«Quando sairmos de casa, que igreja queremos ser?», Pedro Valinho

Quando sairmos de casa, que igreja queremos ser?

Um povo sacerdotal em tempos de isolamento


Nós não sabíamos que éramos um povo de sacerdotes. Quero dizer: nós conhecíamos a expressão, até a tínhamos lido numa qualquer carta de um qualquer discípulo de Jesus, talvez Pedro, e “povo sacerdotal” é expressão usada naquele cântico suficientemente antigo para ter passado pelos nossos ouvidos e os nossos lábios. Mas, no fundo, não sabíamos que éramos povo de sacerdotes.

De repente, um vírus desconhecido e invisível atirou-nos para dentro de casa. Fecharam as escolas e as universidades, fecharam os comércios e os restaurantes, fechou tudo o que não era indispensável para que a vida continuasse. No lote de coisas prescindíveis estavam as igrejas. E muito bem. Nós não sabíamos, mas a verdadeira igreja não está nas pedras de uma catedral, mas nas pedras vivas agora isoladas nas suas casas. As igrejas fecharam, mas a igreja continua aberta. As igrejas fecharam precisamente porque a igreja continua aberta e, na sua abertura, não podia senão assumir a responsabilidade que o tempo exige e manter a distância para o bem de todos. Nunca como hoje o isolamento foi tão sinal de comunhão. Fechar-se no seu casulo é, neste momento, o único sinal possível de abertura e respeito pelo irmão. Às vezes, o isolamento é comunhão.

Também nunca como hoje estivemos tão equipados para viver em isolamento. Sem sair das nossas quatro paredes, temos o mundo todo nas mãos. Nada do que se passa no globo nos é estranho, porque tudo recebemos à escala das dimensões de um ecrã. A escola toda parece caber no monitor de um computador. O trabalho parece fazer-se à distância de cliques e de chamadas telefónicas. E estou em crer que a maior tentação, para a igreja, esteja em achar também que tudo o que somos pode ser vivido à escala virtual das dimensões de um ecrã.

Talvez nos perguntemos para que serve uma igreja fechada em casa. Para que serve uma igreja que não se pode reunir para celebrar, para comungar o corpo de Cristo, para ouvir a proclamação da palavra, para ser educada na fé? Talvez nos perguntemos se uma igreja assim continua a ser sinal profético ou se não será antes sinal de medo e impotência. Talvez nos perguntemos se, quando sairmos de casa, ainda seremos igreja.

Nós não sabíamos, mas a nossa história começou aí, no lugar do isolamento, quando doze homens e uma mulher se fecharam do mundo em oração. Naquela sala, havia medo também e não foi o medo que impediu que o Espírito surgisse como o vendaval que haveria de transformar o mundo. Nós não sabíamos, mas foi de isolamento, até mesmo de um misto de receio e de esperança, de inquietação e de coragem, que se fez tantas vezes o lugar onde se disse a fé: numas catacumbas escavadas debaixo da cidade de Roma, em eremitérios longínquos no deserto, na solidão de corações incompreendidos em todos os tempos e em todos os lugares. Nós não sabíamos, mas ainda hoje é no isolamento que a fé se diz em tantas latitudes do nosso mundo, onde o padre não chega todos os anos, onde dizer-se cristão é condenar-se a uma minoria, quantas vezes perseguida, onde só no segredo de casa pode o nome de Cristo ser proclamado.

Mas, perguntemo-nos. Perguntemo-nos para que serve uma igreja assim fechada em casa?

Recordo-me de visitar em Paris, no cimo do monte da Basílica do Sacré Coeur, logo ao lado desse impressionante monumento nacional que é ponto alto de qualquer roteiro turístico, um pequeno e muito discreto convento de irmãs carmelitas, quase impercetível ao mundo que passa. Impressionou-me, nessa visita, que, no meio da cidade das luzes, no cimo do monte que tem uma das vistas panorâmicas mais deslumbrantes sobre a cidade de Paris, as irmãs tenham erguido muros altos que lhes impedem de ver outra coisa que não o céu e a cruz no cimo da torre da Basílica. Creio que aqueles muros são metáfora da vida cristã e talvez particularmente em tempos de isolamento: dizem-nos que é no segredo de uma vida focada em Deus, alimentada por esta relação, trabalhada na intimidade da oração, escutada e meditada no silêncio, que chegamos a ser íntimos do Deus incarnado. Independentemente de onde estamos, esta é a relação que alimenta todas as relações, tudo o que fazemos e somos.

Em tempos de isolamento, assistimos a uma proliferação de celebrações que cabem nas polegadas de um plasma. Inquieta-me esta celebração virtualizada que nos faz crer que há mais valor em assistir a uma missa celebrada numa igreja vazia do que em celebrar a fé com os que estão comigo, que eu posso abraçar, com quem posso partir o alimento da Palavra, e que são, também eles, sinal eficaz da comunhão dos irmãos e da presença de Deus. Bem sei que a transmissão televisiva de uma missa é, para muitos, o único sinal de comunhão que recebem, porque estão sós ou porque não podem ou não sabem celebrar de outra forma. Mas inquieta-me que a igreja fechada em casa não possa ou não saiba celebrar de outra forma. É talvez sinal de que nós não sabíamos que éramos um povo de sacerdotes.

Nós não sabíamos da presença real de Cristo na palavra que podemos partir e dar em sua memória. Nós não sabíamos da presença real de Cristo entre os que amamos e que podemos ainda abraçar como quem partilha a paz do Ressuscitado. Nós não nos recordávamos que o «sacrifício vivo, santo, agradável a Deus» (Rm 12,1) é o coração contrito que o busca de verdade na fragilidade dos meios que tem à disposição.

A ausência da comunidade e da celebração comunitária pode ser também liturgia. Uma das experiências que mais marcaram o meu caminho de fé foi a visita a dois missionários irlandeses com quem pouco falei. Viviam numa região semideserta no norte do Quénia. Durante cerca de 40 anos ali estiveram junto de um povo nómada, os Pokot. Não me hei de esquecer daquele natal de 2002. Não só porque o nosso carro avariou no semideserto a meio da noite e tivemos de percorrer uns 15 km a pé até à missão mais próxima, num lugar que – vim a saber no dia seguinte – era frequentado por hienas; não só porque em vez do nosso tradicional bacalhau, eu tive, naquele almoço de natal, um prato de honra atribuído aos convidados repleto de tripas cozidas; mas sobretudo pelo exemplo de vida daqueles dois missionários. Vivia cada um deles, sozinho, em missões que distavam uns 30 ou 40 km uma da outra. Durante dezenas de anos a sua missão foi estar. A sua pastoral era dizer àquele povo que o seu Deus os amava, mesmo antes deles o conhecerem, e que esse Deus estava ali, presente, através daquele estrangeiro. Não batizaram ninguém nos primeiros dez, quinze anos. Entretanto, trouxeram assistência médica, empenharam-se na alfabetização, na promoção da mulher e das crianças, abriram poços... quase sem palavras, diziam que ali estavam porque o seu Deus amava aquele povo mesmo antes desse povo o ter conhecido. E foi preciso esperar quinze, vinte anos até que alguém desejasse ser chamado da família desse Deus.

É preciso ser alimentado por uma esperança imensa, e uma fidelidade à promessa de Deus, para persistir em ser sinal no meio do fracasso. Para persistir em ser sinal para um povo que não compreendia, nem poderia compreender aquela opção de vida. É preciso ter uma fé de sábado santo, que sabe que a ausência de sinal é ainda presença de Deus.

Acredito que ser povo de sacerdotes é isto: celebrar a fé, a esperança e o amor, com a fragilidade dos meios de que dispomos, sem querer abafar a ausência da comunidade com virtualismos. O jejum de sábado santo é caminho imprescindível para a alegria da ressurreição.

Quando sairmos de casa, que igreja queremos ser?

O que espera o mundo da igreja? O mundo tem direito a exigir da igreja uma história capaz de captar a sua imaginação. E talvez importem menos os meios e os fóruns, mas nos seja exigido um testemunho de vida que se torna história narrada dessa aventura. Talvez importe sobretudo aquilo que S. Paulo pede aos coríntios: que os cristãos sejam carta aberta sobre Deus conhecida e lida por todos os homens (2 Cor 3,2). Ser discípulo de Cristo não é aprender de cor a sua vida, nem é seguir um manual de prescrições morais, nem é cumprir fielmente um ritual no respeito fidelíssimo de todas as rubricas. A proposta da fé não é a soma de argumentos ou a certeza de um ganho. É antes a proposta de uma amizade com uma pessoa que se conhece na relação. Este é um processo eclesial bem mais difícil: não há estratégias pastorais eficazes nem sucesso aparente. Não é uma questão de técnicas e mecânicas. Não se faz pastoral como quem monta a engenharia de um motor controlando todas as peças. Mas, na medida em que as comunidades estejam dispostas a serem testemunhas de uma relação, será o dinamismo da incarnação a ganhar forma no coração da própria igreja. Mesmo em tempos de isolamento. Porque somos um povo de sacerdotes.

 

Pedro Valinho Gomes

Investigador no Instituto Religions, Spiritualités, Cultures, Sociétés (UCLouvain)



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