Domingo XII do Tempo Comum: O nosso «Lugar feliz» é Cristo

Zc 12,10-11; 13,1; Sl 63; Gl 3,26-29; Lc 9,18-24

1. Este Domingo XII do Tempo Comum oferece-nos a imensa utopia messiânica que atravessa a profecia de Zacarias 9-14: um povo pobre, explorado, combatido e assassinado, mas que é a «pupila dos olhos do Senhor» (Zacarias 2,12), que tem nele colocados os seus olhos (Zacarias 9,1 e 8). Este povo pobre e mártir não é posto à margem da história e da vida, mas tem também direito à sua esperança e ao seu rei diferente, que se apresenta pobre e pacífico, montado num jumento, animal de paz e não de guerra, e que porá fim aos instrumentos de guerra (Zacarias 9,9-10). Mundo novo. O texto deste Domingo (Zacarias 12,10-11; 13,1) faz-nos chorar este povo pobre e mártir personificado num filho único, num filho primogénito, martirizado, mas faz-nos ver também, e fixa o nosso olhar nesta figura desfigurada e transpassada, mas transfigurada, pois se tornará numa fonte de água pura, salvadora e salutar (Zacarias 13,1; 14,8). É, neste sentido, que Zacarias adianta que «hão de olhar para aquele que transpassaram» (Zacarias 12,10). Cruzamento de olhares: olha Deus para ele, por ele; olhamos agora também nós para ele, por ele! É sabido que João, vendo Jesus e relendo este espantoso texto de Zacarias, fixa o nosso olhar em Jesus crucificado, transpassado, desfigurado, transfigurado (João 19,37). Então o crucificado ressuscitado, que preside à nossa assembleia dominical e à nossa vida, deixa de ser uma u-topia [= «sem lugar»], para se transformar numa eu-topia [= «lugar feliz»]. Olhar fixo n’Ele! Mãos abertas em concha para Ele, para as encher nessa fonte de graça e de saúde! Sim, somos chamados a transformar o «deslugar» deste mundo, de que estamos a fazer um montão de ruínas, em «lugar feliz»! Mãos à obra! Ou, melhor ainda, corações à obra!

2. Faz equilíbrio com este grande texto de Zacarias o Evangelho de Lucas 9,18-24. Começa por nos apresentar Jesus a rezar sozinho, o que acontece imensas vezes no Evangelho de Lucas, que é, por isso, também chamado «Evangelho da oração». E «orar» é, em sentido genuíno, etimológico, beijar, como lembrou o Papa Bento XVI aos jovens reunidos na XX Jornada Mundial da Juventude, realizada em Colónia, em 2005, referindo que a palavra latina para oração é oratio e a locução latina para adoração é ad oratio, contacto boca a boca, beijo, abraço, e portanto, no fundo, amor, ou seja, orientar a nossa vida toda para Deus, entregar a Deus a nossa vida toda, para que seja Ele a olhar para nós, por nós! É importante sabermos, informa-nos o narrador, que os seus discípulos estavam com Ele. Estar com Ele é o «lugar feliz» do discípulo de todos os tempos. Estar sem Ele é sempre um «deslugar». Se for este o caso, temos rapidamente de mudar de lugar!

3. Também ficamos a saber, pela informação dos discípulos de então, que as multidões dizem Jesus com o passado, alinhando-o com as figuras do passado (João Batista, Elias, um antigo profeta redivivo) (Lucas 9,19), não contendo, portanto, nada de substancialmente novo. Em contraponto com as multidões, Pedro avança um dizer novo, diz que Jesus é o Cristo de Deus, sem, todavia, com este dizer, renovar a sua vida, sem fixar n’Ele os olhos e o coração, e sem encher as velas e as mãos em concha com a água viva que d’Ele vem.

4. É Jesus, e só podia ser Jesus, que se autoapresenta aos seus discípulos de ontem e de hoje, como tendo de sofrer, ser morto, e ressuscitar ao terceiro dia (Lucas 9,22). Aí está o transpassado, desfigurado, transfigurado, fonte única de água viva para nós, nascente inesgotável da nossa vida. Dizemos, na verdade, muitas coisas atabalhoadas, que andam por aí no dizer popular. Mas é, de facto, necessário ouvir Jesus dizer primeiro! Porque só Ele se diz e nos diz. Para o discípulo, escutar é deixar-se dizer! Para o discípulo, dizer é redizer o dito de Jesus. Eis o Mestre. Eis o discípulo.

5. Ainda duas coisas únicas deste Evangelho, duas pérolas, portanto: «Dizia Ele a todos: “Se alguém quer vir atrás de mim, diga não a si mesmo, e tome a sua cruz todos os dias, e siga-me”» (Lucas 9,23). Esta primeira pérola está em que Jesus diz para todos. O dizer de Jesus, o seu ensinamento novo, não é para elites, para alguns iluminados. É para todos. Entenda-se que a escola de Jesus está aberta a todos, ricos e pobres, maus e bons, especialistas e ignorantes. Já se sabe que o ignorante é aquele que não sabe; de resto, também o dito especialista não sabe, mas não sabe, para usar o aforismo cortante do escritor italiano Leo Longanesi (1905-1957), não sabe com grande competência e autoridade! Ainda bem, portanto, que Jesus diz para todos, e todos devemos estar sentados e atentos na sua escola. A segunda pérola é que a vida cristã, que consiste em seguir Jesus, é coisa quotidiana, de todos os dias. Lucas é mesmo o único Evangelista que regista a necessidade de tomar a cruz todos os dias. Não é só para alguns dias de festa. Não pode ter pausas.

6. Dizer não a si mesmo é pensar ao contrário do que estamos habituados a fazer. Pensamos sempre primeiro em nós, em salvar-nos a nós mesmos. E para nos salvarmos a nós mesmos, pensamos nós, temos de nos antecipar aos outros, ser mais espertos do que os outros, mais rápidos do que os outros, passar à frente dos outros. Exatamente o contrário de Jesus, que não quis salvar-se a si mesmo. Quis salvar-nos a nós, pôr-se ao nosso serviço, fazer-se fonte de água viva para nós. «Salva-te a ti mesmo, e desce da Cruz!», eis a tentação que cai sobre Jesus em três vagas sucessivas (Lucas 23,35.37.39). Todavia, se se tivesse salvo a si mesmo, não nos salvava a nós! Estamos, portanto, perante a lógica nova do «quem perde, ganha», que é o jogo novo de Jesus e dos seus discípulos, e de todos os que ostentamos o nome de cristãos.

7. Não se pode ser cristão, discípulo de Jesus, seguir Jesus, dizer Jesus, sem dar a vida. O discípulo de Jesus, à maneira de Jesus, tem de pôr em jogo a própria vida, e não simplesmente os adereços. Tudo, e não apenas o supérfluo. Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Efésios 5,2), por mim (Gálatas 2,20). O supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo transforma a vida para sempre.

8. É esta novidade que São Paulo afirma outra vez na Carta aos Gálatas 3,26-29. Sim, Paulo já não se sabe dizer sem dizer Jesus Cristo. Por Ele foi alcançado, n’Ele foi batizado, está revestido d’Ele. Se vive, é porque está enxertado em Cristo, o «lugar feliz» da sua vida. Para ele, «viver é Cristo» (Filipenses 2,21), diz, e diz também: «é Cristo que vive em mim» (Gálatas 2,20). E não se trata de simples maneiras cde dizer. É uma maneira de viver. 

9. O Salmo 63 é conhecido como «o cântico do amor místico», atravessado por uma apaixonada intensidade, bem expressa na primeira afirmação ou declaração de amor à boca do Salmo, mas que enche, de resto, o Salmo inteiro: «O meu Deus és Tu» (?elî ?attah), a que responde e corresponde Deus em Isaías 43,1, declarando: «Para mim tu és» (lî ?attah). Tudo o resto no Salmo 63 assenta sobre esta certeza. A minha vida recebida (naphshî), por quatro vezes referida (v. 2.5.9.10) agarra-se amorosamente (dabaq) a Ti (v. 9), canta o teu amor, vive de Ti. A beleza, intensidade e espiritualidade que atravessam este Salmo ganham visibilidade na liturgia bizantina das manhãs de Domingo, e os v. 3-6 entram no cânone eucarístico armeno.

 

António Couto



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