Fórum EMRC 2014: "Cultura, Escola e Religião"

 

Disponibilizamos a conferência "Cultura, Escola e Religião" proferida hoje, durante o Fórum EMRC 2014, por D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca Emérito de lisboa. 

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“Cultura, escola e religião”

 

 

 

 

 

Conferência no Fórum EMRC,

 

Fátima, 25 de Janeiro de 2014

 

 

Introdução

 

 

 

        1. O tema que me foi proposto é vasto e abrangente e permitiria vários enfoques: poderíamos considerar a escola como enfoque enquanto estrutura principal ao serviço da educação das crianças, adolescentes e jovens, em que se entrecruzam os contributos de instituições diversas, como a família, a sociedade, o Estado, a Igreja. Nessa perspectiva teríamos de considerar as exigências que a nossa cultura coloca à educação e às estruturas educativas. O quadro da educação é a cultura, não uma cultura qualquer à medida da consideração de cada interveniente, mas a cultura de um povo, a compreensão da pessoa, da vida e da história, caldeada ao longo do tempo.

 

        Mas também poderíamos considerar, como enfoque principal, a cultura como dinamismo envolvente, que desabrocha numa sabedoria, que define e burila a identidade espiritual e moral de uma comunidade. Tratando-se de um povo católico, desde há séculos e na sua maioria, teríamos necessariamente de considerar a influência da fé religiosa na cultura de um povo, sem nunca esquecer todos os outros elementos que influenciaram essa cultura. Esta é sempre a convergência unificadora das expressões da liberdade, da busca da verdade, da beleza da vida, não apenas das pessoas individuais, mas enquanto membros de uma comunidade. Optando por este enfoque, teremos de olhar para a nossa cultura, para a influência que o cristianismo teve nela, para a sua evolução dinâmica, ao ritmo das mutações culturais. Teremos de perguntar se os nossos sistemas educativos, com relevância para as nossas escolas, respiram e promovem a nossa cultura. A escola nunca pode ser um elemento culturalmente neutro. É uma gota de água numa vasta corrente que engrossou e adquiriu identidade ao longo do tempo, numa história que reconhecemos como a nossa história e que corre para um futuro que nunca pode separar-se da memória do seu percurso. Eu escolhi este segundo enfoque para o nosso tema.

 

 

 

        A cultura exprime e define a identidade de um povo

 

        2. Só a cultura permite à pessoa humana, na sua caminhada pessoal de liberdade, assumir-se em tudo como membro de uma comunidade. Uma compreensão individualista da vida é a negação da cultura. O Concílio Vaticano II afirma que só pela cultura o homem acede verdadeira e plenamente à sua humanidade. Só a cultura integra na unidade a natureza  a história, o que recebemos do Criador e as marcas que a nossa acção criativa lhe imprimiram. A verdade da natureza é um elemento decisivo da verdade da cultura. O Concílio afirma-o: “Sempre que se trata da vida humana, natureza e cultura estão tão estreitamente ligadas quanto possível” (GS. nº 53).

 

        A cultura integra numa unidade, que se exprime ao longo do tempo, toda a riqueza da natureza e as expressões da liberdade das pessoas e das comunidades. O conceito de cultura é necessariamente abrangente. Citemos de novo a Gaudium et Spes: “A palavra cultura designa tudo o que é expressão humana, aquilo em que o homem afina e desenvolve as capacidades do seu espírito e do seu corpo; se esforça por submeter o universo pelo conhecimento e pelo trabalho; humaniza a vida social, tanto a vida familiar, como o conjunto da vida civil, graças ao progresso dos costumes e das instituições; em suma, a maneira como traduz, comunica e conserva nas suas obras, ao longo do tempo, as grandes experiências espirituais e as grandes aspirações do homem, para que estejam ao serviço do progresso de um grande número e mesmo de todo o género humano”[1].

 

        Uma comunidade, quer seja a Igreja, quer seja a Nação, burila a sua identidade cultural ao longo do tempo. “A evolução cultural tem mais o ritmo da história do que do presente, do momento que passa. Só ao longo do tempo cada comunidade humana vai afinando o seu património cultural. Vai-se definindo um meio determinado e histórico no qual cada homem se insere, independentemente da nação ou do século, ao qual vai beber os valores que lhe permitem promover a civilização.

 

        É a este património, definido ao longo do tempo, que se pode chamar “matriz cultural” de um povo, a qual deve ser salvaguardada em toda a evolução cultural e em toda a evolução da sociedade. Quando a evolução das sociedades se decide ao ritmo do presente efémero, afasta-se da matriz cultural e deixa de promover e enquadrar o autêntico progresso da pessoa e da sociedade humanas”[2].

 

 

 

        Cultura e sabedoria

 

        3. Da harmonia da cultura brota a sabedoria. Esta é uma compreensão profunda da existência humana, donde brota a dimensão ética, e da história. A sabedoria tem a sua fonte na memória de uma comunidade e exprime-se no presente, inspirando a liberdade e abre-se à esperança, rasgando caminhos de futuro.

 

        Temos um exemplo claro no Antigo Testamento. A fé do Povo de Israel no Deus da Aliança e da sua intervenção na história, gerou indubitavelmente uma cultura. Nos grandes profetas de Israel esta cultura gera uma sabedoria, uma compreensão global da história daquele povo. Mas por influência de grupos e correntes de opinião, sobretudo dos fariseus, essa cultura exprimiu-se num número infindável de preceitos legais. E quando isso acontece corre-se o risco de abafar a sabedoria. A partir do séc. III A.C., devido ao contacto mais estreito com a cultura helénica e o grande apreço que tinham pela sabedoria, surge em Israel a corrente sapiencial (livro da Sabedoria, Ouelet, Eclesiástico) que prepara aquele povo para a mensagem cristã. A corrente sapiencial entra facilmente em conflito com o legalismo farisaico.

 

        A pregação de Jesus, condenando o farisaísmo, dá prioridade total à sabedoria, baseada na dignidade do homem, sublinhando essa dignidade nos mais pobres e desprezados, apresentando a Lei de Deus como a manifestação do amor misericordioso.

 

        O actual Papa, ao sublinhar que o anúncio do Evangelho pela Igreja, não é o enunciado claro e defesa racional de um edifício de leis morais, mas o anúncio do amor, desafia a Igreja a privilegiar o caminho da sabedoria.

 

        A cultura não é uma soma de saberes racionais e lógicos; ou desabrocha na sabedoria ou se nega como cultura. Só na sabedoria a cultura se torna a fonte do sentido autêntico da existência humana.

 

 

 

        4. No caso da cultura cristã, encontramos na piedade popular este desabrochar da cultura em sabedoria. De facto as suas expressões revelam uma mística da vida cristã, expressa mais por via simbólica do que racional. “Não é vazia de conteúdos, mas descobre-os e exprime-os mais pela via simbólica do que pelo uso da razão instrumental (…). É uma maneira legítima de viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja e uma forma de ser missionário”[3]. Uma das suas expressões principais, a peregrinação, encerra toda uma compreensão do caminho cristão, que vai da conversão, à alegria de caminhar com os outros, ao ardor missionário. Ela ajuda a centrar toda a vida cristã no amor. “Só a partir da conaturalidade afectiva que dá o amor é que podemos apreciar a vida teologal presente na piedade dos povos cristãos, especialmente nos pobres”[4].

 

        Paulo VI afirmou que “a piedade popular traduz em si uma certa sede de Deus que somente os pobres e os simples podem experimentar, torna as pessoas capazes de terem rasgos de generosidade e predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo quando se trata de manifestar a fé”. Bento XVI chamou-lhe “um precioso tesouro da Igreja Católica”[5].

 

 

 

        O cristianismo e a cultura[6]

 

        5. Todas as religiões influenciam as culturas; o mesmo se pode dizer do ateísmo e do agnosticismo. Quando o Evangelho é vivido e anunciado em contextos culturais ainda não marcados pelo Evangelho, a evangelização introduz em todas as culturas a dimensão da sabedora cristã. Evangelizar é intervir na cultura. Nas diversas civilizações a fé religiosa é elemento importante no formar de uma cultura, tende mesmo a ser o ponto unificador da variedade de elementos que entram no caldear de uma nova cultura, pois essa tem de ser sempre um espelho da liberdade e da criatividade humanas na variedade das suas expressões.

 

        A fé cristã transforma-se, espontaneamente, em cultura, pela interpelação à liberdade, pelos valores de civilização que comunica, pela solidez de uma tradição de que é factor decisivo. Ao influir na cultura, dá-se o fenómeno da inculturação da fé, isto é, as marcas da cultura que se evangeliza na própria expressão cultural do Evangelho. Um texto recente do Papa Francisco, exprime bem este diálogo do Evangelho com as culturas dos povos a evangelizar: “podemos pensar que os diferentes povos, nos quais foi inculturado o Evangelho, são sujeitos colectivos activos, agentes da evangelização. Assim é, porque cada povo é o criador da sua cultura e o protagonista da sua história. A cultura é algo de dinâmico, que um povo recria constantemente, e cada geração transmite à seguinte um conjunto de atitudes relativas às diversas situações existenciais, que esta nova geração deve reelaborar face aos próprios desafios. O ser humano «é simultaneamente filho e pai da cultura onde está inserido». Quando o Evangelho se inculturou num povo, no seu processo de transmissão cultural também transmite a fé de maneira sempre nova; daí a importância da evangelização entendida como inculturação. Cada porção do povo de Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus segundo a sua índole própria, dá testemunho da fé recebida e enriquece-a com novas expressões que falam por si. Pode dizer-se que «o povo se evangeliza continuamente a si mesmo”[7].

 

        A inculturação é necessária para que os povos a evangelizar possam captar e interiorizar a mensagem desde que se garanta o carácter sobrenatural da mensagem da fé da Igreja, recebida dos Apóstolos de Jesus. A inculturação é mais autêntica quando o que entra em diálogo com as culturas a evangelizar, é a cultura transformada já em sabedoria, comunicando, mais pelo testemunho do que pelo discurso, os grandes valores evangélicos que se tornam as bases de uma nova civilização.

 

        Para podermos considerar a relação entre escola e todo o sistema educativo com a cultura, no nosso caso uma cultura de matriz cristã, vamos considerar alguns elementos decisivos para vermos claro a abrangência cultural das realidades presentes da Igreja e da sociedade. Privilegiarei nesta consideração a importância da memória na compreensão das exigências da realidade presente, e alguns elementos decisivos na mutação cultural.

 

 

 

        Memória e liberdade

 

        6. A memória é a marca deixada no coração por uma experiência de amor. Isto acontece na vida de cada pessoa, sempre que se sentir amada. Mas há uma memória colectiva da Igreja, Povo do Senhor, amada por Deus, em Jesus Cristo. No Antigo Testamento a fé de Israel é a memória da experiência de ser salvo por Deus, de sentir Deus no meio do seu Povo. A oração de Israel é uma evocação da memória do amor de Deus. A Igreja vive da memória de Jesus, da sua Palavra, do seu dom de amor. A sua Páscoa é um dom que abraça o tempo e a história; na Eucaristia pediu-nos para a celebrar em sua memória.

 

        Esta memória não é uma simples evocação do passado. Esta memória vive-se no presente, a realidade que a fundou torna-se presente, empenha a nossa liberdade. Nada é mais actual do que a Eucaristia, a empenhar a nossa liberdade em todas as realidades da nossa vida. E no entanto ela é uma memória.

 

        A nossa memória pessoal tem de ser a memória da Igreja. Essa memória da Igreja, inspira a nossa liberdade, exige que a nossa fé seja a fé da Igreja. Bento XVI, na homilia do funeral de uma das colaboradoras da Casa Pontifícia, exprime maravilhosamente este dinamismo da memória: “São Boaventura diz que na profundidade do nosso ser está inscrita a memória do Criador. E precisamente porque esta memória está inscrita no nosso ser, podemos reconhecer o Criador na sua criação, recordar-nos, ver as suas pegadas neste cosmos criado por Ele. São Boaventura diz ainda que esta memória do Criador não é só memória de um passado, porque a origem está presente, é memória da presença do Senhor; é também memória do futuro, porque decerto provimos da bondade de Deus e somos chamados a voltar para ela. Portanto, nesta memória está presente o elemento da alegria, a nossa origem na alegria que é Deus e a nossa chamada para chegar à grande alegria. Sabemos que Manuela era uma pessoa interiormente permeada pela alegria que deriva da memória de Deus”.

 

        Esta memória de Deus é a nossa memória: “nas vésperas da sua paixão, Cristo renovou, aliás, elevou a nossa memória. «Fazei isto em memória de Mim» disse, e assim nos deu a memória da sua presença, a memória do dom de si, do dom do seu Corpo e do seu Sangue, e neste dom do seu Corpo e Sangue, nesta dádiva do seu amor infinito, com a nossa memória tocamos de novo a presença mais forte de Deus, o seu dom de si”. O próprio conhecimento que temos de Deus enraíza nessa memória. Bento XVI continua: “Na controvérsia com os Saduceus acerca da ressurreição, o Senhor diz-lhes, a eles que não crêem nela: mas Deus chamou-se «Deus de Abraão, de Isaac, de Jacob». Os três fazem parte do nome de Deus, estão inscritos no nome de Deus, estão no nome de Deus, na memória de Deus, e assim o Senhor diz: Deus não é um Deus dos mortos, mas um Deus dos vivos, e quem faz parte do nome de Deus, quem está na memória de Deus, está vivo. Infelizmente, nós homens, com a nossa memória, só podemos conservar uma sombra das pessoas que amámos. Mas a memória de Deus não conserva apenas sombras, é origem de vida: nela vivem os mortos, na sua vida e com a sua vida entraram na memória de Deus, que é vida. Hoje o Senhor diz-nos: Tu estás inscrito no nome de Deus, tu vives em Deus com a vida verdadeira, vives na fonte autêntica da vida”[8].

 

 

 

        7. A memória que se torna presente, mostra-nos a importância do tempo na acção salvífica de Deus. Não pode haver uma fé individual desligada da fé da Igreja. Só esta garante a convergência entre a memória e a liberdade, sublinhando a dimensão presente de toda a acção salvífica de Deus. Leiamos um texto do Papa Francisco na sua Encíclica “Luz da Fé”: “A transmissão da fé, que brilha para as pessoas de todos os lugares, passa também através do eixo do tempo, de geração em geração. Dado que a fé nasce de um encontro que acontece na história e ilumina o nosso caminho no tempo, a mesma deve ser transmitida ao longo dos séculos. É através de uma cadeia ininterrupta de testemunhos que nos chega o rosto de Jesus”. E mais adiante continua: “A própria linguagem, as palavras com que interpretamos a nossa vida e a realidade inteira chegam-nos através dos outros, conservadas na memória viva de outros; o conhecimento de nós mesmos só é possível quando participamos duma memória mais ampla. O mesmo acontece com a fé, que leva à plenitude o modo humano de entender: o passado da fé, aquele acto de amor de Jesus que gerou no mundo uma vida nova, chega até nós na memória de outros, das testemunhas, guardado vivo naquele sujeito único de memória que é a Igreja; esta é uma Mãe que nos ensina a falar a linguagem da fé. São João insistiu sobre este aspecto no seu Evangelho, unindo conjuntamente fé e memória e associando as duas à acção do Espírito Santo que, como diz Jesus, «há-de recordar-vos tudo» (Jo 14, 26). O Amor, que é o Espírito e que habita na Igreja, mantém unidos entre si todos os tempos e faz-nos contemporâneos de Jesus, tornando-Se assim o guia do nosso caminho na fé”[9].

 

 

 

        8. A fé vive-se no presente. Mas o tempo que vivemos faz uma unidade misteriosa com o tempo já vivido. Se a nossa fé não for desenraizada do tempo que passa, ela encontra na memória a força de uma opção da liberdade. A vida da fé e o seu anúncio nunca é desenraizamento do tempo e esquecimento da história. Sem essa dimensão o presente é volúvel e incerto. Ouçamos, mais uma vez, o Santo Padre, na “Alegria do Evangelho: “A memória é uma dimensão da nossa fé, que, por analogia com a memória de Israel, poderíamos chamar «deuteronómica». Jesus deixa-nos a Eucaristia como memória quotidiana da Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (cf. Lc 22, 19). A alegria evangelizadora refulge sempre sobre o horizonte da memória agradecida: é uma graça que precisamos de pedir. Os Apóstolos nunca mais esqueceram o momento em que Jesus lhes tocou o coração: «Eram as quatro horas da tarde» (Jo 1, 39). A memória faz-nos presente, juntamente com Jesus, uma verdadeira «nuvem de testemunhas» (Heb 12, 1). De entre elas, distinguem-se algumas pessoas que incidiram de maneira especial para fazer germinar a nossa alegria crente: «Recordai-vos dos vossos guias, que vos pregaram a palavra de Deus» (Heb 13, 7). Às vezes, trata-se de pessoas simples e próximas de nós, que nos iniciaram na vida da fé: «Trago à memória a tua fé sem fingimento, que se encontrava já na tua avó Lóide e na tua mãe Eunice» (2 Tm 1, 5). O crente é, fundamentalmente, «uma pessoa que faz memória»”[10].

 

        Desligar a fé da memória, é comprometer o caminho da verdade em que acreditamos, cair no individualismo da fé. A propósito da fé como caminho para a verdade, o Papa Francisco afirmou: “A este respeito, pode-se falar de uma grande obnubilação da memória no nosso mundo contemporâneo; de facto, a busca da verdade é uma questão de memória, de memória profunda, porque visa algo que nos precede e, desta forma, pode conseguir unir-nos para além do nosso «eu» pequeno e limitado; é uma questão relativa à origem de tudo, a cuja luz se pode ver a meta e também o sentido da estrada comum”[11].

 

        Esta convergência entre memória e liberdade não é exclusiva da fé, é elemento constitutivo da cultura. Tem de inspirar necessariamente a educação, se quisermos que esta seja a formação para a liberdade dos novos membros de um povo ou de uma comunidade nacional.

 

 

 

        A cultura é um dinamismo do presente: mutações culturais

 

        9. A importância da memória na cultura, não tira a esta o dinamismo e a responsabilidade do presente. Aliás a memória só se integra positivamente na cultura quando incentiva e inspira o presente. O processo cultural é dinâmico, admite variações sugeridas por realidades novas. No nosso tempo, isto é, no momento presente da nossa história, estas transformações culturais são profundas. É preciso agir e reagir de modo a que elas não alterem o essencial do dinamismo cultural, o inserir-se harmonicamente no processo do tempo, ao ritmo da tradição. Sem isso é a própria comunidade humana que corre o risco de ir perdendo a sua identidade. A própria Igreja não está isenta desse perigo. Referirei aqui apenas um dos mais importantes desafios que hoje se apresentam à harmonia cultural: a transformação provocada pelas novas linguagens.

 

        O Papa Francisco aponta este problema ao comparar a evangelização e novas linguagens: “No mundo actual, com a velocidade das comunicações e a selecção interessada dos conteúdos feita pelos mass-media, a mensagem que anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos seus aspectos secundários. Consequentemente, algumas questões que fazem parte da doutrina moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá sentido. O problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo. Portanto, convém ser realistas e não dar por suposto que os nossos interlocutores conhecem o horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e fascínio”[12].

 

        Esta transformação cultural é particularmente importante na missão evangelizadora da Igreja; mas também o é na afirmação cultural da identidade de toda e qualquer comunidade humana. A harmonia entre memória e liberdade mostra-se, então, decisiva. Escutemos mais um texto da Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho”: “Ao mesmo tempo, as enormes e rápidas mudanças culturais exigem que prestemos constante atenção ao tentar exprimir as verdades de sempre numa linguagem que permita reconhecer a sua permanente novidade; é que, no depósito da doutrina cristã, «uma coisa é a substância (...) e outra é a formulação que a reveste». Por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo. Com a santa intenção de lhes comunicar a verdade sobre Deus e o ser humano, nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso deus ou um ideal humano que não é verdadeiramente cristão. Deste modo, somos fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância. Este é o risco mais grave. Lembremo-nos de que «a expressão da verdade pode ser multiforme. E a renovação das formas de expressão torna-se necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável»”[13].

 

 

 

        A era digital

 

        10. O impacto cultural das novas linguagens sente-se com intensidade perante a influência da linguagem digital, que tem como principal instrumento a “internet”. O fenómeno está a ser estudado, com métodos científicos e há já, em vários países, um número notável de peritos analistas do fenómeno. Distinguem na humanidade actual dois grupos: um, a que pertencemos todos nós, a que chamam geração “pré-digital”, que já usam os instrumentos, sem sofrerem a transformação que prevêem para a “geração digital”, a que pertencem já as nossas crianças e jovens, para os quais a “internet” não é um instrumento de trabalho ou de diversão, mas se torna uma característica de uma nova identidade pessoal. Fala-se de alterações do cérebro, adaptando-se a essa nova maneira de ser e tornando-se menos sensível às categorias que conhecemos de cultura, de valores. Fala-se de uma nova antropologia, isto é, uma nova identidade humana, “um homem novo” alguém lhe chamou, esquecendo-se que a expressão está ocupada e significa a nova identidade do homem em Cristo.

 

        Entre os dados identificadores dessa nova maneira de ser homem, aponta-se a velocidade que tende a reduzir toda a realidade ao momento que passa, relativizando o tempo, a sua importância no exercício da liberdade. Relativizando a importância do tempo, relativiza-se a memória, perde-se a dimensão comunitária da liberdade, o “nós” de um povo que está na base de toda a tradição. As opções da liberdade que dizem respeito ao tempo da nossa vida, inserido na história de um povo, já não reconhecem o “para sempre”. Na cultura actual a duração temporal dá densidade e grandeza à liberdade. Os analistas mais pessimistas pensam que nessa nova antropologia haverá pouco espaço para a doutrina e para a fé da Igreja, fidelidades para toda a ida, relação do tempo com a eternidade, pertença a uma mesma comunidade que é a mesma hoje e há dois mil anos. Se esta visão pessimista se confirmasse, eu diria que talvez fosse a isso que Jesus se referia quando afirmou: “Quando o Filho do Homem vier, ainda encontrará a fé na terra?”.

 

 

 

        11. Pessoalmente não partilho desse pessimismo. Seria ver esta transformação cultural como um determinismo. Mas toda a transformação cultural é sempre um caminho para liberdade; se não for, a cultura nega-se a si mesma. Mas o momento é preocupante e exige de todas as pessoas e estrutura de educação um esforço acrescido. A escola actual está no centro do furacão. É preciso valorizar a dimensão comunitária do ser humano, que encontra no amor a principal expressão da liberdade. A escola tem de ser feita com amor e educar para o amor, definindo-se, assim, como colaboração com a família.

 

 

 

† José Cardeal da Cruz Policarpo

 

Patriarca Emérito de Lisboa

 



[1] Ver o tratamento deste tema num outro texto meu “A Evolução cultural e a evolução da sociedade portuguesa”, in Obras Escolhidas, vol. 15, pg. 357-365

[2] Ibidem

[3] Papa Francisco, in A Alegria do Evangelho, nº 124

[4] Ibidem, nº 125

[5] Ibidem, nº 123. O Papa Francisco cita a “Evangelii Nuntiandi”, nº 38, do Papa Paulo VI, e uma conferência de Bento XVI ao Episcopado da América Latina.

[6] Conferir um texto meu, “Anunciar o Evangelho é intervir na Cultura”, in Obras Escolhidas, vol. 15, pp. 101 e ss

[7] Papa Francisco, “A Alegria do Evangelho”, nº 122

[8] Homilia de Bento XVI no funeral de Manuela Camagni, colaboradora da Casa Pontifícia, 2 de Dezembro de 2010

[9] Papa Francisco, Encíclica “Luz da Fé”, nº 38

[10] Ibidem, “A alegria do Evangelho”, nº 13

[11] Ibidem, “A Luz da Fé”, nº 25

[12] Ibidem, “A Alegria do Evangelho”, nº 34

[13] Ibidem, nº 41

 

 



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