Domingo III do Tempo Comum: «Assembleia de alegria e de Esperança»

1. São Lucas é o Evangelista do corrente Ano Litúrgico. E embora já tenha sido proclamado e já tenhamos escutado diversos episódios do Evangelho de São Lucas nos quatro Domingos do Advento, Natal (1.ª e 2.ª missas), Festa da Sagrada Família, Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, e Festa do Batismo do Senhor, é só agora que vamos começar a proclamá-lo e a escutá-lo em leitura contínua. Importa, por isso, inserir neste momento um esquema deste Evangelho, para podermos compreender melhor o ritmo da sua leitura:

1,1-4 = Prólogo histórico (A)

         1,5-2,52 = Evangelho da Infância (B)

                     3,1-9,50 = Ministério na Galileia (C)

                                 9,51-19,27 = Partida/subida para Jerusalém (D)

                     19,28-21,36 = Ministério em Jerusalém (C’)

         22,1-23,56 = Paixão – Morte – Sepultura (B’)

24,1-53 = Epílogo: Ressurreição – Aparições – Promessa do Espírito (A’)

2. O Evangelho deste Domingo III faz a acostagem do «prólogo» (1,1-4) ao «discurso programático» de Jesus na sinagoga de Nazaré (4,14-21), saltando a pregação e prisão de João Batista (3,1-20), o Batismo de Jesus e a genealogia (3,21-38), e a sua tentação no deserto, de que sai vitorioso (4,1-13).

3. O prólogo (Lucas 1,1-4) é importante para se compreender a solidez de todo o Evangelho. Lucas, da segunda geração cristã, não fez obra por conta própria. Faz questão de dizer que escreveu de forma ordenada e com acribia e controlando desde o começo os factos (prágmata) de Jesus, aqueles que foram cumpridos (passivo divino!) entre nós, e que já foram recebidos com carinho mão na mão (epicheiréô) e postos em narração (diêgêsis) por muitos, conforme nos foram transmitidos (paradídômi) por aqueles que foram testemunhas oculares (autóptai) desde o princípio (ap’ archês). Factos de Jesus, testemunhas oculares, transmissão-receção mão na mão, narração, controlo desde as fontes. Lucas escreve para que o seu Leitor tenha um conhecimento pofundo e pessoal (epiginôskô) dos factos de Jesus, sobre os quais se faz a instrução da catequese (katêchéô), que forma a nossa consciência cristã. Lucas trata este seu «leitor modelo» ou «leitor implícito» por «Amigo de Deus» (Theóphilos), voltado para Deus, exatamente o contrário do «amigo de si mesmo» (phílautos), debruçado sobre si mesmo, que se compraz em si mesmo, como se vê na advertência de S. Paulo a Timóteo (2 Timóteo 3,2).

4. O episódio de Nazaré (4,14-21) é importante. Antes de mais é dito que Jesus procede na força (dýnamisdo Espírito, inciso próprio de Lucas, que salienta a plena identificação somática de Jesus com o Espírito. Já antes, desde o Batismo, Jesus é dito plêrês [= cheio] do Espírito (4,1), e plêrês indica, não a passividade de quem está cheio, mas a condição natural, ativa, de quem possui a plenitude do Espírito Santo. Sempre na força do Espírito, entrou em dia de sábado na sinagoga, e LEVANTOU-SE (anístêmi) para fazer a leitura litúrgica (anaginôskô) (Lucas 4,16).

 

5. Em João 7,15, ao verem Jesus a ensinar no Templo, os judeus ficam admirados e interrogam-se: «Como é que ele entende de letras sem ter estudado?». Lucas 4,16 informa-nos que sabia pelo menos ler! Jesus lê um texto composto de Isaías 61,1-3; 58,1-11; 35,1-3, mas Lucas compendia-o na citação de Is 61,1-2.

6. Os conteúdos são decisivos, e Jesus aplica-os soberanamente a si mesmo, com a consciência de ser o Realizador da Promessa antiga: o Espírito do Senhor sobre mim porque me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me e eis-me a anunciar (kêrýssô) aos prisioneiros a «remissão» (áphesis) [= amnistia], aos cegos o retorno da vista, a restituir aos oprimidos a liberdade, a anunciar (kêrýssô) o ano da graça [= jubileu] do Senhor (Lucas 4,18-19). Trata-se de funções reais, sacerdotais e proféticas. Atos 10,38 confirmará que Jesus, ungido com o Espírito, passou cumprindo todas estas funções.

7. Terminada a leitura, Jesus SENTOU-SE para ensinar, para fazer a tradicional homilia (Lucas 4,20a). E o narrador informa-nos, de maneira admirável, que «os olhos de todos estavam fixos nele!» (Lucas 4,20b), apontando já para o grande ensinamento da Cruz, quando Jesus diz: «Quando Eu for levantado da terra, atrairei todos a mim» (João 12,32), anotando depois o narrador: «Olharão para Aquele que transpassaram» (João 19,37). Em Nazaré, Jesus começou assim a sua homilia: «Hoje foi cumprida (passivo divino!) esta Escritura nos vossos ouvidos» (Lucas 4,21).

8. O texto, muito denso, bem diferente das débeis versões oficiais, salienta a força da Palavra de Deus quando é objeto de escuta qualificada. Este «Hoje» (sêmeron), que Lucas usa por oito vezes no seu Evangelho (2,11; 4,21; 5,26; 19,5; 19,9; 22,34; 22,61; 23,53), tornou-se clássico nas homilias dos Padres gregos. Neste seu primeiro ensinamento, Jesus como que não diz nada de novo! Na sua boca estão só palavras antigas! Excelente maneira de Jesus se apresentar como «Filho da Escritura», Leitor e conhecedor da Escritura: lê os Profetas (Isaías) e aponta para a Lei (Deuteronómio), o Livro do «Hoje» (70 vezes) e do «Escuta, Israel!».

9. Em perfeita consonância com o Evangelho (Assembleia reunida, Leitura da Palavra, olhos fixos), aí está o belo texto de Neemias 8,2-10. Grande texto do tardio pós-exílio que mostra a Assembleia, composta por homens, mulheres e crianças desde a idade da razão, reunida, de pé, no 1.º Dia do Ano (Dia de Ano Novo), para escutar com atenção e compreender até às lágrimas a Palavra do Senhor. Esdras, o sacerdote, está também de pé num estrado de madeira feito de propósito, e todos levantam os olhos para ele. A liturgia começa, como é usual, com a «bênção sacerdotal» (Números 6,23-26), a que o povo responde «Amen» com as mãos levantadas, gesto fundamental que indica plena compreensão e total adesão.

10. O Novo Testamento mostrará o novo Sacerdote, que é Cristo, no novo estrado de madeira, que é a Cruz, novo Livro da Escritura de Deus, onde São Paulo lê para nós: «Jesus Cristo exposto por escrito (proegráphê), crucificado (estaurôménos» (Gálatas 3,1), que atrai, como já atrás referimos, os olhos de todos (João 19,37).

 

11. Ainda dentro do Oitavário de Oração pela Unidade dos Cristãos, são oportuníssimas as palavras que o Apóstolo Paulo, Apóstolo da Unidade, dirige aos cristãos de Corinto (1 Coríntios 12,12-30) e a nós também. Diz ele que as nossas diferenças não são uma praga ou uma chaga, mas uma graça para partilhar com alegria em vista da utilidade comum. Não nos podemos, portanto, habituar à separação! Temos de compreender o escândalo que constitui a separação (também das Igrejas Cristãs): qual de nós aceitaria de bom grado que o seu próprio corpo fosse mutilado ou amputado? Então como podemos aceitar que o seja o Corpo de Cristo?

12. Neste Domingo, é a Assembleia unida porque reunida pela Palavra, que está no centro das atenções: é a Assembleia de Nazaré, é a Assembleia que nos mostra o Livro de Neemias, é também a nossa Assembleia Dominical, que Hoje se reúne à volta do Senhor Ressuscitado, nossa Alegria e nossa Esperança. «Não abandonemos, então, a nossa Assembleia, como alguns costumam fazer», oportuníssima exortação da Carta aos Hebreus (10,25).

13. Refere, a propósito, um antigo conto judaico: «Vira e revira a Palavra de Deus, porque nela está tudo. Contempla-a, envelhece e consome-te nela. Não te afastes dela, porque não há coisa melhor do que ela». E o Salmo 19, que hoje cantamos, ensina-nos que Deus ilumina o universo com o fulgor do sol, e ilumina o homem com o fulgor da sua Palavra revelada que a Escritura Santa carinhosamente guarda.

 

António Couto



Newsletter Educris

Receba as nossas novidades