportamento para com os nossos irmãos, não pode passar nunca pelo ódio nem pela vingança, mas apenas pelo amor (Levítico 19,18), ainda que numa formulação muito simétrica: «Ama o teu próximo como a ti mesmo», a única vez, de resto, que encontramos esta formulação no AT.

10. O Apóstolo Paulo continua a interpelar, com a força do Evangelho, a comunidade cristã de Corinto e as nossas comunidades cristãs de hoje (1 Coríntios 3,16-23). Sim, diz Paulo com extrema precisão: «O Espírito Santo habita em vós» (1 Coríntios 3,16). E acrescenta ainda: «Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus» (1 Coríntios 3,22-23). Portanto, tudo e todos caminhamos para a casa do Pai; entretanto, é Cristo o único Senhor, o único caminho e o único companheiro da nossa vida.

11. O Salmo 103 é uma das joias do Antigo Testamento e constitui um grande canto ao amor de Deus, uma espécie de prelúdio ao «Deus é amor» (1 João 4,8). Desenrola-se em dois movimentos. O primeiro (v. 1-9) trata o amor e o perdão de Deus com sucessivos particípios hínicos, que mostram um Deus que perdoa, cura, redime, coroa de amor e misericórdia, sacia de bem, e uma série de nomes (justiça, dá a conhecer, obras, misericordioso, gracioso). O segundo movimento (v. 10-18) põe lado a lado o amor permanente de Deus e a nossa humana fraqueza. A linha vertical (céu-terra) serve para mostrar a imensidão do amor de Deus (v. 11), escrevendo-se na linha horizontal (oriente-ocidente) a grandeza sem medida do seu perdão (v. 12). O belíssimo v. 13 passa a imagem inultrapassável de Deus como um pai com ventre maternal (rehem). A fragilidade humana aparece traduzida nas imagens do pó (v. 14) e da erva (v. 15-16), em contraponto com a estabilidade do amor de Deus (v. 17). Sem este amor, sem esta música, seríamos talvez levados melancolicamente a pensar que é o mesmo o destino das folhas outonais e dos homens! Deixemos ecoar em nós as belas notas deste grande Salmo 103, que alguns autores já chamaram o Te Deum do Antigo Testamento.

 

António Couto



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