"A catequese e os catequistas face aos desafios da secularização"

Disponibilizamos uma tradução livre, em língua portuguesa, da conferência que Enzo Biemmi, director da equipa europeia de catequese no segundo dia do 50º Encontro Nacional de Catequese.

A situação de secularização que atravessa toda a Europa coloca grandes desafios à comunidade eclesial na tarefa de evangelização que lhe foi confiada pelo Senhor Jesus. A partir da minha sensibilidade e da minha experiência, obviamente caracterizadas pela minha pertença à Igreja italiana, tentarei mostrar-vos os contornos destes desafios e das dificuldades que daí decorrem para a catequese. Ao mesmo tempo, e é esse o meu objectivo principal, esforçar-me-ei por demonstrar que qualquer tempo de crise é também um tempo de conversão e abre novas oportunidades para o evangelho e para a comunidade eclesial. É pois numa óptica de esperança na acção do Espírito que desejaria abordar os problemas actuais da evangelização. Fá-lo-Ei.

1 - A geografia europeia da fé

O que está a acontecer à fé cristã e à catequese na Europa? O meu papel actual de coordenador da EEC permitiu-me entrever quatro áreas geográficas, que permitem esboçar uma tipologia da fé e um mapa dos desafios para o anúncio do Evangelho.

•1.     Ex culturação - ruptura - fazer experimentar/argumentar (dimensão apologética).

A primeira área é a interessada numa verdadeira "ex culturação da fé", segundo a expressão da socióloga francesa Danielle Hervieu-Léger. Esta área engloba  mais visivelmente a França, a Bélgica e a Holanda (Países Baixos). O catolicismo parece já não fazer parte do seu universo cultural. A socióloga francesa exprime-se assim: "A Igreja deixou de constituir, na França de hoje, a referência implícita e a matriz da nossa paisagem global. (...) No tempo da ultra-modernidade, a sociedade "saída da religião" elimina até aos alicerces o que esta deixou na cultura". E é assim que uma parte da Europa deve agora contar com uma  verdadeira ruptura da transmissão da fé: uma ruptura que procura o seu lugar entre resistência e amnésia, com a descrevia com perspicácia Christian Duquoc já em 1999.

•2.     A permanência da tradição cristã - continuidade sociológica - transitar (de uma fé tradicional a uma escolha pessoal/modificar as representações religiosas).

Há, no entanto, uma segunda área, a não subestimar: diz respeito a uma situação cultural que conserva ainda largos traços de tradição cristã e, no seu interior, de transmissão de fé, mesma que marcada já por um processo importante de secularização. A Itália é um exemplo desta condição, que toca sobretudo a área mediterrânica, e em particular países como a Espanha e Portugal. A Polónia apresenta uma configuração semelhante.

Esta área é caracterizada por um processo de secularização das mentalidades, mas não ao ponto de suplantar os traços das referências cristãs. Esta permanência da memória cristã e das suas manifestações parece resistir a todas as tentativas de eliminação. Quando se conhece a situação geral europeia, ficamos um pouco surpreendidos com esta permanência e a sua consistência aparente, o que coloca diversos problemas à evangelização mas constitui, ao memo tempo, um recurso para o anúncio do Evangelho.

3. A clandestinidade da fé - continuidade individual - devoções e rituais - criar um tecido comunitário da fé e uma reapropriação em termos pessoais e existenciais.

Podemos determinar uma segunda área em relação à fé. Abarca os países que sofreram a dominação da antiga União Soviética. Luiza Ciupa, falando por exemplo da Ucrânia, afirma: "A Ucrânia viveu, entre a segunda guerra mundial e a queda da URSS (de 1946 a 1989) uma fase histórica muito particular. Este "longo" tempo foi marcado pela violência das perseguições, pela impiedosa destruição dos valores morais cristãos, pelo espectro do desdobramento da personalidade, pela negação, afirmada e vivida, da existência de Deus. Tudo isto estava programado até aos mínimos detalhes... O defensor heróico da fé cristã na Ucrânia foi a geração mais velha: as avós e os avôs, as mães e os pais que, nas situações mais difíceis, transmitiam uma fé viva aos filhos e netos, educavam-nos no amor à sua Igreja e ao seu povo. Uma ajuda, nesta resistência e nesta preciosa traditio, prestada pelos padres, monges, religiosos e religiosas que, regressados das prisões e do exílio, continuaram o trabalho iniciado na clandestinidade, formando e educando na fé... Era o tempo do silêncio, da oração profunda, da fé vivida, sofrida e testemunhada: o tempo da "catequese viva e silenciosa, da catequese dos mártires, dos confessores da fé em Cristo e na sua Igreja".

Para além da ênfase colocada nesta descrição, é necessário reconhecer que a fé cristã foi conservada, num país de dominação soviética, pelo testemunho silencioso das pessoas. Foi o tempo da fé na clandestinidade. A queda do muro de Berlim e da República Soviética (1989) marca o regresso público da fé cristã nos países de Leste. Mas o longo período de clandestinidade leva a que se continue a viver uma fé de cariz mais privado, fundamentalmente de culto, com uma incidência insuficiente na vida pessoal e pública. Nota-se que nestes países a catequese praticamente não conheceu desenvolvimento desde 1990, e que os manuais utilizados são ainda em grande parte os do período precedente.

4.A religiosidade pacífica - ausência "positiva" de uma qualquer fé - fazer descobrir, surpreender.

É preciso enfim assinalar, como excepção significativa entre os países de Leste (posta de parte a Polónia, com uma tradição que a aproxima mais da tipologia do sul europeu), a condição da Alemanha oriental. Apresenta uma especificidade única na Europa, no que respeita à sua relação com a fé. Oficialmente há 4% de católicos e 21% de protestantes nesse país. O  resto da população (à volta de 75%) é simplesmente e serenamente ateia. Trata-se de um ateísmo encarado como normal e que não surpreende ninguém. É um ateísmo pacífico. Guido Erbrich (na sua intervenção em Lisboa, no Congresso EEC de Junho de 2008) afirma: "Se alguém na Alemanha de Leste perguntar: "Acredita em Deus?" ouvirá responder: "Não, sou absolutamente normal." O padre filósofo Herberhard Tiefensee, de Erfurt, fala de um contexto ateu estável, excepcionalmente resistente a qualquer esforço de missão; aconselhou mesmo a nunca insinuar que o " homo areligiosus" da Alemanha oriental seria por isso menos atento e sensível aos valores humanos que o "homo religiosus" da Baviera, da Polónia ou do resto da Europa. Neste ponto, a situação na Alemanha oriental é igual, e em certos aspectos, melhor que a da Alemanha ocidental, ainda fortemente estruturada pelo cristianismo. "Tanto no domínio dos valores como nas questões relativas ao sentido da vida, a Alemanha de Leste revelou-se espantosamente constante e resistente às crises e firme no seu ateísmo".

Estamos diante de uma "terceira confissão de indivíduos sem confissão religiosa". Encontramos uma situação análoga na Suécia e na República Checa.

As quatro situações acima enumeradas colocam, em relação à fé, desafios diferentes à catequese. Podemos falar de "ruptura" com o cristianismo no primeiro caso. De uma continuidade sociológica parcial no segundo, de continuidade individual e ritual no terceiro, de indiferença serena no quarto.

Qual a moral desta tentativa de descrição da catequese europeia? Talvez apenas isto: a utilidade de colocar em relação recíproca estas geografias relativamente à fé, porque cada uma das situações referidas pode constituir para os outros como que um aviso e um esclarecimento. Um aviso, com efeito, mostrando que as situações nunca são simples. E um esclarecimento pois cada situação evocada é um ensinamento para a outra. Assim, por exemplo, embora a situação de ateísmo sereno possa ser encarada como uma ameaça que se estende sobre os diferentes contextos, pode também ser uma abertura, eventualmente inesperada, de novas oportunidades para o Evangelho, para o seu anúncio e para a sua escuta. Ou ainda, áreas onde os traços da memória cristã estão bem gravados na cultura podem ensinar às áreas mais secularizadas a não subestimar o que ainda as atravessa subterraneamente, silenciosamente como representações e aspirações religiosas.

A propósito, gostaria de vos contar o que se passou com dois grupos de catequistas de duas regiões italianas ainda bastante tradicionais. Depois de ter apresentado esta situação europeia da fé, pedi-lhes que me dissessem qual das situações encontravam nas suas paróquias. Responderam-me que encontram as quatro situações: crentes que se afastaram da Igreja com um sentimento de agressividade, pessoas que continuam a prática religiosa mas com uma mentalidade profundamente secular, pessoas que têm uma religiosidade "à la carte", muito pessoal, e, finalmente, pessoas sem qualquer religiosidade mas com uma interioridade e uma "espiritualidade" não religiosa.

Mas o que mais me chamou a atenção foi que, com surpresa minha, confessaram: "Encontramos as quatro áreas nas nossas famílias e em cada um de nós". A Europa está portanto em cada um de nós. Coloquei-lhes então uma segunda questão: "Na vossa opinião, qual das 4 situações é a mais susceptível de ser evangelizada, a mais disposta a deixar-se surpreender pela boa nova do Evangelho?" Responderam-me: "A quarta. Aqueles e aquelas que são serenamente ateus são os mais dispostos à surpresa e à alegria do Evangelho."

Quanto a mim, temos aqui uma boa chave para compreender como uma situação de dificuldade se pode tornar uma situação favorável à fé. Regressarei a este ponto.

•3.     O denominador comum: a conversão missionária da catequese

Se observarmos a reacção da comunidade eclesial nas diferentes situações que acabo de descrever, apercebemo-nos que na área francófona os Bispos falam de "proposta de fé"; no sul europeu, falamos da necessidade de um primeiro anúncio, mas dentro da valorização da tradição religiosa dos nossos países; nos países do ex-domínio comunista, o desafio é o de uma re-evangelização que leve a uma fé interiorizada, comunitária, com uma incidência na vida quotidiana; no que respeita à Alemanha de Leste, Paul Michael Zulehner diz o seguinte: "A situação na Alemanha oriental é tão precária que a pequena igreja não tem quase nada a perder, só tem a ganhar ao aceitar os riscos. Encontra-se na situação de poder tornar-se pioneira como Igreja intensamente missionária".

A reflexão catequética e o pensamento magisterial parecem assim ter encontrado (após um período de grande incerteza) acordo sobre um denominador comum que interessa à Europa inteira. Esse denominador é o que poderíamos definir sinteticamente como o desafio da "conversão missionária da catequese" cujo tema está actualmente no centro das preocupações eclesiais e da reflexão catequética europeia.

O tema da "proposta da fé", da passagem de uma catequese "de enquadramento" a uma catequese "criativa", a exigência de uma "mudança de paradigma de catequese", tornando-o missionário da catequese e o tema do "primeiro anúncio" são pois familiares e tornaram-se a base da reflexão e da prática da catequese.

3.As três conversões da catequese

A partir desta análise, para indicar pistas de mudança ou conversões, vejo-me obrigado a reportar-me às escolhas da Igreja italiana. A Igreja italiana, desde a volta do novo milénio, trabalha sobre três transformações maiores da catequese e da pastoral. Verificareis se estas três conversões correspondem ou não à situação das vossas igrejas. Sinto que os problemas são, de hoje em diante, os mesmos e as pistas de solução também.

  • a) A primeira mudança pode resumir-se na feliz expressão de um documento eclesial do Episcopado italiano: "Toda a acção pastoral deve estar "irradiada" de primeiro anúncio"

Esta expressão interpreta bem a situação italiana a propósito da fé e explica a escolha pastoral hoje largamente partilhada em Itália: o primeiro anúncio como dimensão transversal da pastoral, mesmo a mais tradicional, e não apenas "o primeiro anúncio" como o tempo pontual que precede as outras etapas da catequese e da maturação da fé.

O primeiro anúncio, no sentido estrito, consiste na proclamação do Evangelho aos que dele não têm conhecimento ou que não crêem e o seu objectivo é a adesão fundamental a Cristo na Igreja. Deve então distinguir-se da catequese, que pressupõe a escolha fundamental e explica os conteúdos e as atitudes. Mas a situação italiana apresenta ainda uma grande adesão, seja tradicional seja de convicção, à fé cristã e aos seus símbolos. Mais de 80% dos italianos consideram-se católicos e a prática cristã permanece relativamente elevada. Os italianos conhecem o cristianismo e a Igreja, talvez em demasia e mal. Nesta situação, que significado pode ter um "primeiro anúncio" no seu estrito sentido? Falar dele em Itália significa antes de tudo declinar essa exigência fundamental para os que são já crentes ou pensam sê-lo. Pastoralmente somos pois orientados para considerar o primeiro anúncio não apenas como um tempo que antecede o catecumenato (primeiro anúncio no seu estrito sentido) mas também, e sobretudo, uma perspectiva e uma dimensão, tornados fundamentais em todo e qualquer trabalho de evangelização. Assim entendido, o primeiro anúncio ajuda a pastoral actual a propor-se, já não na lógica da cura fidei mas numa perspectiva missionária. A permanência da fé e das suas manifestações, a participação relativamente elevada nas celebrações, a excelente saúde da religiosidade popular são o recurso e a cruz da pastoral italiana. É todo um tecido de religiosidade tradicional que é necessário reevangelizar. Aí está o sentido da expressão "toda a acção pastoral deve estar "irradiada" de primeiro anúncio". Por isso proponho chamar a este desafio "segundo anúncio", bem mais complicado que o primeiro, uma vez que se trata do confronto com toda uma série de visões destorcidas, de preconceitos, de resistências. É preciso ajudar a desaprender antes de ajudar a aprender.

A segunda mudança consiste em voltar a dar à catequese uma lógica fortemente iniciática segundo a inspiração do modelo catecumenal. O Directoire  Générale de la Catéchèse convida-nos a recuperar a inspiração do processo catecumenal: " Sem copiar a configuração do catecumenato baptismal" diz o Directoire, trata-se de retirar dele a inspiração, enquanto "verdadeira escola da fé". Este processo é qualificado pela "intensidade e integridade da formação; pelo seu carácter gradual, com etapas definidas; pela ligação aos ritos, símbolos e sinais, especialmente bíblicos e litúrgicos; pela referência constante à comunidade cristã..." (DGC91)). Trata-se de um verdadeiro "banho eclesial" na vida cristã. E qual a razão desta escolha? Muito simples. Num contexto social de cristandade a iniciação na fé dava-se nos ambientes da vida: a família, a escola, a aldeia. Estes três "seios maternos"da fé constituíam o que J. Colomb apelidou de "catecumenato sociológico". Nesse contexto e durante muitos séculos a catequese sofreu duas simplificações, duas reduções: foi reservada às crianças (embora nascida para os adultos) e tornou-se uma "catequese de boa preparação para os sacramentos", tendo sido uma catequese de iniciação à vida cristã. Ora, numa cultura de secularização, de globalização, de comunicação planetária, nem a família, nem a escola, nem a aldeia levam a cabo a iniciação sociológica à fé cristã. O contexto exige então uma conversão missionária da comunidade (primeira conversão) mas para que ela tenha lugar é necessário que a comunidade se torne, ela própria, um lugar iniciático, um meio portador da fé. Daí a segunda conversão da catequese: de uma catequese que prepara para bem receber os sacramentos a uma catequese que inicia na fé "pelos sacramentos" (a mudança é de envergadura!); de uma catequese reservada às crianças para uma que torne o adulto no sujeito e destinatário principal da catequese, mesmo no caso da catequese das crianças.

C) A terceira mudança não é, neste momento, senão uma feliz intuição, que está a abrir novos caminhos para a catequese. Podemos resumi-la nesta expressão: "deslocalizar o Evangelho e a evangelização para uma dimensão secular, profana". O colóquio nacional eclesial da Conferência Episcopal Italiana, que teve lugar em Verona em 2006, convidou a Igreja italiana a sair da organização clássica, que repartia a tarefa pastoral nos sectores tradicionais (catequese, liturgia, caridade...) e a partir da pessoa e das suas exigências de unidade, em vez de se manter numa organização fechada na Igreja, mesmo sendo teologicamente fundada. É um convite forte a sintonizar-se com a vida dos homens e mulheres, mais do que enquadrá-los na nossa organização pastoral com experiência. Trata-se de reaprender a anunciar o Evangelho sobre as situações de vida das pessoas, sobre as passagens das suas vidas, sobre o que as faz viver, sofrer, ter  esperança: a experiência de se apaixonar, a paternidade e maternidade, o trabalho e a festa, a paixão pelas causas humanitárias ou sociais, toda a experiência de fragilidade, as rupturas familiares, as separações, os divórcios; os lutos, como a morte de um filho ou do companheiro; a doença, o sofrimento, a solidão; a velhice e a proximidade da morte. Há que anunciar um evangelho do amor, um evangelho da paternidade e da maternidade, um evangelho da paixão e da compaixão, um evangelho da fragilidade afectiva e física, um evangelho da ressurreição no coração de qualquer experiência de morte.

Trata-se de um verdadeiro êxodo para a comunidade cristã: uma passagem da linguagem, da organização e da proposta intra-eclesial a uma linguagem laica, a uma desorganização da nossa pastoral auto-referencial com vista a uma reorganização sobre os tempos e os ritmos da vida humana, a uma proposta da fé que toque as necessidades da vida das pessoas.

Resumo portanto estas três conversões em três palavras: missionária, iniciática, secular. E eis como a direcção se tornou clara mesmo se as soluções práticas estão ainda por inventar. Mas acreditem: é muito melhor ter encontrado a direcção sem ter ainda as soluções práticas, em vez de multiplicar as actividades e as iniciativas sem ter compreendido a direcção.

4.Um novo estilo de cristianismo A geografia da fé na Europa, o denominador comum assumido pelo Episcopado europeu através da reflexão catequética, as três grandes conversões da catequese convidam-nos a um estilo novo e a uma nova espiritualidade de anúncio. Este novo estilo de evangelização por parte da Igreja europeia está marcada por duas características.

a)Uma proposta de liberdade. A mudança no que respeita ao acolhimento do Evangelho por parte das mulheres e homens de hoje é e será sempre mais conotado na Europa com um elemento novo: o da liberdade. A mudança é, neste ponto, a marca de uma época. Passámos do "Não nascemos cristãos, tornamo-nos", afirmado no século II por Tertuliano num contexto pagão, a uma situação exactamente inversa: " Nascemos cristãos e não podemos deixar de o ser". Nessa situação de cristandade sociológica europeia, que durou uns 1500 anos, ser cristão era um dado adquirido e a palavra da Igreja era uma evidência. Estamos agora numa terceira mudança, que poderíamos legendar com a expressão: "Não nascemos cristãos, podemos tornar-nos, mas não o apercebemos como necessário para viver humanamente bem as nossas vidas". Numa sociedade multicultural como a nossa, a fé cristã regressa pois ao seu estado original de proposta livre e de adesão livre. Não é fácil esta mudança! Exige uma capacidade esquecida de propor a fé, como o diz S. Paulo: "Como hão-de invocar Aquele em quem não acreditaram? E como hão-de acreditar n`Aquele que não ouviram? E como ouvirão se ninguém O proclama?" (Rm 10,14-16).

Paradoxalmente, numa sociedade de cristandade não haveria necessidade de evangelizar, porque isso se produzia através de uma espécie de banho sociológico. Nascia-se cristão. E, portanto, durante mais de 15 séculos, desenvolvemos não a evangelização mas a catequese, cuidando de uma fé que já se encontrava lá, como educação e animação da fé. E ao longo dos séculos perdemos a capacidade de propor. Paradoxalmente, a nova situação exige uma capacidade inédita de propor. Exige que voltemos a afirmar que Jesus é o nosso Salvador e que voltemos a propor o coração do seu Evangelho.

b)Uma proposta na gratuidade. Uma proposta feita na liberdade a uma liberdade é uma proposta ao ensino da gratuidade. Aquele que anuncia não pretende ser o dono da resposta e nunca julga a resposta do outro. A evangelização reside no apelo a uma liberdade diante de uma outra, que toma a decisão como quer e como pode. Esta dimensão absolutamente gratuita do acto de proposta da fé é hoje na Europa, em termos culturais, a condição principal para um possível acolhimento do Evangelho. Para o que sai de uma fé tradicional obrigatória, a única possibilidade de voltar a crer nasce do facto de as testemunhas da fé serem vistas como homens e mulheres livres e gratuitos no anúncio.

É evidente que esta perspectiva não é habitual para nós, mas é extraordinariamente fecunda. É verdadeiramente uma oportunidade. Coloca-nos numa situação de fraqueza, mas essa fraqueza torna-se a força do Evangelho, como para Paulo. "Ele declarou-me: a minha graça te basta; pois a minha força mostra-se na fraqueza. É portanto com orgulho que me vanglorio das minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo" (2Co 12.9).

5.Para um cristianismo da graça

Regressemos à situação da Alemanha de Leste, a situação da "não necessidade cultural da fé". Para mim, é a mais interessante para imaginar um novo estilo de cristianismo e de evangelização.

A "não necessidade cultural" da fé, no panorama de pluralismo cultural europeu, pareceria um puxar o tapete sob os pés do cristianismo, privando-o de toda a razão de ser. E é efectivamente o diagnóstico que uma parte da igreja faz relativamente à situação da fé na Europa. Esta visão das coisas leva a atitudes de defesa, de desvalorização, de apologia e a tentativas de reconquista dos terrenos perdidos.

De facto, esta situação plural destabiliza não só o cristianismo mas também a forma sociológica de que se revestiu até agora. Se considerarmos que não podemos ser humanos (e cidadãos) sem ser cristãos e uma parte da igreja assim o crê, porque durante tantos séculos deteve o monopólio do sentido (até ao ponto de considerar a disjunção da equação humano/cristão), é evidente que esta posição de não religiosidade seja vista como uma ameaça para o cristianismo, uma ameaça bem mais forte que a do ateísmo teórico ou da ruptura explícita, porque não está preocupada em demonstrar mas apenas em mostrar (mostra a possibilidade de uma humanidade sem referência explicita à fé).

Porém, se concebermos de uma forma diferente a relação entre cristianismo e experiência humana, não no horizonte da necessidade, mas no do excedente da graça, um excedente não necessário mas determinante (A fé como graça suplementar na ordem do excedente gratuito, mas apesar de tudo determinante, como diz André Fossion), então no final obrigatório de um certo cristianismo, desenha-se uma nova figura, a de um cristianismo da graça que encontra a sua razão de ser e a sua pertinência numa cultura plural. Com efeito, é apenas no interior de uma pluralidade de mentalidades, de filosofias, de sabedorias, de religiões... que o cristianismo pode finalmente libertar-se do adquirido, do compulsivo, do necessário.

A perspectiva da "não necessidade cultural da fé para viver humanamente", acolhida pela comunidade cristã como perspectiva de evangelização, não significa, evidentemente, a negação da afirmação central da fé cristã "Jesus é o Senhor". Os cristãos professam que Jesus Cristo é o Salvador de todos e que sem Ele não há salvação. Reconhecem simultaneamente que a sua graça age em cada homem e em cada cultura, mesmo fora da forma canónica eclesial. O Senhor Ressuscitado tem, com efeito, uma pegada indelével na Igreja. Este horizonte coloca a evangelização num espaço de absoluta gratuidade e liberdade, que é a condição cultural para a plausibilidade da fé cristã na Europa contemporânea, para além das suas geografias internas.

Esta perspectiva permite ao cristianismo consentir em morrer na sua forma sociológica e à Igreja não desperdiçar as suas forças na reconquista dos espaços perdidos, além de a libertar para ser gratuitamente missionária e graciosamente evangelizadora.

O cristianismo da graça autoriza e exige uma catequese da surpresa. As duas pequenas parábolas de Mateus, a do tesouro e a da pérola (Mt 13,44-46) são, a este propósito, muito instrutivas. Construídas em paralelo, apresentam-se como duas parábolas gémeas. Conta-se, na primeira, uma grande descoberta e, na segunda, um reinvestimento radical, uma desapropriação para uma reapropriação. Apenas uma pequena diferença: na parábola do tesouro, o homem não procura, encontra inesperadamente um tesouro; na parábola da pérola, o comerciante procura mas encontra, também ele, uma pérola inestimável, superior a todas as suas expectativas. O evangelista parece pois colocar em cena as duas figuras da fé: os que procuram (os que buscam a Deus) e os que não procuram. O dom de Deus não está pois sob condição, a busca do homem não determina a graça de Deus. Mas, quer se procure, quer não se procure, o dom de Deus surpreende, excede toda a expectativa, precede o homem e a mulher no caminho do seu desejo: é para eles  uma boa nova inesperada.

É bom relembrar a afirmação de Von Balthasar um pouco antes da sua morte. Dizia ele: "Se quisermos compreender o que é a fé, é necessário olhar para o sorriso de uma criança. O sorriso de uma criança significa: sei que sou amado. É isto a fé: a surpresa de ser amado, o sim de Deus a nosso respeito.

No horizonte de um cristianismo da graça, numa lógica de liberdade, de gratuidade, de maternidade, após a longa estação de catequese de  enquadramento,  abre-se na Europa a época de um anúncio no registo da surpresa. Este anúncio não selecciona: todo o homem, toda a mulher é digna de Deus, é objecto da sua atenção graciosa. O que é determinante é o espanto da comunidade "que ouviu, viu com os seus olhos, contemplou e tocou com o dedo" o Verbo da vida e que o anuncia para que a sua alegria seja completa (1Gv 1,1-4).

Fr. Enzo Biemmi, presidente da equipa europeia de Catequese

Webmaster|2011-04-15|13:21:14



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