Domingo II do Tempo Comum: «Cordeiro de Deus que tira o pecado do Mundo»

Is 49,1-6; Sl 40; 1 Cor 1,1-3; Jo 1,29-34

1. Estamos já no Domingo II do Tempo Comum, e escutamos o Evangelho de João 1,29-34. E à nossa frente está outra vez João Batista, a figura do umbral ou do limiar, que está sempre ali, à porta, para acolher quem vier, fazer as apresentações e dar as indicações necessárias. É dito, em João 1,28, que João Batista estava «em Betânia» (Bêthanía), de beyt ?aniyyah [= «Casa da barca»] ou de ?eynon beyt [= «Casa da fonte»], «do outro lado do Jordão (péran toû Iordánou), e que era aí que batizava». Em termos de crítica textual, o nome «Betânia» é o que reúne mais consenso, sendo, portanto, o melhor estabelecido por aparecer na maioria dos manuscritos maiúsculos e minúsculos. Há, porém, outras possibilidades de leitura, de que destacamos Bêthabarâ, de beyt ?abarah [= «Casa da passagem»]. Esta última denominação remonta a Orígenes que, no séc. III, visitou a região e não encontrou o topónimo «Betânia», mas encontrou Bêthabarâ. No seguimento de Orígenes, também Eusébio de Cesareia, Jerónimo e vários manuscritos assumem esta leitura. Portanto, segundo a crítica textual, o nome do lugar pode mudar. O que não muda é a locução «do outro lado do Jordão» que, no Evangelho de João, aparece sempre relacionada com João Batista (João 1,28; cf. 3,26; 10,40). João Batista coloca-se, portanto, estrategicamente «do outro lado do Jordão», onde um dia o povo do Êxodo parou também, para preparar a entrada na Terra Prometida, atravessando o Jordão (Josué 3). Era então «do outro lado do Jordão» que João Batista batizava (baptizôn). Este particípio indica duração, fazendo da atividade de João Batista uma missão continuada e duradoura. Pode mudar-se o lugar, que não se muda o significado, seja ele «Casa da barca», «Casa da fonte» ou «Casa da passagem». Mas este dado «do outro lado do Jordão» não pode deixar-se cair, dado o valor simbólico que indica, e que, em si, é já um discurso. É preciso voltar atrás, ao «outro lado do Jordão» para se poder entrar agora com o pé direito na Terra Prometida.

2. Dado que estamos a lidar com o início do Evangelho de João, talvez valha a pena olhar para a forma como está organizado. Aperceber-nos-emos logo que este início do Evangelho de João (1,19-2,12) distribui as ações por dias, organizados em dois blocos de 4 + 3. No primeiro dia (1,19-28), João Batista, postado no umbral de Betânia ou Bêthabara, é interrogado pelas autoridades acerca da sua identidade. No segundo dia (1,29-34), João Batista acolhe Jesus e apresenta-o, sem que seja dito a quem, a todos nós com certeza. No terceiro dia (1,35-42), alguns discípulos de João Batista seguem Jesus, e Simão recebe o nome de Cefas [= Kêphâs] (1,42), única vez nos Evangelhos, que significa Pedra esburacada, acolhedora e protetora. No quarto dia (1,43-51), Jesus chama Filipe e revela-se a Natanael e aos outros discípulos. Estes quatro dias representam em crescendo a preparação remota para a manifestação da Glória de Jesus. Correspondem à primeira parte da preparação para a Festa do Dom da Lei, que os judeus celebravam na Festa das Semanas ou Pentecostes. Depois destes quatro dias, salta-se logo para o «3.º Dia» (2,1-12), que é o 7.º do esquema 4 + 3, e que tem a ver com a manifestação da Glória de Jesus (2,11), que corresponde ao 3.º Dia da manifestação da Glória de Deus no Sinai (Êxodo 19,10-20), para o qual se requerem dois dias de intensa preparação (Êxodo 19,10-11). Se os quatro primeiros dias constituem a preparação remota, os dois seguintes são a preparação próxima para este 3.º Dia! Este era o esquema da preparação do povo para a Festa do Dom da Lei de Deus que se celebrava no Pentecostes.

3. O Evangelho de João hoje proclamado e escutado (1,29-34) põe diante de nós o 2.º dia dos primeiros quatro de preparação a que atrás aludimos. João Batista permanece parado, imóvel e sereno e atento, desde João 1,28, em Betânia ou Bêthabara, nomes que indicam claramente que se trata de um lugar de passagem e de água. O lugar em que permanece parado, define-o e define-nos: é um umbral ou limiar. Todo o umbral ou limiar é um lugar de passagem. Estamos de passagem. João Batista ocupa, portanto, o seu lugar estreito e aberto entre o des-lugar e a casa, entre o deserto e a Terra Prometida, entre o Antigo e o Novo Testamento. É desse lugar de passagem, mas em que está parado e atento como um guarda ou sentinela vigilante, a observar, que João Batista vê bem, «vê por dentro», como indica o verbo grego emblépô, Jesus a passar (peripatoûntos) (1,36) e a VIR (erchómenos) ao seu encontro (1,29). Esta é a primeira vez que Jesus surge em cena no Evangelho de João. E João Batista é assim o primeiro a ver Jesus, que VEM ao seu encontro, como Deus VEM ao nosso encontro, verificando-se e cumprindo-se assim quanto dito em Isaías 40,10: «O Senhor VEM». Recolhendo, em analepse, as vozes proféticas do passado, mas desenhando também já, em prolepse, os passos futuros, o Batista apresenta Jesus como «o CORDEIRO de DEUS, que tira o pecado do mundo» (1,29). Apresenta-o a nós, pois não é dito que mais alguém esteja lá. Riquíssima apresentação de Jesus. Na verdade, Cordeiro diz-se na língua aramaica, língua comum então falada, thaleya’. Mas thaleya’ significa, não só «cordeiro», mas também «servo», «filho» e «pão». Tantos fios fecundos, tantas sementes, tantos frutos, a recolher e já também a lançar aos campos que se desenham diante dos nossos olhos. Aí está bem delineada a identidade de Jesus. CORDEIRO de DEUS diz ainda, numa linguagem bem nossa conhecida, que este CORDEIRO é de DEUS, pertence a Deus: é Deus o seu pastor. Mas o Batista diz ainda de Jesus, CORDEIRO de DEUS, que é Ele «que tira o pecado do mundo». Com esta locução não parece que estejam em vista apenas os pecados individuais, mas o fim do domínio do pecado, avistando-se já um mundo novo, esvaziado do mal e cheio do conhecimento de Deus (Isaías 11,9), verdadeira plantação de Deus (Isaías 61,3). O verbo aírô [= tirar], quando relacionado com pecado (hamartía) diz o mesmo que aphíêmi [= perdoar], que é obra só de Deus, que se vai repetindo nos sacrifícios pelo pecado realizados no Templo. Nesta passagem do Evangelho de João trata-se de eliminar o pecado todo, de fechar o tempo do pecado com uma única ação, e não do perdão pontual de um determinado pecado individual, a que era necessário acorrer muitas vezes. Os leitores e ouvintes mais habituados a lidar com os textos bíblicos já certamente repararam na vizinhança entre «tirar (aírô) o pecado do mundo» e «tirai (aírô) tudo isto daqui, e não façais da casa do meu Pai casa de comércio» (2,16). Espaço e modo relacional novo. Eis, portanto, que Jesus VEM ao encontro de João, e é por este apresentado como o Messias, Aquele que VEM pôr fim à longa espera de Israel, e estabelece uma nova etapa na relação que une Deus com a humanidade. E talvez não seja por acaso que João Batista exerce o seu ministério «no outro lado do Jordão», fora das instituições do Templo.

 

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4. O Espírito de Deus entra na nossa história, descendo e permanecendo na humanidade de Jesus (1,33). A humanidade de Jesus é a porta por onde entra em nossa casa o Espírito de Deus. É esta novidade que, do seu posto de sentinela, João Batista está também a ver (heôraka, verbo no perfeito grego), e dela dá testemunho (memartýrêka, verbo no perfeito grego) (1,34). O perfeito grego indica continuidade: vi e continuo a ver; testemunhei e continuo a testemunhar. Entenda-se bem: João Batista dá testemunho, não porque viu e agora já não vê, mas porque viu e continua a ver, exatamente como as testemunhas de Jesus Ressuscitado (20,18.25). O Filho de Deus feito Homem, sobre quem desce e permanece o Espírito de Deus, Vem ao nosso encontro em Betânia ou Bêthabara, mas sempre no «outro lado do Jordão», margem esquerda, para nos fazer entrar em Casa, na Terra Prometida, novo espaço, tempo e modo relacional com Deus.

5. Cordeiro, Servo, Filho, Pão: eis Jesus, manso e dócil, nosso irmão e nosso alimento. O «Segundo Canto do Servo do Senhor» (Isaías 49,1-6), em que Hoje se espelha o Evangelho, já mostra este Servo de Deus, libertado do serviço entre os povos estrangeiros, para se colocar exclusivamente ao serviço do Senhor, que, por isso e para isso, o pode chamar «meu Servo» (Isaías 49,3 e 6). A sua missão será reconduzir Israel para Deus, de quem se tinha afastado física, moral e espiritualmente (Isaías 49,5). Fica, todavia, logo claro que não é suficiente proceder à reunião dos filhos de Abraão. É necessário ir mais longe e refazer o mundo dos filhos de Adam. É necessário ser a Luz das nações, como Jesus (Lucas 2,32) e todos os seus escolhidos e enviados.

6. Veja-se Paulo, que faz sua a missão do Servo Israel de ser Luz das nações até aos confins da terra (Atos 13,47). É nesse rastro de Luz que chega um dia a Corinto para lá acender a Luz de Cristo, Senhor Nosso, e velar por essa Luz que arde nas entranhas. É por isso que hoje escutamos também o princípio da correspondência que Paulo estabelece com a comunidade de Corinto (1 Coríntios 1,1-3).

7. Cantamos hoje o primeiro andamento do Salmo 40, repetindo o refrão: «Eu venho, Senhor, para fazer a vossa vontade!» (v. 7-8). É o cântico novo que ecoa hoje na nossa boca (v. 4), e que se vai ouvindo já por toda a terra. O Salmo 40 apresenta um primeiro andamento de ação de graças (v. 1-10), seguido logo por um movimento de súplica e lamentação (v. 11-18). Parece, pois, haver no corpo do Salmo uma estranha divisão. Quem é o «eu» que constata e agradece os benefícios de Deus no v. 1, e quem é o «eu» que, no v. 14, implora ainda com veemência o auxílio de Deus? Esta notória divisão no corpo do Salmo não é ilógica, como muitas vezes tem sido vista. É humana, dado ser também a nossa vida tecida por momentos de sonho e de outros tempos de maior ou menor dificuldade. Em sintonia com o Evangelho de hoje, que põe em cena João Batista, o grande indicador de caminhos, e, sobretudo, do Caminho, que é Jesus, e em sintonia também com a lição do Servo de Deus de Isaías 49, que vem para levar Deus e a sua Luz às nações e aos corações. Como Paulo faz desde Damasco até Corinto, até Roma. Para tanto, todo o Servo de Deus tem de ter os ouvidos escavados (v. 7) e o coração incendiado.

Educris|14.01.2023



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